A MELANCOLIA NA OBRA DE FREUD: UM NARCISO SEM [DES]CULPA

Ana Cleide Guedes Moreira (1)

Freud terminou de escrever Sobre a introdução do conceito de narcisismo em fevereiro de 1914, após uma viagem de férias para Roma onde o iniciara. No mesmo momento, começava a conceber Luto e Melancolia, que só será concluído em maio do ano seguinte. Ele costumava escrever assim, mesas separadas para trabalhos que ocupavam simultaneamente o mesmo espírito, este sim único. Mas não indiviso, como bem mostrou. O eu não é o senhor em sua própria casa: eis o que enunciou como a descoberta pela qual pensava que a psicanálise merecia seu lugar na história. De importância ímpar, a compreensão do narcisismo permitiu-lhe dirigir a visada às sombras que habitam, na melancolia, o mesmo cômodo, iluminando um enigma que vem atravessando há dois mil e quinhentos anos a civilização ocidental. (2)

De fato, sua investigação da melancolia o acompanha desde a última década do século dezenove, pelo menos. Desenrola-se ao longo de sua obra com variada intensidade, mas sempre produzindo efeitos: são mais de quarenta obras de referência, entre artigos, ensaios, conferências, além das indicações e comentários distribuídas em cartas, especialmente a Fliess, Abraham, Ferenczi e, Marta, naturalmente. Além disso, por ali passaram diretamente a elaboração de vários conceitos fundamentais da psicanálise, tais como identificação, ideal de ego, superego, ambivalência, e, sentimento inconsciente de culpa, para ficar nos mais importantes.

Há um longo caminho a percorrer para sustentar a hipótese que orienta este trabalho mas, dado os limites pelos objetivos que o motivam, ele tratará tão somente de indicar em linhas gerais, as principais referências que o animam (3). Parece extremamente necessário delimitar algumas balisas à investigação da melancolia pelo método psicanalítico, pois permanece, neste fim de século, um problema teórico e clínico definir precisamente o que são as entidades psicopatológicas melancolia e depressão, tanto na obra de Freud quanto no campo psicanalítico que o sucedeu. Comecemos por este problema, portanto.

Nesse que é o texto fundamental sobre o tema, Luto e melancolia, Freud apontava a existência de um problema de definição uma vez que a melancolia assume várias formas clínicas, cujo agrupamento em uma única unidade não parecia ter sido estabelecido com certeza, inclusive na psiquiatria descritiva (4). A definição do quadro clínico ali estabelecido por ele, é o mais detalhado e único ao longo de sua obra, razão porque aqui está sendo considerado a definição freudiana por excelência. Em suas palavras:

''Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. Esse quadro torna-se um pouco mais inteligível quando consideramos que, com uma única exceção, os mesmos traços são encontrados no luto. A perturbação da auto-estima está ausente no luto; afora isso, porém, as características são as mesmas''. (5)

A importância de retomar a definição freudiana deve-se a grande confusão no campo que se estabeleceu na teoria psicanalítica que o sucedeu. De fato, depois de Freud, Bleichmar já o descreveu, há um deslizamento conceitual que implicou em tomar a melancolia para nomear as psicoses e reservar o termo depressão para ocorrência dessa psicopatologia em quadros neuróticos.(6) A razão porque isso se deu está longe de ser clara, mas é possível estender um pouco a análise desse problema

Nesse sentido, como observamos antes, Freud indica que também a psiquiatria não alcançou uma única definição de melancolia. Ele mesmo utiliza, ao longo de sua obra, melancolia, depressão, depressão melancólica, o mais das vezes como sinônimos, sem jamais estabelecer uma distinção clara entre os termos. De fato, ele tinha ambos os vocábulos disponíveis no alemão corrente, sendo que depressão chega ao alemão vindo do francês a partir do latim (7) e, melancolia, é um velhíssimo termo de origem grega (8). Ora, inserido no debate de seu tempo como todos sabemos que Freud era, não apenas ele pode ter tido contato com o termo em sua estadia em Paris, como também não lhe escapava o uso cada vez maior que dele fazia a psiquiatria alemã, em deliberada substituição ao termo melancolia.

