Provocando
o inconsciente.
Questões sobre o psicodiagnóstico na clínica psicanalítica
Ana Maria Sigal Rosenberg
É um verdadeiro prazer poder compartilhar com vocês algumas questões clínicas que há longa data têm sido objeto da minha reflexão.
A questão do diagnóstico é uma problemática que tem levantado sérias polêmicas nos últimos anos. Portanto entendo que é importante repensar dentro da psicologia clínica o lugar do psicodiagnóstico e dos materiais projetivos utilizados, porque nada atenta mais contra o futuro de nosso trabalho que a atitude de ignorar as críticas e recusar a percepção de certas evidências. É necessário fazer trabalhar nossas idéias e refazer os objetivos para garantir o lugar de uma atividade que traz subsídios importantes à clínica psicológica
Precisamos pesquisar os novos contextos nos quais se desenvolve nossa prática, e poder refazer caminhos. Uma idéia tão aceita como a de psicodiagnóstico, faz 20 anos, hoje está sendo questionada e deve ser re analisada à luz dos novos desdobramentos da ciência e do conhecimento.
A história existe porque somos nós que a vamos construindo; nesse sentido, faz-se necessário expor nossa prática e nos confrontarmos com o pensamento crítico da modernidade.
Não somos indiferentes à necessidade de abordar os processos que vão tecendo a malha dinâmica da complexidade do indivíduo. Pelo contrário, à medida em que se abre mais o leque das possibilidades de indicação terapêutica (terapias focais, terapias breves, de crises, de grupo, de objetivos limitados, psicoterapias de orientação analítica, família, casal), na medida que o trabalho multidisciplinar cresce e outras técnicas colaboram nos processos terapéuticos, mais importante se revela a necessidade de mapear as diferentes articulações que vão construindo a subjetividade.
É necessário esclarecer qual o conceito de diagnóstico que utilizamos, assim como desfazer os equívocos que vêm tanto das ciências médicas, como da psicanálise.
As disciplinas mais clássicas como a medicina e o direito pedem ao diagnóstico mais certezas, maior rigor. Esperam do psicólogo clínico, através do psicodiagnóstico, respostas que os orientem na tomada de decisões. É possível responder à esta demanda?
Os psicanalistas consideram-no desnecessário porque se utilizam das primeiras entrevistas para elaborar as hipóteses diagnósticas que, em caráter provisório, orientam seu fazer. Estas hipóteses, pela natureza do trabalho analítico, são postas em suspenso , e sua confirmação está sempre relegada a um devir.
No campo da clínica é necessário então, distinguir entre elaborar hipóteses diagnósticas e elaborar um psicodiagnóstico, incluindo neste a utilização de técnicas auxiliares. Recusa-se, as vezes, valor ao psicodiagnostico porque este supostamente carregaria em si a pretensão de dar um veredicto, enunciar uma verdade sobre o saber do sujeito. Se não esclarecemos os conceitos, se não questionamos os preconceitos, se não tomamos posições , se permanecemos numa atitude de auto-suficiência ou desconhecimento, estamos fadados a perder o trem da história.
Não tenho visto, nas supervisões nos últimos anos, pedidos de psicodiagnósticos de adultos, a não ser pela justiça (guarda de filhos, abuso sexual, situações de adoção) e na área de recursos humanos ,áreas em que pareceria ainda manter um lugar de privilegio.
As crianças continuam sendo um alvo preferido. Os pedidos de diagnóstico são requisitados pelas escolas, os pediatras e os próprios psicanalistas que trabalham no campo da infância porque se defrontam com uma subjetividade em formação, onde o diagnóstico diferencial pode orientar encaminhamentos de uma forma mais precisa .
Mas não podemos negar, frente a este panorama, que o psicodiagnóstico está sofrendo um questionamento no campo da psicologia clínica, e é por esta razão que me pareceu interessante, hoje, tecer algumas considerações sobre os elementos que determinam estes conflitos, para retomar certos caminhos e devolver-lhes seu estatuto.
Gostaria de lembrar que, para Freud, desde bem cedo, ou seja, desde 1895, com "Psicoterapia da histeria", o tema do diagnóstico foi uma preocupação; como nos diz Joel Dor (1), "sempre se confrontou com a ambigüidade em torno da qual se coloca o problema do diagnóstico no campo da clínica psicanalítica: estabelecer precocemente um diagnóstico para decidir quanto à condução da cura, enquanto a pertinência deste diagnóstico só receberá confirmação após um certo tempo de tratamento e sujeito a permanentes modificações.
