Efeitos transformadores da clínica psicanalítica.
Uma nova forma de abordar o trabalho com os pais.

Ana Maria Sigal Rosenberg

 

Vou me permitir, recolocando algumas questões teóricas, fazer um pequeno rodeio na minha exposição, que abordará o tema dos efeitos transformadores da clinica psicanalítica, que de fato encontra-se em permanente movimento.

É a partir de um longo percurso no trabalho institucional, como analista e supervisora, que me vi obrigada a repensar as práticas e a fazer trabalhar a teoria. Estas experiências tiveram ressonâncias na clinica privada e hoje em dia constituem minha forma habitual de abordagem em qualquer tratamento com crianças.

A clinica psicanalitica se enriquece com todas aquelas experiências onde a realidade exige que repensemos nossa tarefa prática, obrigando-nos a um esforço teórico para elaborar conceitualizações que a sustentem.

É exatamente esse trabalho, desenvolvido nos limites do conhecido, que tem propulsado o desenvolvimento de novos pensamentos teóricos: a atuação em instituições, com grupos, com crianças, com psicóticos, e hoje em dia, com as chamadas novas patologias, as patologias psicossomáticas.

Sem colocar em causa nossa fidelidade a Freud, estaremos permanentemente nos confrontando com o campo do desconhecido, procurando novas vias de abordagem.

Este é sem dúvida um processo de mão dupla, pois estas transformações na condução da cura, produzem por sua vez, no nível da estrutura familiar e da própria subjetividade da criança, efeitos transformadores.

Tomarei a questão do lugar dos pais no tratamento psicanálitico com crianças, e irei trabalhar, de um ponto de vista teórico e metapsicológico, as razões que me levaram a inclui-los no contexto da cura.

Quando abordamos a questão dos pais na clínica psicanalítica, rapidamente se estruturam respostas a favor ou contra sua inclusão no tratamento, parecendo ser obrigatória uma incisiva tomada de partido.

Entendo que tal posição implica um empobrecimento na nossa capacidade de pensar e impede que, de forma criativa, encontremos caminhos mais frutíferos para fazer trabalhar a psicanálise.

Verificamos com freqüência na psicanálise a presença de posturas maniqueístas que retiram toda criatividade ao pensamento: devemos ser a favor ou contra a representação, nos pronunciar pela alteridade em contraposição ao mundo interno como fundante da subjetividade, priorizar o objeto em detrimento da pulsão, e assim por diante.

Vejamos um pouco de historia. A epistemologia que marca as ciências no final de século, tem o determinismo como o grande sonho que convalida o pensamento da época. Buscam-se as origens, e nestas, as causas e os efeitos que dão conta da realidade. A grande tentativa é controlar e dominar o real. Nesse contexto surge a psicanálise e é com esta pesada carga que ela vai ter que se haver.

Freud fala-nos do Inconsciente, enquanto se debate entre tentativas de construir certezas e de abrir-se ao desconhecido. Fala-nos de sobre-determinismo, mas a este não se opõem o indeterminismo e o acaso. Freud resiste às explicações certeiras. O mundo das idéias dilacera-se entre natureza e cultura.

Freud tenta distanciar-se do biológico, mas nele recai vez ou outra. Os modelos da física e da termodinâmica são uma permanente tentação explicativa. É o momento dos opostos, dos antagonismos, da contraposição causa-efeito, do verdadeiro e do falso. Os pares dicotômicos a partir dos quais se organiza o pensamento da época penetram nos redutos mais íntimos da subjetividade.

Tal pensamento estruturado em função dos opostos tem sua máxima expressão no sistema cibernético de dígitos binários. As consequências deste mundo da informática, que procede por eleições duais, não são tão inócuas como poderíamos pensar: toda polissemia, toda diversidade deve ser controlada, o pensamento é aprisionado e impostas as trilhas a seguir. Em lugar da expansão, tenta-se cortar, simplificar, reduzir as opções ao mínimo. Como no computador, é preciso escolher entre "OK" ou "Cancelar". Acaba-se com a idéia de somatória.

