Antologia de Murilo Araujo (1894/1980)


Seleção de Manuel Bandeira

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O menino que se perdeu na Festa

Do livro As sete cores do céu (1941)

Procurei-te, irmãzinha, em toda a parte
Pelo palácio de Festim do mundo por onde andei.

Mas nossas mãos não se tocaram...
Como estou trêmulo
Com o pensamento de que não te encontrarei!

E à meia-noite
Quando o Tempo
vier apagando sem palavra os candelabros -
desorientado que farei?


Vendo a lua lívida
manchar no muro as sombras lúgubres das árvores,
nos pátios longos, ao noturno das estrelas,
só por entre os soluços dos repuxos sonâmbulos
aonde irei?

Sem te achar eu serei um menino transviado,
perdido na extensão de uma sala vazia,
que olha as molduras de ouro e os tapetes vermelhos
e se inquieta e se assombra...

E errarei aterrado
vendo chorar comigo errante nos espelhos,
apenas minha sombra.



O viajante estrangeiro

Do livro A escadaria acesa (1941)

Minha viagem na terra
é a de um viajante num país desconhecido,
Não encontro ninguém do meu país.

Os que viajam comigo nesse trem estrangeiro
uns com os outros conversam como amigos...
Que falam eles? - Sei que falam uma linguagem
que, para mim, ai!, nada diz.

Todos podem comprar em aprazíveis paradas
frutos bons como beijos
ou braçadas de flor de um aroma tão bom!

Eu, porém, o forasteiro,
não obtenho esses gozos;
e olho-os, só com o Desejo,
imóvel, escutando a fuga surda do wagon.

Entram as jovens na estação. Que risos claros!
Não são, porém, do meu país.
E viajarei até o final sem nos falarmos,
sem conhecê-las, sem encontrar a frase-chave
com que dizer-lhes quanto me fariam feliz.

Sou de outro reino, onde se fala em melodia
intraduzível neste mundo para alguém.
Falo a música das ondas,
falo a música dos pássaros...
Uma estrela do céu, porém, me entenderia...
porque no céu é assim que se fala também.



O poeta namora a morte

Do livro A escadaria acesa (1941)

Vi a Morte. É simpática.
A fisionomia até não dá desgosto.
Como não envelhece, é uma arisca menina,
bela, mesmo com o véu que ainda usa no rosto.

Mal me viu, apontou para a estepe gelada
em que me apareceu:
-Deita aqui ao meu lado...
Faz frio. Porém deita e eu te aquecerei breve;
Eu te farei ser luz
luz perpétua entre a neve!-

(Mas gelava demais e meu corpo tremeu).

Ela levou-me então para o píncaro esguio
no mais alto rochedo:
-Salta! Salta sem medo em pleno azul, amigo!
Eu te farei brotar duas assas diáfanas;
serás límpido e leve
como as estrelas.-

(Mas era tão noturno o silêncio vazio
que minha ânsia hesitou e enfim retrocedeu).

Mostrou-me finalmente a lagoa do sono.
(É a lagoa remota
e onda a luz se escondeu...)
-Mergulha nesta sombra;
e encontrarás o cofre
e eu te darei a chave
do cofre de ouro das grotas,
que dorme ao fundo das ondas.-

(Mas a água sem tremor,
brônzea,
me estarreceu.)

E respondi-lhe doce e tranqüilo:
-Não, Morte.
Não.
A Vida afinal é tão jovem e tão forte
que, por sadismo até, me atraiu, me prendeu...-

Disse então, já sem véu: - Mas sou eu mesma a Vida!-
e encarei-a sorrindo... e ela correspondeu.



Uma vida de poeta

Do livro A escadaria acesa (1941)

Uma vida de poeta é uma rua penosa,
insólita e nevoenta
junto a um porto.

À noite ergue torreões sombrios e vazios
à lua macilenta,
lua-múmia esgueirando a carranca mongol;
de dia, toda em estrépitos, violenta,
ferve de ardores e canseiras sob o sol.

Uma vida de poeta é uma rua maldita...
aonde vim ter, meu Deus, sem saber como e sem querer!
Cai sobre ela a garoa...
uma criança grita...
Saudosamente neva ou começa a chover.

Uma vida de poeta é uma rua de vozes,
aonde vim, extraviado,
à procura de alguém que nunca hei de encontrar!
Cruzam vultos ferozes;
e com brados quebrados os meus passos reboam
na rua que a nenhuma outra vai dar...

Vem a noite,

Distante uma sereia soa,

E esta rua, meu Deus, desemboca no mar.



Toada do espírito perdido

Do livro As sete cores do céu (1941)

A noite vem lá redonda
como um pássaro.
Que arminhos, que brancura, que inocência
a noite trouxe ao mundo no frouxel!

A esta hora, os pequeninos fazem rondas...
e a música de seu riso enche a terra com o murmúrio do céu.

Vem brincar, meu espírito! Onde foi meu espírito?
Êeh...- Caiu no mundéu!

A lua lírica
abre flores pelo mato;
e a feira do alto, alegre, se lantejolou.
A esta hora a juventude une os lábios num cântico
e o coração, cigarra nova, estridulou...

Vem sorrir, meu espírito!
Eu sinto o frêmito
do amor maior que sob o céu raiou!
(Mas o espírito escuta uma estrela que chora...
ôôh!...
e na sombra das sombras se abismou).

A morte é aspiração. Ânsia. Vitória.
O furor de morrer ou de alcançar.
A esta hora a legião dos homens sôfrega
Desespera e delira,
despenhada num doido acachoar.

Vem viver, meu espírito!
e longe o espírito oscilante, lívido,
braceja como uma galera trágica-
aah!-
no sudário do mar.







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