Tomaremos três variáveis que, a meu ver, precisam ser revisitadas quando se elabora um psicodiagnóstico porque, às vezes, são responsáveis em parte pelas dificuldades que apontam a crise.
1)Uma certa esquematização que percorreu este campo, na qual se trabalhou durante bastante tempo com uma idéia estereotipada do que deveria ser feito para abordar o sujeito psíquico. Os kits pré-formados aplicados sem sentido crítico. As chamadas baterias de testes, aplicadas sistematicamente e de forma indiscriminada a todos os pacientes, sem um estudo prévio, a partir das entrevistas das necessidades e as questões a pesquisar, burocratizou esta prática. Na escolha de materiais, assim como na condução do processo, deve-se manter o critério de singularidade que nos é tão caro quando abordamos a subjetividade. Para cada paciente deve se pensar uma estratégia diagnóstica, que inclusive poderá ser modificada no decorrer do caminho. Se com duas entrevistas e uma hora lúdica obtemos os dados que procuramos, é inútil e insano submeter a uma criança a um processo mais longo.
2) A falta de novas produções em testes projetivos que nos levam a usar figuras anacrônicas, o que às vezes, provoca resistências em lugar de convocar a fala; assim como a interpretação estereotipada, ou atribuição de sentidos, colocou as técnicas projetivas em uma posição suspeita.
Dizer que uma produção feita a esquerda da folha fala da ligação materna e feita a direita fala do pai, invalida todo critério de pesquisa séria. Os elementos só poderão ser lidos como textos onde as partes adquiram sentido na sua relação de inclusão numa cadeia significante.
3) A elaboração de diagnósticos nosográficos, classificatórios enunciados com caráter de certezas.
Trabalharei algumas destas questões expondo-as como uma rede de pensamento onde as idéias se entrelaçam .
Para começar vale a pena analisar o sentido tomado pela palavra diagnóstico: de fato, esse termo encontra-se carregado de conotações que entram em conflito com a especificidade de nossa formação como psicólogos clínicos e psicanalistas, pelo caráter de certeza que o envolve.
O "Aurelio" define diagnóstico como: o conhecimento ou determinação de uma doença pelos sintomas ou mediante exames diversos.
Isso significaria que, em clínica psicológica, diagnosticar equivaleria a determinar a doença.
A palavra doença vem da medicina, e estando por sua vez tingida por todas as dificuldades decorrentes do peso da ordem médica. A medicina elabora um saber, mas este é mais do que aquilo que a própria ciência elabora, este saber está, como em todas as ciências, permeado por conotações que a tradição e as relações de poder, atribuem a quem enuncia este discurso. A ordem médica, neste sentido, tem uma função social particular, como profissão organizada e influente. Sua palavra tem o peso do poder de quem enuncia, tem a força de veredicto. Trabalha com o conceito de são e de doente, dicotomia esta que não é grata ao campo da tradição psicológica.
No campo do diagnóstico psicológico e da saúde mental as coisas têm se complicado muito nos últimos anos. A ordem médica se impõe tentando assumir funções de regulação e de controle dos conceitos de saúde e doença, apontando cada vez mais para uma medicalização da saúde mental. Se observamos o que tem ocorrido com o D.S.M IV (*)*, veremos que diversos índices classificatórios oferecidos pelos organismos internacionais vão em direção oposta a uma proposta de racionalidade compreendida em suas dimensões de complexidade e conflito. Não por acaso, as categorias de neuroses têm desaparecido nas últimas classificações e tem progredido a descrição de sintomas e síndromes. Estes propiciam a generalização, a linearidade e a causalidade em contraposição ao heterogêneo ,ao diverso e ao diferente.
Síndrome do pânico e síndrome obsessivo-compulsiva são as novas classificações que vieram ocupar o lugar de quadros que se agrupavam mais por um tipo de funcionamento peculiar do que por uma serie de índices fenomenológicos determinados.
Assim, se não se define de que tipo de diagnóstico estamos falando e para que o fazemos , entra-se num campo escorregadio. Podemos ser mais um elemento que contribua para aumentar a medicalização como forma de desaparição dos sintomas e menos para entender as causas e dinâmicas das perturbações. Medicar um paciente pode ser necessário; entretanto, a medicalização como conduta clínica visa conter o sujeito e o conflito atentando contra a liberdade do indivíduo. Medicaliza-se como antes se internava, na tentativa de fazer calar a doença
O diagnóstico, entendido como nosografia, não se dirige à compreensão do paciente, a abordar sua subjetividade, mas nomeia-se como uma forma de cristalizar o sofrimento numa enfermidade mental classificável, com a óbvia conseqüência de fazer desaparecer a singularidade do paciente, possibilitando uma burocratização da nossa prática.