Meio campo, novas territorializações, bordas, dobras, são outras opções por onde o pensamento poderia circular. Ao se propor uma escolha entre apenas duas opções, aplainam-se as possibilidades e o pensamento. Tudo se resume a verdadeiro ou falso, imperando plenamente uma política de resultados.

As consequências são sérias: o pensamento é violentado e enveredamos no caminho da repetição no lugar da criação. Quero salientar que esta política não corresponde ao espirito freudiano. Ao contrário, seus momentos mais profícuos são aqueles onde perde a certeza e tudo pode ser pensado novamente. A condição de estrangeiro no próprio território permite-lhe o risco. Freud aventura-se na multiplicidade e abre questões com várias linhas de fuga, que levantam enigmas e induzem a adentrar por novos territórios. Com esse Freud é interessante dialogar.

Retomo esta idéia porque tanto a prática com crianças como a prática institucional têm sido questionadas numerosas vezes em sua legitimidade no interior da própria disciplina, ao se esforçarem por abrir novos territórios onde as formas clinicas se apoiem na diversidade.

Como afirmei acima, a questão dos pais também tem sido frequentemente apresentada como uma questão de opções. Deve-se trabalhar com ou sem os pais?

Para começar, ensaiaria uma primeira resposta dizendo que trabalhamos junto aos pais.

Um análise de crianças começa sempre pela transferência que os pais instauram com o analista. Ele é o portador do suposto saber a quem os pais consultam.

Será possível inaugurar uma análise se os pais não estabelecerem transferência e não formularem sua demanda?

Esta situação marca sem dúvida uma especificidade do campo analítico com crianças: a existência de um campo transferencial múltiplo. É neste campo que o analista deverá circular.

Não se deve ignorar a existência desta complexidade e renegar a presença destas forças. Renegar é, como no caso da castração, instituir uma relação perversa.

Sobre as resistências.

A teoria kleiniana foi de grande importância na construção dos alicerces da psicanálise com crianças. Em relação ao tema que hoje nos preocupa especialmente, criou também certas resistências que hoje subsistem e que são frequente motivo de questionamento e polêmica, gerando uma insistente recusa em se trabalhar os pais.

De fato, esta teoria opta por priorizar o mundo interno e o inatismo na formação da subjetividade, decorrendo daí um relativo abandono da importância da alteridade na formação do aparelho psíquico e na fundação do inconsciente. Sua conseqüência clínica imediata foi, entre outras, a falta de atenção dada aos pais nos tratamentos conduzidos por estes analistas. Sem dúvida, a técnica responde a questões metapsicológicas. Em primeiro lugar, muito trabalho com o mundo fantasmático onde, na relação dual, o outro encontra sua maior importância como receptáculo das projeções dos objetos deste mundo pulsional. Em seguida, "pouco pais" Ainda hoje o pensamento kleiniano entende o trabalho com os pais e seu inconsciente como uma invasão ao espaço psíquico da criança, uma violação do sigilo, um incremento das ansiedades paranóides.

Trabalhei durante muitos anos com este referencial, e na medida que minha prática aumentava, também a insatisfação crescia. Existia um corte marcante no trabalho com a criança, e as novas articulações que se operavam no mundo psíquico encontravam dificuldades às vezes insuperáveis de se realizar, no campo do mundo do real. Esta nova historização simbolizante, produto da análise, oferecia resistência no confronto com os pais. Resultados negativos para a continuação do trabalho.

O lacanismo coloca outras resistências ao trabalho com o inconsciente nesse espaço criado entre os pais e filhos. Ao compreender a fundação do inconsciente como decorrente do campo do outro, através de seu desejo, e ao entender o sintoma na criança como uma formação metonímica dos conflitos parentais (produto de uma formação deslocada de seu inconsciente na relação com sua sexualidade reprimida), ou seja, quando, em detrimento do pulsional, o desejo do desejo do outro assume um caráter auto-traumático, prioriza-se o trabalho com os pais, chegando-se por vezes a se considerar a criança com uma cristalização sintomática, que deve esperar muito tempo para ser tratada.