Realmente, foi Emil Kraepelin quem estabeleceu o uso do termo 'insanidade maníaco-depressiva' na psiquiatria alemã. Como sabemos por um extenso estudo de Jackson (9), em 1880 nas seções de psicoses de seu Lehrbuch, inicialmente usou insanidade depressiva para nomear uma das categorias de insanidade e inclui uma forma depressiva como uma das categorias de paranóia, mas continuou a empregar melancolia e seus subtipos (...) e usar depressão principalmente para descrever afeto.

Ora, o renomado psiquiatra fez parte do contexto em que desenvolvia-se a psicanálise e, além disso, contra ele Freud levantou-se em torno da questão do diagnóstico de insanidade maníaco-depressiva atribuído ao paciente conhecido entre nós como Homem dos Lobos. Portanto, quando vimos que Freud não apenas usa melancolia e depressão muitas vezes como sinônimos, mas prefere o termo melancolia nos textos em que formula as noções fundamentais para dar conta do problema, não podemos deixar de pensar que a ele interessava demarcar um campo propriamente psicanalítico na psicopatologia.

Mas algo mais se passou para que os que o seguiram preferissem o termo depressão, Melanie Klein entre elas, já que como sabemos, desenvolveu largamente uma concepção de depressão claramente derivada da freudiana, a ponto de chegar à noção fundamental de 'posição depressiva' a partir da perda do objeto amado (10). De fato, Melanie, tendo se analisado com Abraham (11), cujos estudos de melancolia também se estenderam até a chamada psicose maníaco-depressiva, tiveram enorme e reconhecida importância já para Freud, também esteve sob forte influência da psiquiatria alemã, não tivesse ela buscado abrigo nos sanatórios de sua época até que veio a conhecer a psicanálise (12). Parece haver, de fato, uma intencionalidade em fazer esquecer a melancolia, mas vejamos ainda uma indicação disso, novamente de Jackson, diz ele:

''A tendência em se abandonar o termo melancolia e utilizar depressão pode ter sido especificamente favorecida por Adolf Meyer. O relato de uma discussão em 1904 indica que ele desejava eliminar o termo melancolia, que implicava, segundo ele, em um conhecimento de algo que não possuíamos e, se ao invés de melancolia, aplicássemos o termo depressão para todas as classes, este indicaria, de uma forma simples, exatamente o que significava o termo melancolia''.(13)

Aí está, pelo menos Adolf Meyer declarou expressamente suas intenções. Talvez alguns de vocês estejam se perguntando que interesse realmente clínico pode ter essa análise pelos meandros da história das idéias psicopatológicas. Ora, se a melancolia é velha conhecida da humanidade, os desenvolvimentos psiquiátricos e, como vemos, psicanalíticos, posteriores a Freud, debruçando-se sobre o problema, tenderam a substituir o termo melancolia por depressão, no que resultou em se criar o que estamos chamando de invisibilidade da melancolia, isso tem sérias conseqüências teóricas e clínicas (14).

Essa invisibilidade tem resultado em fazer desaparecer traços distintivos da própria dinâmica psíquica dessa patologia. Isto significa que, como observa Pierre Fédida (15), a destrutividade e os sentimentos de culpa, que são tão evidentes na clínica orientada pelo método psicanalítico, acabam por desempenhar um papel menor no diagnóstico, e portanto, na elaboração das estratégias terapêuticas.