No campo da medicina o trabalho diagnóstico baseia-se em variáveis observáveis, onde a regularidade, a repetição, a fixidez das ocorrências determinam o tipo de intervenções, tentando estabelecer uma relação causa efeito, mas mesmo assim temos que evitar o risco de entrar numa visão positivista, a- histórica e mecanicista da origem, que determina as causas das condutas humanas. No nosso entender, a doença orgânica também está no campo das condutas humanas, da conduta de um corpo que adoece. Portanto mesmo no campo da medicina preferimos falar de sujeitos que sofrem e não de doenças desencarnadas da subjetividade. É preciso também em medicina , rever o critério de diagnóstico.
Que significa para um psicólogo clínico, desde nossa perspectiva, diagnosticar?
Diagnosticar significa reunir uma série de indícios que nos permitam abordar o modo de funcionamento e a origem de certas manifestações clínicas. Diagnosticar ,neste sentido, é interpretar, construir hipóteses que nos permitam dar conta do trabalho simbólico, junto aos conflitos que se estruturam no caminho de construção da subjetividade, assim como abordar as formações imaginárias que se apresentam como armadilhas do desejo na sua satisfação.
Como nosso referencial teórico é a psicanálise, será necessário nos debruçarmos sobre o desenvolvimento da subjetividade para entender se o sujeito encontra-se detido ou silenciado pela inibição, estereotipado pelo sintoma ou regredido, se - frente à impossibilidade de encontrar novos caminhos que lhe permitam avançar - vê-se obrigado a percorrer velhos caminhos de elaboração. A psicanálise pressupõe um psiquismo que funciona segundo moções pulsionais com representantes psíquicos e um quantum de afeto. Pensar psicanaliticamente implica pensar no caráter sexual do inconsciente, com sua categoria psíquica de desejo, resultante da inscrição da pulsão no fantasma.
Para os psicanalistas e os psicólogos clínicos que trabalhem com a teoria psicanalítica, está sempre presente o caráter imprevisível dos efeitos inconscientes e como nos diz Joël Dor (2), "devemos constatar que não há inferências estáveis entre as causas psíquicas e os efeitos sintomáticos na determinação de um diagnóstico".
A psicanálise como disciplina abre um amplo panorama a partir do momento que rompe com a linha divisória entre saúde e doença. Freud nos confronta com a evidência de que os mecanismos que operam na formação da subjetividade e na patologia são semelhantes. Justamente entre os elementos fundadores do pensamento freudiano encontramos em destaque o papel central do conflito como uma ordem de experiência que, tanto na vida social como na cura e na cultura, produz movimentos de abertura. Através da metapsicologia revalorizamos o conflito como um elemento que cria movimento e gera subjetividade. Descentrando-o do campo da patologia, podemos pensar uma clínica no campo da pulsão.
Qual é a importância disto?
Ao se perceber o caráter positivo das moções pulsionais confrontadas, os sintomas não mais se mostram como índices de patologia, mas aparecem como discursos que abrem caminho em direção a verdade do sujeito, na sua dimensão inconsciente. A este movimento não podemos opor um sistema encapsulador, restritivo e cristalizante como é uma nosografia classificatória.
Manter a palavra diagnóstico, portanto, tem sido conflitante porque sabemos que a linguagem não tem um estatuto trans-histórico nem é fácil fazê-lo funcionar fora de um contexto que o predetermina. Muitas vezes, seu uso cotidiano acaba aprisionando-nos no universo semântico dos sentidos e intenções previamente conhecidos.
Preferimos portanto pensar em "Processo de estudo das dinâmicas psíquicas" e quando retomarmos o termo diagnóstico, o faremos estritamente com esta conotação.
Vejamos que desdobramentos o pensar em processos implica.
O sentido de processualidade acentua a importância de uma estrutura em movimento. O psiquismo que nos propomos a estudar tem a característica de ser uma estrutura em movimento autopoiético e de encontro com a alteridade, onde a formação da subjetividade está em um permanente devir, e onde já não mais pensamos a formação do sujeito como uma série de estratos que vão se adicionando por somatória. O tempo da ressignificação faz com que exista um reordenamento permanente das relações do sujeito com suas fantasias, lembranças encobridoras, precipitados identificatórios que geram nova subjetividade.