Tratando de superar esta opção entre duas alternativas venho nos últimos quinze anos desenvolvendo a seguinte linha de trabalho dentro da condução da cura da criança: nos momentos em que a viscosidade prevalece sobre o fluxo, e algo na possibilidade de se operar mudanças encontra-se impedido, proponho sempre que necessário a inclusão dos pais como parte do tratamento da criança, como uma forma de flexibilizar o recalque e facilitar a criação de novas condições de subjetividade.

Winnicott nos diz que, em momentos de grave regressão na transferência, o terapeuta é convocado como sujeito no real, sendo então desejável convocar os pais que, com a ajuda do terapeuta, se oferecem num real em transferência, o que possibilita a superação de momentos de graves crises.

Também Laplanche, com sua proposta de mensagem enigmática e metábola, tem me oferecido elementos para elaborar a teoria que permite sustentar tal tipo de intervenção.

Gostaria de esclarecer que minhas diretrizes para qualquer tipo de intervenção técnica na cura decorrem fundamentalmente da singularidade do caso que me demanda. Portanto, isto não é uma constante nem a única opção. Determinadas situações exigem longas intervenções junto aos pais antes de se ver a criança, ao passo que outras situações podem solicitar o contrário. Não temos manuais que nos indiquem cada tipo de intervenção. Tudo dependerá, como no caso da interpretação, de uma escuta adequada.

Uma opção teórica: uma proposta clínica.

No decorrer de um tratamento nos confrontamos com momentos em que a resistência se acentua de tal modo que as associações se vêem impedidas, a repetição se exacerba, a possibilidade de elaboração fracassa e a angústia aumenta tanto que em vez de impulsionar a busca, de propiciar novas ligações, novos agenciamentos, acaba por paralisar o processo. Nesse tipo de situação, nossos modos habituais de conduta não propiciam a continuação do trabalho, já que nem a interpretação nem a reconstrução operam como seria esperado. Pensamos que em tais momentos os pais poderiam funcionar como reemissores in situ de enigmas em relação aos quais eles próprios ficaram estrangeiros, permitindo que estas mensagens tenham outros destinos que facilitariam a circulação e a perlaboração. Foi este um dos pressupostos teóricos que nos orientou. O encontro permite que a criança agencie novas vias de re-tradução, já que as mensagens a serem re-enviadas não terão o mesmo efeito traumatizante, podendo assim operar sobre os processos mnêmicos permitindo re-ordenamentos segundo nexos diferentes, produzindo novas re-transcrições e abrindo novos caminhos de associação antes impedidos. Por efeito do après-coup facilita-se o caminho da perlaboração.

Este convite aos pais é pontual e se realiza nos momentos em que é preciso pôr a circular algo que está impedido de entrar na rede associativa. Sabemos que aspectos parciais das representações-coisa podem ser recapturados num novo tecido e re-transcritos ao modo do processo secundário na sua relação com a representação-palavra. Sabemos que a lembrança mesma não retorna, mas sim algum traço ligado à lembrança infantil que a evoca. Sabemos também que, mesmo intraduzíveis, algumas mensagens podem re-circular em busca de um estatuto menos traumático. Sabemos que, quando estas mensagens começam a circular, algo do outro transita na transferência, porque essas se fazem presentes como pertencentes a seu emissor. Sabemos ainda que o processo se realizaria de modo idêntico seja numa análise de adultos ou de crianças, já que esta função é intrínseca ao analista como disparador de enigmas.

