Diário - Como o senhor, um texano, foi parar em Campinas?
Padre Haroldo Rahm - Sou um padre jesuíta, e minha ordem foi designada, na década de 60 pelo papa João XXIII para realizar trabalhos sociais na América Latina. Vim para Campinas em 1964 e estou aqui até hoje. Desde o início, minha foi a de realizar obras sociais. O objetivo era servir aos desprivilegiados e para trabalhar com psoas que têm meios de ajudar em obras sociais.
Diário - Como foi para o senhor mudar-se para o Brasil? O que o senhor mais estranhou?
Padre Haroldo Rahm - A língua. É muito difícil. Até hoje não me adaptei totalmente. Já aprendi francês, espanhol, grego e latim. Mas o português para mim é a língua mais difícil. Culturalmente, eu não estranhei, até porque vivia na fronteira do México e 60% das pessoas da minha cidade eram mexicanas. Eu vivia em uma cultura mexicana.
Diário - O senhor entrou justamente no ano do golpe militar. Houve algum tipo de problema?
Padre Haroldo Rahm - Alguns. O governo me investigou porque eu viajava para todo o Brasil realizando cursos de treinamento e liderança religiosa. Uma vez eles entraram em minha casa e destruíram todas as imagens de Jesus Cristo, porque eu costumava falar e deixar escrito abaixo das imagens que Ele era um revolucionário. Outras vezes, eles ficavam rondando os locais onde eu estava...
Diário - Os EUA são um país essencialmente protestante. Como o senhor se tornou padre lá?
Padre Haroldo Rahm - Minha família é católica. O meu pai era médico e minha mãe fazendeira. O meu pai inclusive era alcoólatra. E foi por causa do vício dele que minha mãe se separou. Por isso também eu tive simpatia por pais que têm problemas e com filhos que usam drogas. O meu irmão foi alcoólatra. E lutou muito para livrar-se do vício. ele um dia disse para si mesmo: "Vou parar de beber", e parou. Atualmente, ele é juiz aposentado e trabalha como advogado. Sou contra as drogas, o álcool e o cigarro, mas sei que não são bons. Fumei por 30 anos, quando ainda era moda fumar, e fumava muito. Eu também bebia toda a noite. Não muito, mas bebia. Isso rouba a produtividade do trabalho, forma hábito. Por isso, deixei de fumar e beber, e estou envolvido nisso.
Diário - Rahm é um sobrenome alemão, não é?
Padre Haroldo Rahm - Sim, mas já sou a quarta geração. Eu sou mesmo é americano.
Diário - Mas o que levou o senhor a se tornar padre?
Padre Haroldo Rahm - Quando era muito jovem, não dava atenção para a religião. Era um jovem normal, nem contra nem a favor de Deus. Só que, um dia, eu vi um crucifixo e senti que Aquele Homem tinha uma missão, se não, não estaria lá. Então, me perguntei: Harold, o que você fez na vida até agora? Nada! Depois de dois mil anos, Ele ainda foi capa da revista Time. Deve ser um grande homem, afinal, todo mundo fala até hoje sobre ele. Estava fazendo o serviço militar e estudando para cursar medicina quando me decidi. Para confirmar minha vocação, estudei com os padres jesuítas uns 12 anos. Eu me tornei um padre em 1950, aproximadamente.
Diário - O senhor chegou a lutar em alguma guerra?
Padre Haroldo Rahm - Fui soldado durante a Segunda Guerra Mundial, mas não cheguei a sair dos EUA. Graças a Deus, nunca precisei matar ninguém.
Diário - O conceito difundido pelo senhor de amor exigente é muito comentado por especialistas em desintoxicação de viciados em drogas. O que vem a ser esse conceito? Foi o senhor que o criou?