A idéia de determinismo psíquico, mesmo na sua compreensão de sobredeterminação, começa a ser revisada em favor das mudanças teóricas que tem nos oferecido a física atual. As teorias do caos e da complexidade, onde podemos falar de incerteza no seio de organismos ricamente organizados, (3) podem ser retrabalhadas nas ciências humanas. O conceito de estruturas dissipativas expressa a possibilidade que têm os materiais e os sistemas de adquirir, por uma capacidade de auto-criatividade, novas formas organizativas. A mudança de uma variável por insignificante que seja, pode adquirir um valor transformador. É preciso estarmos abertos a organizações simbólicas novas, disruptivas e inesperadas, mostrando a capacidade produtiva de um organismo em permanente movimento, atravessado constantemente pela realidade do presente, do passado e do futuro, mas como um movimento dentro do movimento.
Falamos do tempo, num sistema aberto, onde passado presente e futuro não respondem a uma linearidade, mas formam parte de uma mesma realidade.
Estes elementos que acabamos de citar trazem um ar novo e permitem revalorizar o processo de diagnóstico, que assim reencontra um estatuto que lhe permite ocupar o lugar que merece na clínica.
Pela forma em que nos dispomos a fazer um diagnóstico podemos colaborar a desconstruir as categorias psicopatológicas, para adentrarmos na gênese da formação dos processos e na dinâmica dos mecanismos.
Portanto, um diagnóstico neste sentido visa abordar a articulação dos processos, o encadeamento das seqüências e as transformações surgidas no decorrer de uma história individual e singular, onde a teoria funcionará como balizadora que nos dá apoio, e nunca, como pensamento esquemático pretendendo dar conta da complexidade própria de nosso objeto de estudo.
A metodologia com que nos debruçamos sobre o material prioriza sempre a elaboração de hipóteses presumíveis sobre as correlações e modos de funcionamento. Não se trata aqui de descobrir o discurso latente que existiria por trás do discurso manifesto, mas de encontrar indícios que nos permitam construir produtivamente hipóteses de um funcionamento ativo e não estanque, já que a própria construção do aparelho psíquico, como nos diz Freud na Carta 52 (4), decorre de sucessivas reorganizações e traduções que sofrem um reordenamento segundo novos nexos. Há permanentes retranscrições que, acrescentaríamos, não guardam necessariamente a lógica do seqüencial e linear, mas nas quais permanentemente reinam situações de caos e desestabilização dos sistemas, que vão criando novas complexidades e, a meu ver, novas complexidades nas inscrições psíquicas e nos fluxos de investimento.
Para se fazer um diagnóstico, coagula-se a história do sujeito, mas, como num material genético, sustenta-se no momento do corte tanto o presente como o passado e o futuro. Mesmo parecendo paradoxal coagula-se em movimento. Presentifica-se num movimento transversal e longitudinal a história do sujeito.
Nossa hipótese assim entendida não fala de uma arqueologia dos processos psíquicos. Fala de um devir que se faz presente projetando-se ao futuro
O eixo que orienta nosso diagnóstico será dado pelo estudo dos processos que propiciam o funcionamento psíquico.
Da psicanálise à psicologia clínica.
Às vezes, a partir da psicanálise, questiona-se o valor e a metodologia de realização de um diagnóstico. Entendemos que estas dificuldades devem-se a certas confusões relacionadas com o método e o objeto de estudo que, sem dúvida, são diferentes na psicologia clínica e na psicanálise.
É interessante destacar que o método que a psicanálise propõe, para o conhecimento do inconsciente dentro da terapia psicanalítica, é a associação livre para o paciente e a atenção flutuante para o psicanalista. A abstinência é outra condição para a condução da cura. Esta não deve ser confundida com passividade.
O ativo da abstinência no tratamento psicanalítico está na posição atenta e disponível com que se oferece o analista na escuta, única técnica de investigação de que dispõe. Ele tenta ouvir, como nos diz Dolto (5), "aquele que está presente num desejo que a angústia presentifica e oculta ao mesmo tempo".
O psicanalista assume a condução da cura sem assumir um projeto para seu paciente em função de seu desejo, sem marcar um objetivo a ser atingido, sem se atribuir o saber do que é bom para o sujeito em análise. Sua atitude ativa esta em permitir que o sujeito se desaliene.