De fato, nesse campo teórico-clínico, o problema de definição permanece em aberto, ainda hoje, mesmo na psiquiatria clínica, como demonstrou Giordano Estevão, em tese de doutorado defendida na Pós-Graduação do Hospital dos Servidores do Estado de São Paulo, que aqui retomamos a partir de um breve artigo, onde se lê:

''A prática clínica e a análise da literatura revelam a falta de critérios precisos para escolha do tratamento de depressão. (...) Em matéria de depressão, são debatidos, discutidos, controvertidos, todos os aspectos: nosologia, características sintomáticas, mecanismos bioquímicos, neurofisiológicos, terapêutica. Com toda boa vontade das 'reuniões de consenso', as divergências persistem. É comum referir-se à heterogeneidade das manifestações, para justificar a necessidade de mais reflexões e pesquisas" (16) E mais a frente: diante desta situação , temos que registrar o mal estar dos autores, quando constatam que 30 anos de pesquisas, não nos permitiram registrar autênticos progressos na terapia. Apesar das novas descobertas em neurobiologia e genética molecular, não temos nenhum teste de laboratório, nem marcador de doença válido. O estudo da imipramina feito por Khun, que hoje seria criticado pelas suas falhas metodológicas, delineou o tratamento da depressão em vigor até agora. Desde os anos 50 , comparando com estas importantíssimas descobertas , nada de qualitativamente novo surgiu. O modo de investigação largamente utilizado em nossos dias, não conduziu a resultados positivos para a clínica, nem cientificamente, nem praticamente''. (17)

xxx-xxx

Se estamos certos até aqui, observa-se um afastamento da teoria freudiana da melancolia que certamente não cessa de produzir efeitos de invisibilidade, mas resta perguntar-se pela razão de tal fato e, para isso, vamos tentar adiantar ainda algumas sugestões.

É de 1897, o Manuscrito G, onde Freud trata precisamente da melancolia, através de uma analogia que aqui aparecendo pela primeira vez, será ainda extremamente frutífera. Ali se lê: '' (a) O afeto correspondente à melancolia é o luto - ou seja , o desejo de recuperar algo que foi perdido. Assim, na melancolia, deve tratar-se de uma perda - uma perda na vida pulsional" (18). Como se vê já está aí uma primeira formulação daquela que será , até o fim de sua obra , a tese freudiana fundamental, isto é, de que na melancolia trata-se de ‘algo que foi perdido’ . O enigmático aqui é que a perda é pulsional, enquanto que na formulação posterior, a de Luto e Melancolia, há uma perda objetal que se transformou numa perda do ego, o que aponta, novamente, a importância da noção de narcisismo para esta investigação.

Entretanto, este breve ensaio é provavelmente de janeiro de 1895, anterior, portanto, a dolorosa ocorrência que Freud reputará como 'a perda mais pungente da vida de um homem (19). Observa-se, portanto, que a perda está presente nas idéias de Freud sobre a melancolia antes da morte de Jacob, mas só após esta é que não apenas cria a psicanálise como, e aqui voltamos ao nosso problema, a melancolia passa a ser inserida no eixo do complexo de Édipo, (20), senão vejamos.

No Manuscrito N (21), dirigido a leitura do mesmo destinatário, encontramos o texto em que Freud, pela primeira vez, insere a melancolia naquilo que será para ele e, até o fim, o eixo fundamental de toda análise que se pretenda psicanalítica. O complexo de Édipo, queiram ou não os psicanalistas, é o eixo estruturante de toda concepção freudiana do humano, assim como, pelo lado da filogênese, o mito científico do parricídio na horda primitiva o é. Essa importante e enigmática formulação surge, salvo engano, pela primeira e última vez sob a pena de Freud. Intitulado ‘Impulsos(2)’, dentro de Notas III (Rascunho N), ali se lê:

"Os impulsos hostis contra os pais ( desejo de que eles morram ) também são um elemento integrante das neuroses. Vêm à luz, conscientemente , como idéias obsessivas. Na paranóia, o que há de pior nos delírios de perseguição (desconfiança patológica dos governantes e monarcas) corresponde a esses impulsos. Estes são recalcados nas ocasiões em que é atuante a compaixão pelos pais - nas épocas de doença ou morte deles. Nessas ocasiões, constitui manifestação de luto uma pessoa acusar-se da morte deles ( o que se conhece como melancolia ) ou punir-se numa forma histérica ( por intermédio da idéia de retribuição) com os mesmos estados [de doença] que eles tiveram. A identificação que aí ocorre, como podemos verificar, nada mais é do que um modo de pensar, e não nos exime da necessidade de procurar o motivo.