Padre Haroldo Rahm - Não fui eu. É de um casal norte-americano: Phyllis e David York, que moram em Doylesville, uma cidade da Pensilvânia. Ambos são psicólogos e têm três filhos. Todos os três usavam drogas e o casal, que dava orientação para pais em escolas sobre como lidar com filhos drogados convivia com o problema dentro de casa. E o que eles fizeram: reuniram-se com outros pais e decidiram fazer reuniões semanais para discutir problemas com os filhos. O princípio básico do amor exigente é: nós te amamos, mas não aceitamos o que você faz. A iniciativa daqueles pais foi bem-sucedida no sentido de controlar seus filhos. O sucesso na verdade foi tão grande que a jornalista de TV Ann Landers, muito famosa nos EUA, transmitiu, em cadeia nacional, uma reportagem sobre o trabalho dos dois. Tudo isso ocorreu nos anos 60, e o movimento só tem crescido desde então. Eu li o livro, gostei, e obtive permissão deles para publicá-lo no Brasil e desenvolver núcleos de pais similares aos deles.
Diário - E esse conceito de amor exigente não entra em nenhum tipo de choque cultural com a mentalidade brasileira?
Padre Haroldo Rahm - É claro que há diferenças culturais. Nos EUA, por exemplo, os autores recomendam aos pais que encaminhem seus filhos para a polícia, que lá costuma dar apoio a esse tipo de iniciativa. Aqui, eu acredito que não daria muito certo... a polícia não trabalha desse jeito no Brasil...(risos).
Diário - Que atividades o senhor desenvolve no Brasil?
Padre Haroldo Rahm - Fazemos uma guerra contra as drogas e o álcool. Neste sentido, temos quatro atividades: a Fazenda do Senhor Jesus, que é separada da cidade e que realiza uma trabalho intensivo de recuperação; há também esse local onde estamos, que é a Casa Jimmy, onde há mais contato com o mundo externo; há a Casa Aberta, no viaduto Cury, e temos os grupos de pais do Amor Exigente.
Diário - Qual é o índice de recuperação de drogados?
Padre Haroldo Rahm - 30%. Trata-se de um índice mundial nesse tipo de trabalho.
Diário - No que consiste exatamente esse trabalho na Fazenda do Senhor Jesus?
Padre Haroldo Rahm - É um lugar isolado. A pessoa que vai lá só poder concentrar-se no trabalho, na meditação e no desenvolvimento de sua espiritualidade. Nós entretanto não pregamos religião. Os evangélicos pregam, mas nós não. O que fazemos é cultivar a espiritualidade. Aceitamos gente de todas as religiões. O governo, em geral, não ajuda muito. Os jovens que estão lá sabem que essa obra é dedicada a eles e sabem que essa obra é dedicada a eles e sabem que têm de trabalhar e colaborar. Além disso, recebemos verbas de doadores, do SUS, da Prefeitura e, raramente, do governo federal.
Diário - E de onde veio esse nome Jimmy, da Casa Jimmy?
Padre Haroldo Rahm - É uma homenagem a Jimmy Hendrix, não o músico. Jimmy Hendrix era um negro, um ex-menino de rua que vivia em Washington. A cidade, aliás, embora seja a capital dos EUA, é, na verdade, uma grande favela. A incidência de crimes lá é altíssima. E esse meu amigo dirigia casas de recuperação lá e estava me ajudando a construir essa casa aqui quando veio a morrer. Por isso dei esse nome ao local.
Diário - E a Casa Aberta? Ela já foi muito criticada...
Padre Haroldo Rahm - Alguns comerciantes daquela região reclamavam dos menores. Realmente, alguns chegavam a nós com coisas roubadas. Mas o que fazíamos com eles era procurar levá-los para longe dali para tratar deles. Hoje em dia, mudamos o perfil do trabalho. Aceitamos crianças e adultos, e os problemas, ao que sei, acabaram.
Diário - Como o senhor vê o problema atual das crianças viciadas em drogas?
Padre Haroldo Rahm - O problema não é a criança, são os pais. Primeiro, muitos não têm formação e não sabem falar com os filhos. Não é que eles não amem seus filhos, o que eles não sabem é ter amizade com eles. Os filhos querem ser amigos dos pais. Eles querem ser reconhecidos e ter uma direção. E quem tentar dar direção a eles, vai conseguir, porque eles seguem muito facilmente. Nos 32 anos que estou no Brasil, lidei pessoalmente com milhares de jovens. Há também outro problema: vivemos em um mundo drogado. Cada mãe e cada pai toma remédio para qualquer coisa. Posso estar errado, mas acho que o Brasil tem mais farmácias que qualquer outro lugar do mundo. Outro problema é o cigarro. Nos EUA, por exemplo, não se pode fazer nenhum tipo de propaganda. Agora, lutam para fazer do cigarro uma droga. No Brasil, não fazem nada. Os americanos são muito espertos, por isso eles, que não podem investir lá, gastam milhões de dólares em propaganda no Terceiro Mundo.