No caso do psicólogo clínico em processo de elaboração de um diagnóstico, que em alguns encontros aborda o estudo de constituição dos processos psíquico e suas dinâmicas, a metodologia não será a mesma.
Não é possível utilizar-se da associação livre e da atenção flutuante.
A atenção é dirigida a obter informações que são de nosso interesse por meio de uma conduta ativa de provocar a produção . Por momentos o sujeito associa livremente, outras vezes, pedimos associações, frente a um material determinado ou uma produção gráfica.
Esta diferença é o que legitima no campo da pesquisa da subjetividade, a introdução de materiais mobilizadores, como testes , hora de ludo em caráter diagnóstico e produções gráficas.
No caso do Psicodiagnóstico, o estar ativo requer a condução do entrevistador que se encontra em atitude de pesquisa, à procura da produção de determinados materiais que lhe interessam para elaborar suas hipóteses. Seu objetivo é outro: não há um compromisso com a cura, há um claro projeto de investigação que aponta para resultados. Escolhe um ou outro material para mobilizar produções que permitam investigar a sexualidade, a relação com o mundo, uma defesa determinada contra a depressão. O psicanalista está à espera, a espreita daquilo que o sujeito deixa vir. A psicanálise, por sua natureza, não é um procedimento controlado de produção de conhecimento e observação (6). No psicodiagnostico, o psicólogo clínico está em busca de algo, tenta produzir efeitos, obter material que lhe seja útil para o fim que persegue .
Cada um, legitimado na sua ação, trabalha com um setting diferente.
Ambos em transferência, priorizam a escuta na sua dimensão de saber. Ambos sabem da distância que separa o dito do não dito.
A partir do lugar daquele que recebe, há algo mais a ouvir, além das palavras com que o paciente organiza seu discurso; esse algo mais que ouvir é o escutar. A função de escuta nos permite estar abertos para fazer os sentidos emergirem. É "a posteriori" que este material poderá se organizar reconstruindo redes de significância.
Tanto para o psicanalista como para o clínico, o que exploramos ou pesquisamos não são estruturas fechadas, mas modos de funcionamento do sujeito em suas várias dimensões. O tempo de que dispomos é diferente para cada um deles.
Sobre o objeto e a interpretação
O objeto de conhecimento num diagnóstico vai além das produções do inconsciente, se refere ao aparato psíquico na sua totalidade, referindo-se ao sujeito incluído no mundo com suas produções sociais e culturais, mas desejo reafirmar hoje a necessidade de provocar o inconsciente, de fazê-lo falar, fazendo falar o texto.
Provocar e convocar no lugar de atribuir sentido ou outorgar interpretações fechadas que padronizem as respostas. Provocamos e permitimos que emerjam sentidos próprios que o sujeito encontrará a partir do material apresentado. Convocamos a construção de sentidos novos que nos facilitarão a compreensão das possibilidades criativas e reorganizativas do sujeito. Se a idéia que nos guia é pensar que nos testes ou nas próprias provas que aplicamos estão as respostas que nos permitiriam o acesso a um aparelho psíquico estruturado, estamos num caminho falso. As provas em si não têm a meu ver outro valor além daquele que convoca o sujeito a falar. São as que provocam para que um discurso seja enunciado.
Retornando a idéia do objeto de estudo e tendo já definido que operaremos com o esquema referencial teórico psicanalítico, pensando que nossa pesquisa não se dirige só ao inconsciente, o que estudar? O sujeito? A personalidade? As funções conscientes? As habilidades? O sexual? As identificações? Os conflitos?
Se pretendemos fazer um estudo dos processos psíquicos a partir da teorização freudiana, vários serão os convidados. Convocaremos o inconsciente, também o ego e o superego.
Convocaremos a metapsicologia, nossa conhecida bruxa como Freud a chama em "Análise terminável e interminável" (7), e analisaremos os processos psíquicos em termos tópicos, dinâmicos e econômicos. Será preciso abordar o processo primário e secundário e a relação entre instâncias, além de pensarmos na constituição édipica e seus desenlaces identificatórios.
Analisaremos as funções do ego, o que nos abre caminho para pesquisar as relações do sujeito com a realidade: capacidade de síntese, memória, inteligência, serão pensadas levando-se em conta a relação com a dimensão inconsciente que as determina, o que portanto sempre implicará numa análise qualitativa dos processos.
