"O ABRAÇO QUE FALTAVA"

Ana Laura L.Galvão Kovács

 

" ...quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar seu juízo sobre o futuro". S.Freud

Pretendo abordar no decorrer de minha fala, o quanto a Psicanálise enquanto prática pode se tornar muito mais rica e adequada a singularidade humana se abraçarmos o pensamento complexo o qual hoje possibilita as ciências de diversos campos eqüidistantes dialogarem entre si. Não é meu desejo, pelo menos neste primeiro encontro entrar em questões teóricas da psicanálise, pois no decorrer de seu um século de existência, a psicanálise de Freud desenvolveu muito idiomas, muitas correntes, nomenclaturas variadas e muitas vezes a meu ver redundantes. Fazendo o mesmo caminho da parcialidade, fragmentação e divisão entre objeto e observador que as diversas áreas da ciência fizeram.

Claro que a metodologia cientifica permitiu os grandes progressos do conhecimento atual. A reflexão filosófica partindo do paradigma de Descartes de "disjunção" e "redução", separando sujeito e objeto. Como conseqüência houve uma hiperespecialização, "rasgando e retalhando o tecido complexo das realidades , fazendo crer que o corte arbitrário operado sobre o real era o próprio real. A psicanálise como um todo também não ficou fora deste processo. Desde Freud, temos buscado através dos tempos compreender e interferir nas angústias do ser humano, seus mecanismos inconscientes, somatizações , enfim, em nossa vida mental marcada por um ativo duelo de pulsões destrutivas e construtivas , contraditórias complexa e conflitante. Possuímos uma tendência gregária e concomitantemente outra antagonicamente solitária, onde cada ser deseja deixar sua marca, seu registro único, anseia ser lembrado como uno dentro de uma multiplicidade.

O processo de análise, visto amplamente com o pensamento complexo seria então um "convite" ao paciente de poder viver mais harmoniosamente com essa natureza contraditória, implicada mais responsavelmente com seu sintoma abrangendo os conceitos fundamentais do pensamento complexo que é ética, solidariedade e complexidade o quais retornarei adiante. Interessante retornarmos a Freud, porque mesmo muito preocupado com pensamento científico de sua época, seu objeto era desde o início a misteriosa alma humana, a mente...a subjetividade resultante da vida mental fantasiosa do indivíduo e sua história de vida. De forma que, mesmo propondo um modelo de funcionamento psíquico, de caminhos da pulsão, cada indivíduo "recheia", vamos dizer assim esses caminhos com sua trajetória individual e única, deixando o determinismo de causa-efeito relativos pois são influenciados por acontecimentos, deixando o campo da vida mental por sua própria natureza relativamente marginal á mensurabilidade.

Também era uma preocupação de Freud como indagar sobre os destinos de uma civilização "abrangendo toda a amplitude que a atividade humana tem". Escreve ele em O Futuro de uma Ilusão:" temos que nos restringir em alguns campos específicos. Há ainda outra dificuldade, pois quando olhamos o indivíduo globalmente as expectativas e impressões subjetivas dão pouca possibilidade de avaliação pois são fatores puramente pessoais de um maior ou menor otimismo perante a vida". Continua Freud, que há ainda outro fator de dificuldade, que é a incerteza e conclui, que diante de tão grande tarefa, é melhor recuar e buscar uma pequena nesga digamos assim, retornando a parcialidade novamente.

Contemporaneamente a Freud, o físico E. Schrödinger demonstra a relatividade dos experimentos da física e da química quando observadas do ponto de vista atômico. Revelando nos princípios da termodinâmica e nos movimentos caóticos e desordenados dos átomos a necessidade de inclusão também na física do princípio da incerteza. Lança já no início deste século, uma crítica a especificidade e parcialidade da ciência ("corte arbitrário" de E.Morin) e a necessidade de uma possível articulação entre sujeito e objeto. Diz Scrödinger em seu livro "O que é vida" que :"meu próprio corpo forma parte do mundo real e os corpos de outras pessoas formam parte desse mundo objetivo e outros corpos também estão vinculados, formando os assentos das esferas da consciência. Mas só conseguimos um quadro satisfatório (cientificamente) do mundo porque nós nos retiramos do quadro. Temos portanto um quadro do mundo incolor, frio e mudo." Calor e frio, cor e som são sensações imediatas de nossa própria pessoa mental e que um perfil do mundo material só foi possível porque nos retiramos dele, deixando a semente futura para um pensamento científico mais complexo.