Diário - E quanto ao papel do Estado?
Padre Haroldo Rahm - Bastaria a educação formal para as crianças, com escolas dignas, professores treinados, com salários dignos, e bastante escolas. O problema é escola e educação. E dinheiro não é problema, só que não estão aplicados nos lugares certos.
Diário - E como o senhor vê o papel dos meios de comunicação?
Padre Haroldo Rahm - A influência é muito pouca. Só se influencia a pessoa já condicionada a se drogar ou a ser ruim. O jovem normal não se deixa levar. Um dia, eu estava com uma mãe amiga minha, eu batizei aquela menina. E ela estava na praia e veio falar comigo em uma roupa muito sumária. Eu disse a ela: "Joana, você não acha que a maneira com a qual você está vestida não pode influenciar os jovens?" Ela espondeu: "Não, só os velhos" (risos). Eu não vejo como essas coisas podem afetar um ambiente sólido, que não tenha nada a ver com o que é retratado.
Diário - O senhor considera a maconha um problema tão grave quanto o das outras drogas?
Padre Haroldo Rahm - A maconha é perigosa. Ela é pior que o cigarro e torna várias pessoas viciadas. A maconha para mim é como a cerveja: não é boa para ninguém, pois 10% dos que bebem viram alcoólatras. Ela está destruindo a juventude juntamente com o álcool e as drogas.
Diário - Como o senhor vê os conflitos que existem dentro da Igreja, entre conservadores e progressistas?
Padre Haroldo Rahm - É natural haver divergências de pensamento. Somos seres limitados e estamos condicionados às nossas experiências de vida e à nossa educação. E daí surgem todas essas divisões. Minha família era muito social. O meu pai era um homem muito generoso e a minha mãe muito liberal. Ela gostava mais de trabalho no campo do que ficar na cozinha. Ela vivia fora de casa, cuidando dos animais. Minha formação, em decorrência disso, foi muito liberal. Já a pessoa que vive uma maneira mais organizada, tenderá para o conservadorismo.
Diário - Mas como o senhor vê o conflito na Igreja?
Padre Haroldo Rahm - É muito frustrante. Alguns nem falam com os outros. Acham que os outros estão totalmente errados. Para mim, ninguém, ninguém tem a capacidade de estar totalmente correto. Somos como um brilhante, cada lado tem uma faceta. Essas rivalidades são, em primeiro lugar, terríveis, em segundo lugar, uma bobagem.
E em relação ao papa João Paulo II, cuja conduta tem sido a de excluir membros da Teologia da Libertação?
Padre Haroldo Rahm - É o mesmo problema da briga entre conservadores e progressistas. Sou contra esse tipo de coisa. Aliás, eu não entendo bem essa polêmica, porque ele pratica política em seu trabalho do mesmo modo que os adeptos da Teologia da Libertação. Acho que o problema dele é o cardeal Ratzinger, que o influencia muito. Achei erradas as exclusões do frei Leonardo Boff e do padre Cardenal, da Nicarágua. Mas quem sou eu para ir lá e falar isso para ele.
O que o senhor, como morador de Campinas, acha da cidade?
Padre Haroldo Rahm - Campinas é a melhor cidade do mundo. Nunca fica nem muito fria nem muito quente em comparação com outras cidades do Brasil. É relativamente pequena, tem um tamanho ideal. O campineiro ganha um dos melhores salários para o padrão nacional. Tem também boas opções de cultura e, em geral, um bom governo, além de muitas obras sociais, como por exemplo, a Feac, que reúne mais de cem organizações sociais. Das cidades do Brasil, acho que é a menos problemática.
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