Desenharei uma cartografia ou mapeamento de conceitos que têm sido de utilidade nas nossas pesquisas, sobre os processos de formação da subjetividade, já que podem balizar as nossas procuras. É fundamental que não se perca a idéia da dimensão histórica singular e o aspecto processual com que estas noções podem ser abordadas e que estas não sejam aplicadas como uma forma de forçar a teoria na clínica.
Édipo, identificações, sexualidade, sexualidade infantil, defesas, sintomas, inibições, sublimações, simbolizações, atos falhos, sonhos conflitos, relações objetais, narcisismo, auto-erotismo, ego e suas funções, superego, ideal do eu, autocrítica, traços de caráter, compulsão a repetir, imagem corporal, valores, sofrimento, projetos são algumas das províncias que podemos recorrer e conhecer através da escuta e das produções do sujeito. (8)
Entre os diversos métodos aos quais recorremos para levar em frente esta pesquisa, a entrevista continua sendo nossa ferramenta principal, porque nos permitirá contextualizar a singularidade na história do sujeito.
Mas a mesma entrevista que tem o caráter de produção livre é, no caso do psicodiagnóstico, transformada em entrevista semi-aberta. Colocam-se questões que permitem ao sujeito discorrer sobre áreas de seu fazer que quiçá não seriam abordadas de forma espontânea.
O material projetivo provoca e convoca elementos que põem em jogo diversas produções. Estimula criações que vão desde o modo em que um sujeito se insere no mundo até a forma de organizar seu pensamento em função de uma racionalidade que lhe é própria. Interpretar estas produções significa conjecturar, duvidar, já que a dúvida é imanente, inerente e constitucional ao processo de interpretar. Estamos já no campo das técnicas projetivas e queremos marcar aqui uma diferença fundamental entre interpretar e demonstrar. A demonstração pretende uma certeza, que se opõe à conjectura proporcionada pela interpretação.
Tanto na entrevista como nas Técnicas Projetivas interpretamos, construímos e reconstruímos laços, relações, sentidos. Possibilitamos a historicização e propiciamos um relato que o sujeito nos dirige com a crença de que somos possuidores de um saber que nos permitirá enunciar alguma verdade. É da ética do analista saber que este saber é suposto e não se confundir na ilusão imaginária que possui a verdade, que possui o tal saber sobre o sujeito e por tanto é capaz de enunciar um diagnóstico. O risco é deixar ao sujeito para sempre amarrado às suas palavras que o refletem numa imaginarização impossível de ser algum dia simbolizada.
Temos, com freqüência, a experiência de receber pais angustiados por um diagnóstico de psicose ou outros que abandonam seus filhos à sua sorte porque lhes foi dito da incapacidade destes para superar certas dificuldades. Já ouvimos pacientes se apresentando como neuróticos ou perversos sem ter muita idéia do que os está nomeando.
Nesta empreitada encontraremos verdades parciais, incompletas, sempre com o caráter de hipóteses, que podem nos orientar nas indicações terapêuticas.
Todos os itens mencionados anteriormente como tópicos aos quais nosso interesse podia se dirigir, não são observáveis, não são fatos, são impossíveis de serem medidos, palpáveis; são construções, construtos teóricos, cujo sentido dependerá da forma em que se tecem na trama da subjetividade. Assim, nossos enunciados não terão nunca caráter de certeza.
Quiçá, neste momento, valha a pena lembrar Paul Ricoeur, que nos alerta dizendo que, contra o positivismo das ciências naturais e da psicologia experimental define-se a especificidade da interpretação, que será, nas ciências da cultura, a ferramenta proposta em lugar da medição.
É portanto com a interpretação como instrumento que vamos abordar nosso objeto de estudo. Utilizaremos um processo que nos permita estabelecer nexos que não estão no próprio objeto, mas que possibilitem aproximarmo-nos dele. Os nexos que se instauram são subjetivos e dependem também do entrevistador.
Tomaremos o exemplo de dois recursos interpretativos: Recorrência e Convergência , que são articuladores que nos ajudam a pensar na repetição que insiste.
Entendemos por Recorrência a repetição de seqüências ou produções, sejam estas verbais, lúdicas ou gráficas, que sob uma mesma forma significante transportam um sentido semelhante. No manifesto há repetição.
Daremos um exemplo. Uma paciente adulta, sempre que faz referência ao feminino, mostra elementos que conservam uma forma de debilidade, fraqueza, instabilidade etc., recorrendo ou insistindo assim na forma de expressão de uma certa temática, seja esta consciente ou inconsciente.