Parece que esse desejo de morte, no filho, está voltado contra o pai e, na filha, contra a mãe. ...(22)

Ora, o que está contido neste trecho que, como veremos, Freud irá retomar, à sua maneira, apenas em 1927, trinta anos depois, é a questão do parricídio. Como está dito, o assassinato dos pais ( assim mesmo, no plural, o que coloca ainda mais problemas! ) é a questão de toda neurose.. Entretanto, o que aí está contido, e que torna a melancolia tão grave, é que, sendo culpado pela morte deles ( e acusar-se significa culpar-se, ambos vem da mesma raiz latina) , a lei do talião, Freud já o dizia, cobra - olho por olho dente por dente - a morte do sujeito, não o mero adoecimento como na histeria, nem a acusação dirigida a outrem, como na paranóia, nem tampouco o interminável sofrimento obsessivo, que ainda é uma forma de sobrevivência.

Na clínica, diante de um melancólico que demanda uma escuta para seu sofrimento, há uma espécie de urgência que invade o analista, e uma hesitação, uma vaga expectativa do pior, uma espera que parece necessária, diante daquilo que se apresenta como algo inominável pairando. Uma hesitação diante da urgência, como quando se está diante de um abismo perigoso à frente e a sensação física é dada pela lei da gravidade mesma: um empuxo para baixo criando imediatamente a hesitação diante do perigo e a urgência de proteção. Estar com um paciente melancólico é assim hesitação e urgência. Algo ali precipita-se no vazio e a parceria, quando se faz, fica premida pela busca de salvação, que é preciso reconhecer, não fosse o furor curandis mal conselheiro.

Em um trabalho de grande fôlego, Marta Gerez-Ambertin realiza uma sistematização rigorosa da noção de superego na clínica psicanalítica e na cultura, a partir da obra de Freud e Lacan, um trabalho muito bem vindo pois que sem dúvida há muito era necessário em nosso campo. Dizendo de modo muito breve, ela encontrou que, já desde o nascimento da psicanálise pode encontrar-se a tríade: parricídio, culpa e punição, tanto na teoria como na clínica dos primeiros casos de Freud. Segundo ela, ainda que tenha recebido seu nome de batismo em 1923, os fundamentos teórico-clínicos do superego já estão traçados ao redor desse tríplice eixo, e a noção de consciência moral é a expressão mais primitiva do superego.(23)

Como já foi dito, só um longo trabalho apontaria todos os desenvolvimentos necessários para demonstrar a concepção freudiana de melancolia, mas já é possível afirmar, com Ambertin, que ela se dá sobre a tríade parricídio, culpa e punição, como, de resto, a psicanálise mesma. Fiquemos ainda com algumas breves notas que podem indicá-lo. O fundamental parece estar contido em quatro textos que veremos a seguir.

A primeira evidência mais extensa, salvo engano, aparece num pequeno texto de 1916, Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1916) elaborado portanto pouco depois do clássico sobre o tema. Ali se lê:

''Em outra ocasião, defrontei-me com o caso de um respeitável senhor, professor universitário, que nutria havia muitos anos o desejo natural de ser o sucessor do mestre que o iniciara nos estudos. Quando esse professor mais antigo se aposentou e os colegas informaram ao pretendente que ele fora escolhido para substituí-lo, começou a hesitar, depreciou seus méritos, declarou-se indigno de preencher o cargo para o qual fora designado, e caiu numa melancolia que o deixou incapaz de toda e qualquer atividade durante vários anos''. (24)

Mas será preciso esperar ainda longos anos até que em 1922 essa temática toma-se forma metapsicológica. Em Uma neurose demoníaca do século XVII (25)descrevendo os melancólicos como ''bebês eternos'', encontra na morte do pai do pintor Haizmann a origem de sua melancolia, que o leva a complicados pactos com o demônio com o fim de que este constitua, afinal, um substituto paterno. Ali vamos encontrar um trecho fundamental para nosso argumento. Em suas palavras:

''Foi por isso que, no início deste artigo, predisse que um caso clínico de demonologia desse tipo produziria, sob a forma de metal puro, um material que nas neuroses de uma época posterior (não mais supersticiosas, mas antes hipocondríacas) tem de ser laboriosamente extraído, pelo trabalho analítico, do minério das associações livres e dos sintomas. Uma penetração mais profunda na análise da moléstia de nosso pintor provavelmente trará uma convicção mais forte. Não é algo fora do comum para um homem adquirir uma depressão melancólica e uma inibição em seu trabalho, em resultado da morte do seu pai. Quando isto acontece, concluímos que o homem fora ligado ao pai por um amor especialmente intenso e recordamos com quanta freqüência uma melancolia grave surge como forma neurótica de luto (26).

Mas, se nesse texto nenhuma referência ao sentimento inconsciente de culpa, que já havia sido postulado, pode ser encontrada, a ambivalência, traço melancólico como sabemos, não lhe escapa, e Freud irá dizer que a própria atitude hostil contra o pai, que é uma atitude de odiá-lo, temê-lo e fazer queixas contra ele, ganha expressão na criação mesmo de Satã (27)e nada senão um anseio pelo pai aliado a uma extrema necessidade material, como determinantes de sua neurose, são postulados (28).

Em Neurose e Psicose (29), texto logo posterior , concluído em 1923, passará a incluir a melancolia entre as neuroses narcísicas, enunciando-a como um conflito entre o ego e o superego, formulação que manterá até o fim de sua obra.

Finalmente, Freud que, afirmava em a Psicopatologia da vida cotidiana que é difícil para o psicanalista descobrir algo que já não saiba algum escritor, em sua inabalável coerência, dirigiu-se a Dostoievski, para uma vez mais, investir em decifrar o enigma. Será em Dostoiévski e o parricídio (30) que formulará o essencial de sua concepção, definindo a melancolia do grande escritor como derivado de desejos parricidas que nele permaneceram sem [des] culpa. Em suas palavras:

''Dispomos de um ponto de partida seguro. Conhecemos o significado das primeiras crises que Dostoievski sofreu em seus primeiros anos, muito antes da incidência da ‘epilepsia’. Essas crises tinham a significação de morte; eram anunciadas por um temor da morte e consistiam em estados sonolentos, letárgicos. A moléstia o acometeu pela primeira vez quando ainda menino, sob a forma de uma melancolia súbita e infundada, uma sensação, como mais tarde contou a seu amigo Soloviev, de que iria morrer ali mesmo.(...) Conhecemos o significado e a intenção dessas crises semelhantes à morte. Significam uma identificação com uma pessoa morta, seja com alguém que está realmente morto ou com alguém que ainda está vivo e que o indivíduo deseja que morra. O último caso é o mais significativo. A crise possui então o valor de uma punição. Quisemos que outra pessoa morresse; agora somos nós essa outra pessoa e estamos mortos. Nesse ponto, a teoria psicanalítica introduz a afirmação de que, para um menino, essa outra pessoa geralmente é o pai, e de que a crise (denominada de histérica) constitui assim uma autopunição por um desejo de morte contra um pai odiado.

O parricídio de acordo com uma conceituação bem conhecida, é o crime principal e primevo da humanidade, assim como do indivíduo. (...). É, em todo caso, a fonte principal do sentimento de culpa, embora não saibamos se a única; as pesquisas ainda não conseguiram estabelecer com certeza a origem mental da culpa e da necessidade de expiação (31)..

Encaminhando-nos para o final desta exposição, penso que esteja ao menos delineada nossa hipótese para os problemas de definição que permanecem neste final de século, longos anos depois de Freud. De fato, parece que a recusa de encarar a temática do parricídio até suas últimas conseqüências é o que tem obstaculizado novos desenvolvimentos nessa área, não fosse a invisibilidade uma boa forma de se defender do inominável cuja sombra, a melancolia, segue projetando.