Então, por que os pais? (2)

Porque eles mesmos são objeto de transferência, como o era o pai de Hans para ele, e ambos em transferencia com o analista. É este dizer em transferência com o analista que lhes oferece elementos para articular as simbolizações faltantes. É no estranho-familiar (Das Unheimlich) (3) do discurso dos pais como suportes de transferência que o enigma, re-circulando, pode ter outros destinos. O familiar que lhe chega dos pais da realidade, e o estranho que chega dos próprios pais na relação com o desconhecido de seu inconsciente, dos pais como sedutores-traumatizantes. "Algo que estava oculto veio à luz": o contato com os pais nesta dupla função que provoca estranheza e familiaridade, que revela e oculta, atua como disparador de associações e propulsor de movimento.

Neste aparelho em constituição, onde as fronteiras e os lugares estão se constituindo, os pais aparecem como figuras fronteiriças entre a realidade e o fantasma e, ao inclui-los, facilita-se um encontro que nada tem a ver com a interação, sendo mais próximo de uma circulação onde as velhas mensagens enigmáticas transformam-se em novas, possibilitando mudanças que operam em ambas as direções, as transformações ocorrendo tanto na criança quanto nos pais. É por esta razão que insistia no fato de que uma modificação na clinica produz efeitos de mão dupla, acabando por criar mudanças na família, que passa a escutar a criança de um modo diferente, porque os próprios pais se desalienaram do seu recalcado. Ambos os pais, ou só um deles pode ser convocado a uma sessão. Do mesmo modo, o analista pode trabalhar com um dos pais ou ambos fora da sessão da criança, para referi-los a seu próprio enigma, onde por alguma razão restou algo não destraduzido para eles; o conflito que os aprisionava pode ser desvendado neste novo momento, do qual a criança não tem porque participar.

Gostaria de ressaltar, então, que esta proposta nada tem a ver com a idéia de trabalhar com os desejos dos outros originários como relação de extensão ao inconsciente do infans, nem como lugar de origem do sintoma na criança. Não estamos propondo um trabalho com as resistências que podem aparecer no adulto em relação à análise da criança. Esta não é uma proposta intersubjetiva ou interacionista, e tampouco uma proposta de terapia familiar. É durante o tratamento da criança que os pais podem ser convocados. Por outro lado, certas questões podem ser trabalhadas em espaços separados da criança, na medida em que tocam situações puramente individuais. Refere-se ao trabalho possível com o inconsciente de cada um na sua singularidade, fundado e fundante na interioridade de um aparelho psíquico que tomou como próprio aquilo que lhe foi oferecido como alheio.

E inimaginável pensar no tempo que um pai ou uma mãe levariam para trabalhar, numa análise pessoal, questões que dizem respeito ao lugar dos filhos, de modo que isto reflita na própria criança. A indicação de terapia de casal ou família, propõe que estas questões sejam trabalhadas num outro âmbito, que não o das transferências múltiplas, conduzido pelo analista da criança, produzindo outros efeitos. Não obstante, são indicações precisas, que quando bem realizadas dão os resultados desejados.

Tanto na instituição como no consultório, esta mudança acarreta grandes transformações porque permite remover resistências que empobrecem o conjunto, assim como permite a cada um dos participantes, a elaboração ou tradução de importantes passagens de suas representações fantasmáticas que ficaram ilhadas. Em suma, integram-se, expandem-se, criam-se novos laços, novos vínculos, novas subjetividades em pais e filhos.

Pensamos numa psicanálise que não congela os processos, cuja função não se resumiria em rever o passado, mas que seja permanentemente geradora e criadora de novas subjetividades.

NOTAS

1 - Jean Laplanche, Novos Fundamentos para el Psicoanalisis, Amorrortu,1989.

2 - Ana Maria Sigal Rosenberg, org. O lugar dos pais na psicanálise com crianças. Ed. Escuta São Paulo1994

Ana Maria Sigal Rosenberg. Psicanálise com crianças. Um Caldeirão Fervendo. Revista Percurso N 20.São Paulo 1998

3 - S.Freud, "Lo ominoso" ,in Obras Completas, vol .XVII


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