Porém, no sentido da convergência, podem aparecer seqüências significativas cuja forma aparente seja absolutamente diferente, mas que convirjam no mesmo conflito. Diversos significantes apontam subterraneamente sua relação na mesma rede de significância, aparecendo como formações reativas ou transformações no contrário. Continuando com o exemplo anterior, aparece na entrevista uma queixa relacionada com o raciocínio matemático, dificuldades no trabalho em relação ao números. Apurando a escuta, inferimos que, na singularidade da sua história, a matemática está ligada com o feminino e que sua dificuldade decorre da identificação entre a matemática e a impossibilidade das mulheres de aprendê-la, já que seu pai esperava dos filhos homens esta habilidade, que significava potência.
Há uma convergência de elementos cujas fachadas são diferentes. Estamos no campo da interpretação, já que nenhuma destas relações é intrínseca ao material oferecido.
O sentido é criado a partir de uma construção possível. É o entrevistador que permite a sua emergência, tomando todos os cuidados para não atribuir sentidos. Estes estão virtualmente contidos na produção.
Ao apresentar um material, podemos encontrar, numa produção verbal, os elos perdidos que nos facilitem fazer o caminho inverso do recalque que separou as representações do afeto. Podemos reconstruir o caminho de operações psíquicas como deslocamentos ou condensações, encontrando os modos habituais de defesa. Pela insistência de uma denegação, podemos compreender a importância de uma figura que se insiste em desconhecer, desenhar ou nomear. É preciso ser cauteloso com a obsessão pelo significado, que costuma ser uma armadilha para nosso interesse de construir as redes por onde se desdobra o psiquismo. Atribuir sentidos é fixar significados, processo exatamente contrário daquele que nos permite abordar a singularidade. Dizer que os dentes remetem à agressividade pode ser um erro grave; num paciente em particular, podem ser signos de crescimento e até de lembranças infantis gratificantes, porque associadas à alegria dos pais pela tarefa cumprida que acabava com a premiação pelos seus cuidados.
Assimilar objetos pontudos à falicidade, é obturador e infantilizante, fechando o caminho da escuta para qualquer associação diferente própria do paciente em função de sua história. Este tipo de interpretação opõe-se a todo caminho produtivo e, geralmente, a atribuição de sentidos, nos permite falar mais das projeções do entrevistador que das redes associativas da entrevistado. Cumpre assim a mesma função que o preconceito, na vida social: empobrece, bloqueia, limita.
Devemos tomar a produção do sujeito, seja esta gráfica ou verbal, como um texto onde os significantes adquirem seu valor em função da rede na qual estão imersos. Não há correspondência de identidade e sim transporte de sentido que surgirá em função dos nexos que o sujeito instaura.
O gráfico como produção
Estes nexos não precisam ser da ordem do verbal, estamos tomando o critério de discurso em seu sentido mas amplo. Por esta razão é que a produção gráfica é tambem importante na execução de um processo diagnóstico; a produção gráfica tem uma autonomia semiótica que não é só entendida à luz do verbal (9). O figural tem um sentido forte na obra freudiana. Já, desde o estudo dos sonhos, a imagem tem um valor de privilégio e pregnância. O desenho facilita expressões que são da ordem do processo primário, onde tempo e espaço se fundem, em traços a-temporais, não ordenados em função de uma lógica tempo-espaço.
Como nos diz Freud no cap 7 da Traumdeutung (1900),"na lógica do processo primário o tempo devém espaço e os sistemas têm um ordenamento por simultaneidade que constitui espacialidade". Estas manifestações são facilitadas pelos desenhos onde, às vezes, aparecem as marcas primevas em um registro quase ideográfico que, sem contar histórias ,nos põem em contato com elementos recalcados primitivos.
Não é difícil estabelecer uma conexão entre os materiais projetivos e os restos diurnos dos quais Freud nos fala na interpretação dos sonhos. Estes materiais projetivos, ou cenas provocadoras de associações são oferecidos ao sujeito como iscas que podem ser utilizadas pelo desejo inconsciente. Por que os materiais projetivos nos são de utilidade nestes casos? Porque, assim como nos diz Freud para os restos diurnos, é mais fácil desarmar a censura já que estes se servem de elementos aparentemente insignificantes. Facilitam as associações mais que as recordações carregadas, que oferecem resistência e prestam-se a entrar em contato com o desejo infantil.