Construímos cultura, civilizações, marcas humanas de progresso e tecnologia que convivem com paradigmas de reações emocionais construtivas e destrutivas que nosso conhecimento racional, até então, dicotomizado através das diversas ciências não deu conta de integrar o Homem em toda sua complexidade.

Este Homem pesquisado de fora e aprofundado em pequenas partes, nos torna objeto inatingível, utópico, já que por partes não somos existentes, o entrelace delas que nos sustenta. Seus impulsos para a vida o transformam e transformam a natureza. Através da criatividade, dos vínculos e dos mistérios que nos fazem pesquisar e procurar respostas, inferindo em nossa vida individual, história geracional e meio ambiente...deixando rastros de progresso e destruição. A busca de uma convivência em harmonia do Homem e suas partes é questão essencial da vida e de sua continuidade, portanto questões vitais para o analista também..

Cada paciente que nos procura na clínica, de alguma forma mais objetiva ou não, está envolvido com estas questões essenciais : quem sou eu, o que estou fazendo com minha vida? Absorvido por um sintoma ele está em busca de encontrar sua capacidade de amar, de fazer renúncias instintuais, muitas vezes subtraída por sintomas psicossomáticos, neuróticos ou psicóticos. Buscar sentido para sua existência, sua pertinência , muitas vezes, resignificar sua história, identificar as posições inconsciente que ocupa na vida e na família, atrás de sua subjetividade. Nós como analistas e companheiros desta "viagem" perigosa e apaixonante nos tramites do inconsciente, vivemos também essa dicotomia científica entre o formal-acadêmico e a vivência real da clínica. Em "O Futuro de uma ilusão", vemos em Freud indagações profundas há respeito das civilizações, a incerteza de se fazer qualquer profecia a respeito do futuro da humanidade, já que funcionamos num duelo de vida e morte psíquico que se reflete no social, a necessidade de uma internalização de medidas de coerção, para dar segurança a uma unidade cultural, medidas estas que resgatam a perpetuação do valor da vida do homem, opostas ao desejo de matar, canibalismo entre outros.

Segundo ele, essas medidas de coerção, exigências necessárias a construção da civilização mas não podem ser apenas externas, e também não podem deixar de organizar a hostilidade humana , pois geram descontentamento e revolta, que visam destruir a própria cultura. Toda vez que os mecanismo sociais de coerção se distanciam demais da natureza de satisfação contraditória do ser humano, há um movimento contrário que rompe para uma nova ordem se restabelecer. Não é esse o estigma que a Psicanálise tem vivido hoje na mídia e no senso comum? De que é uma prática cara, longa e rígida?

O pensamento complexo é um movimento de resgate do sentido antropológico e filosófico humano que ficou obscuro diante de tanta tecnologia e descartabilidade da vida moderna. Uma possibilidade de "integração" científica que incorpora o entrelace de todos os campos da ciências seu observador comprometido com o que é observado, inclusive no campo ecológico, da relação humana e natureza.

A psicanálise enquanto prática é uma ferramenta poderosa na transformação das renúncias instintuais de cada ser humano, ela ajuda neste processo de continuidade da vida, individualmente seres que poderão no futuro decidir por uma nação ou por uma cultura. No entanto, a formação psicanalítica acadêmica, pela necessidade de ser mensurável, tornou–se cristalizada diante das mudanças sociais, culturais e econômicas do ser humano deste final de século. Estamos, como analistas revendo, a prática formal e a realidade da população que se beneficia dos atendimentos levando-se em conta as várias mudanças sociais e culturais

Esse "campo" que se constrói entre observado e observador , analista e paciente é o que se constituirá como analítico e dele haverá uma esfera previsível como outra imprevisível e inédita que não existia anteriormente, fruto da análise. Não podemos mais como analistas, "companheiros " de uma viagem afetiva, íntima e surpreendente para o analisando e para nós mesmos, imaginar que poderíamos ser apenas um catalisador, um depósito temporário de imagos infantis reprimidas da infância? Na prática somos muito mais comprometidos que isso! Por muito tempo essas questões me colocavam como analista , num paradigma entre prática – teoria e postura frente a realidade clínica no contato pessoal com o paciente, no meu compromisso intrínseco com sua vida psíquica que influência sua vida concreta e relacional e com o possível produto do trabalho terapêutico.