NOTAS

Psicanalista, Profesora da Universidade Federal do Pará, Pesquisadora e Doutoranda da PUCSP.

4A continuidade entre ambos os artigos está explícita na frase com que inicia Luto e melancolia : ''Tendo os sonhos nos servido de protótipo das perturbações mentais narcisistas na vida normal, tentaremos agora lançar alguma luz sobre a natureza da melancolia, comparando-a com o afeto normal do luto''

Trata-se dos resultados parciais de um projeto de pesquisa desenvolvido no interior do Laboratório de Psicopatologia Fundamental, da PUC-SP, sob orientação do Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck.

Freud, S. Luto e melancolia, Edição Standard brasileira (SB), v. XIV, p.275.

Freud, S. op. cit. p. 276

Ver a respeito Bleichmar, H.B. Depressão : um estudo psicanalítico. Porto Alegre: Artes médicas, 1983. Também nossa dissertação de mestrado: A concepçao de melancolia em Freud e Stein. SP:PUCSP, 1992

Desse modo, está estabelecido que a depressão é impensável no mundo grego: Hipócrates, portanto, não poderia ter feito referência a depressão em suas formulações sobre melancolia.

Aqui ficamos devendo a Modesto Carone a análise da origem dos termos no alemão de Freud, a quem agradecemos de público.

Jackson, S. Melancholia & depression. From Hippocratic times to modern times. Yale University Pres 1985. Tradução livre.

Klein, M. A Contribuition to the Psychogenesis of Manic-Depressive States, L. 1935. Cf. também R. D Hinshelwood Dicionário do pensamento kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.p.75

Abraham, Karl. Teoria Psicanalítica da libido. RJ: Imago, (1927[1970])

Grosskurth, P. O mundo e a obra de Melanie Klein.RJ: IMAGO, 1992.

Jackson, S. op. cit.

Moreira, A . C. op. cit..Cf. ainda, Jackson, op. cit.

Fédida, P. A Depressão : questões atuais. Seminário Temático em SP- outubro de 1998. Mimeo

Estevão, G. Do diagnóstico da depressão e suas implicações terapêuticas. IN: Temas, 1997, 53: 71-84

idem, p. 75

Freud, S. Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. SB, v.I , p. 222. ver também Masson, J. M. A Correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess - 1887-1904. Rio de Janeiro : IMAGO, 1986, p. 99. Grifado no original. Carta datada provavelmente de 7 de janeiro de 1895.

Freud, S. Prefácio à Segunda edição de A Interpretação dos sonhos (1900), SB., v. IV, p.32

De fato, a psicanálise, como todos sabem, nasce do sofrimento psíquico desencadeado pela morte de seu Jacob, como elemento determinante mas, claro, não exclusivo. Veja-se, a propósito, a análise de Mezan, segundo quem essa origem se dá sobre tríplice eixo: a clínica das neuroses, a análise da cultura e sua auto-análise. Cf. Mezan, R. O pensador da cultura. SP: Brasiliense, 1985.

Freud, Cartas a Fliess, op. cit.

Freud, S. Carta datada de 31 de maio de 1897SB, v.I, p.275.

Gerez-Ambertin, M Las voces del superyo.En la clínica psicoanalítica y en el malestar en la cultura. Buenos Aires: Manantial.1993.. p.17 a 36. Tradução livre

Freud, S. Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1916).SB., v. XIX, p.358

Freud, Um neurose demoníaca do século XVII (1923[1922]). sb., V. XIX.

Freud, idem.,. p.111/112

Ibidem, p.111

Freud, idem, ibidem. .

Freud, S. Neurose e Psicose (1924[1923]). SB., v. XIX.

Freud, Dostoiévski e o parricídio (1928[1927]) SB., v. XXI.

Freud, idem. p.211


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