MEMÓRIA DA FAMÍLIA
GUIMARAENS/Folha - 3.3.2001
Citava-se o bardo por dá lá aquela palha
NINA DE GUIMARÃES HORTA (foto)
COLUNISTA DA FOLHA
Meu
avô, Arthur da Costa Guimarães, era o irmão pragmático de Afonso. O
engenheiro, professor catedrático de estabilidade das construções, que escrevia
livros sobre pontes, empuxo de terras e muros de arrimo e que ameaçava os filhos
de porão, pão e água se ousassem um único soneto.
De que tinha medo o avô Arthur? Com certeza da vida difícil do irmão, do
solitário de Mariana. "Tu que vais plantar açucenas e lírios bem sabes que
afinal só colherás martírios."
Não sei da religião de Alphonsus. Meu avô, meu pai e meus tios não falavam em
Deus, mas foi por meio deles que ouvi as primeiras sonoridades místicas do poeta.
Os círios, os lírios, a pobre lua nova tão pequena, a catedral ebúrnea dos
seus sonhos toda branca de luz, a mão cujas veias azuis parecem feitas da mesma
essência astral dos óleos bentos. E cinamomos, muitos cinamomos.
As histórias que escutava quando pequena não eram da Branca de Neve. Ou até que
eram, por causa das brancas mortalhas e do brasão dos avós, "campo de neve
onde agoniza um coração".
A heroína, a princesa, figura principal da saga familiar sempre foi Constancinha,
filha de Bernardo Guimarães, a prima e noiva morta de Alphonsus. Minha mãe, que
conhecia Zenaide, a mulher verdadeira, de carne e osso, torcia o nariz para aquela
noiva que não se enterrava jamais. "Ela tossia, pelos ninhos cantava a
noite, toda luar. S. Bom Jesus de Matozinhos olhava-a como que a chorar..."
E o quarto dos noivos?, perguntávamos, sem ar. "Em frente ao leito dos
amores nossos, uma caveira a rir eternamente, nos braços de uma cruz talhada em
ossos."
Confundíamos um pouco a noiva com Ismália enlouquecida, posta na torre a sonhar.
Sua alma subiu ao céu, seu corpo desceu ao mar, e era tudo mais ou menos a mesma
coisa.
Crescemos. Santo de casa não faz milagre e citava-se o bardo corriqueiramente,
por dá lá aquela palha.
Se houvesse uma suspeita de um perigo no ar, falência, doença, marido traído,
era de praxe declamar em voz soturna, "E o sino geme em lúgubres responsos:
Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!".
Nas horas de depressão, desânimo, xícara quebrada, comida queimada, "Ah,
se chegasse em breve o dia incerto!".
Diante de uma pedra no caminho, de uma topada no dedão, de uma empregada maluca,
"Satan, va-t-en! Va-t-en, Satan!"
Hoje me intrigo como vicejou, naqueles cafundós de Mariana, um senhor Alphonsus
com tanto misticismo nas veias, tantas palavras esdrúxulas na cabeça, tanto
Verlaine no bestunto, tanto francês perfeito, tantas referências fora de seu
mundo. Como diria seu irmão Arthur. Muita novela nesta cachimônia!!! Va-t-en,
Satan! Satan, va-t-en!
Das virgens mortas passamos para a deliciosa galinha cega de João Alphonsus, para
a escrava Isaura, Rosaura, a enjeitada, o Ermitão de Muquém.
Sabendo, cúmplices, que por trás de todos os livros da estante, escondido das
crianças ficava "O Elixir do Pajé", muito, muito mais sintonizado ao
gosto dos homens da família.
Com ancestrais tão letrados, tios, tias, sobrinhos e sobrinhas se correspondiam
furiosamente à falta dos sonetos. Imagino que, se colecionadas, essas cartas
fariam a obra mais divertida e bem escrita da família Guimarães. Dos Guimarães
do copo, como se autodenominavam. Sinceramente, não imagino o porquê.
O parentesco
dos Guimarães com os Guimaraens
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