Quando Freud fez suas descobertas, ele rompeu com a ordem médica da época, os acontecimentos físicos eram vistos como orgânicos e ainda não havia a conceituação do inconsciente. Hoje a vida é muito diferente e a demanda das pessoas que nos procuram é outra. Está na hora de ampliarmos e modificar alguns rigores formais que marcaram a clínica psicanalítica, inclusive culturalmente. Distanciando um pouco da intenção inicial do trabalho que é promover crescimento afetivo, desenvolver possibilidades para lidar com as dores da vida de forma mais criativa e quem sabe feliz. Claro que temos normas, métodos e ética, mas sendo revistas e atualizadas para nunca sairmos dessa "teia" que envolve observado e observador.

Interessante constatar que outras ciências como a biologia e a física se desenvolveram paralelamente no final do século passado, uma chegando ao código genético que perpetua a vida e nos processos de mutação que a perpetuam, mas consideram acaso-mudança e improbabilidade . Por sua vez a física chega ao salto quântico, que explica o aleatório e quase caótico dos movimentos atômicos, mas que em escala conjunta formam moléculas estáveis. As duas ciências incorporam o não determinismo estático a partir de então. A psicanálise, também vem se desenvolvendo há um século e hoje, seus métodos podem incluir esse inesperado, a surpresa que o encontro analítico propicia. Há uma subjetividade inconsciente , vai além do "setting "analítico, um compromisso ético e solidário com a dor, com o ser humano que precisa ser considerada. Um encontro analítico apenas, pode marcar o paciente promovendo "insights" posteriores , muitas vezes mudando seu destino em relação a si mesmo e a sua forma de lidar com a vida, independente da regularidade do processo.

Pensar o ser humano dentro da complexidade, toda suas áreas como pertinentes de significado sejam elas mensuráveis ou não, verificando que há uma possibilidade de causalidade e acaso a cada encontro e que as coisas nem sempre seguem um padrão de repetição, mas também possibilitam mutações e criações e isso também é esperado nos processos mentais da vida inconsciente como na realidade .

Dentro desta visão o encontro analítico é uma fonte de estruturação e desestruturação, mas também de descoberta para o analista e analisando, pois nenhum dos dois sabe da possível criação já que ela é inédita e surpreendente para ambos.

A meu ver esse é o grande abraço que a psicanálise pode receber do pensamento complexo, e pode oferecer as outras tantas ciências exatas e humanas que agora tentam conversar entre si fraternalmente A força que os nossos invisíveis , porém ativos , processos inconscientes determinam de forma construtiva ou destrutiva a vida pessoal de um ser humano refletindo-se até mesmo no destino social de um país e planeta.

Portanto o paciente analítico não pode ser um ser virtual, que tem que cumprir exigências financeiras desumanas, números de sessões impossíveis de serem cumpridas nos dias atuais. A formação acadêmica do analista também o submete a essa virtualidade selvagem, enfim uma psicanálise muito diferente da concebida por Freud, que buscou trazer o estudo da alma para a ciência a fim de propiciar alívio de sofrimentos reprimidos, a descoberta da pulsão de vida e de morte e a necessidade do ser humano descobrir sua subjetividade e transporta-la para suas ações sociais e culturais

Estamos em busca de um aprofundamento ético que uma análise exige, transformar e depurar esse ser humano para que ele esteja mais envolvido consigo mesmo, sua subjetividade e com o meio ambiente. Rever esses conceitos e posturas é fundamental para a psicanálise neste final de século.

Ana Laura L.Galvão Kovács
Psicóloga Clínica / Psicanalista
Rua Pascoal Moreira, 337- Jardim Esplanada
São José dos Campos-SP
avkovacs@netvale.com.br

Bibliografia

Schrödinger,Erwin,1887-1961. "O que é Vida? ".Ed.Unesp.1997

S.Freud, "O Futuro de uma Ilusão". Obras Completas de S.Freud,RJ, Imago Ed. 1979.


Clique aqui para voltar à página dos Estados Gerais da Psicanálise de São Paulo
  http://www.oocities.org/HotSprings/Villa/3170/EG.htm