Os materiais projetivos não só vão buscar algo ao inconsciente, como se oferecem ao inconsciente como engate necessário para uma transfêrencia.
Até aqui nos referimos às dificuldades intrínsecas ao próprio processo e às problemáticas com que nos defrontam as palavras utilizadas e a necessidade de definir sentidos.
Para finalizar, encararemos mais uma dificuldade que tem a ver com a demanda, ou seja, com quem nos pede e para que nos pedem um estudo dos processos psíquicos que determinam as condutas do sujeito
Sabemos que não podemos falar de uma investigação única, padronizada, que será feita em todos os casos do mesmo modo. É necessário pensar que a demanda determina em grande parte a especificação de nosso objeto. Tanto a demanda como o demandante nos determinam. Se o diagnóstico é pedido por um psicanalista, um professor, um neurólogo, um juiz, ou um médico clínico, isso pode propiciar buscas diferentes. Saber nos orientarmos nesta pesquisa, escolher os materiais que achamos de maior interesse, não sobrecarregar o entrevistado com provas inúteis, ter uma atitude ativa e crítica é de fundamental importância.
Alguém pode nos pedir uma avaliação da inteligência de um sujeito. Que conceito de inteligência nós temos?
Do meu ponto de vista, e coerentemente com tudo o que já expus , é impossível pensar em avaliação ou medição da inteligência em si. Podemos pensar, mais uma vez, no funcionamento dos processos intelectivos e suas condições de produção. Faz-se necessária a consideração dos fatores emocionais que determinam as produções intelectuais, assim também como de suas condições sociais, antropológicas e econômicas. Isto pressupõe uma concepção determinada do objeto de estudo, que por sua vez irá influir sobremaneira tanto na elaboração das hipóteses que enunciaremos quanto nos métodos que utilizaremos para sua avaliação.
A consideração daquele a quem será dirigido o diagnóstico também irá nos confrontar com o problema ético da utilização dos resultados. Não podemos nos omitir em relação ao uso que será feito deste material. A relação entre o público e o privado deve ser questionada quando se trata da abrir a privacidade de um sujeito para um outro que pode utilizar a informação até contra o próprio sujeito, e mais ainda quando a liberdade, enquanto ética do desejo, pode se ver em risco.
É interessante destacar que possuímos material que nem o próprio sujeito, pelo menos em suas esferas conscientes, possui. A questão torna-se mais premente quando o diagnóstico é solicitado visando-se determinar ações que possibilitem condutas contra ou a favor do sujeito. Insistimos, portanto, na necessidade de repensar nossa prática em todos os seus possíveis desdobramentos, e assumindo a responsabilidade ética que ela implica.
Finalizarei minha exposição citando Ilya Prigogine, prêmio Nobel de química de 1977:
"Compreender uma história não é reduzí-la a regularidades subjacentes, nem a um caos de sucessos arbitrários. É compreender ao mesmo tempo as coerências e os sucessos".
NOTAS
Joel Dor, Estruturas e clínica psicanalítica.Rio de Janeiro,Taurus editora 1993 pag13
* Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais da Associação Psiquiátrica Americana.
Joël Dor. Estruturas e clínica psicanalítica,Taurus Editora Rio de Janeiro 1993 pag19
Acho interessante consultar bibliografia desta temática ,já que não é a minha intenção desenvolver estes temas ver: E.Morin, Introdução ao pensamento complexo,Lisboa, Instituto Piaget.
I.Prigogine O fim das certezas. Tempo Caos e as leis da natureza" São Paulo,UNESP,1996
Alcimar A. de Souza Lima, Psicanálise e Sedes: uma tradição renovadora. Percurso n 20 São Paulo1998
S.Freud, Carta 52 de Freud a Fliess, Obras Completas, Amorrortu tomo I
Maud Mannoni .La primera entrvista com el psicoanalista.Bs.As.Granica 1973
Para mais informação ver: Luis Augusto Celes, "Da psicanálise a metapsicologia: Uma reflexão metodologica" na internet Estados Gerais da Psicanálise
S.Freud, Análise terminável e interminável. Bs As. Amorrortu Ed.,tomo xxiii pag 228
Para ampliar estas ideias ver Luis Horstein, "Introdução a Psicanálise" cap I, A entrevista psicanalítica. Escuta 1989
Ana Maria Sigal Rosenberg. Psicanalise com crianças, Um caldeirão fervendo, Percurso N 20 1998
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