DA DEPRESSÃO AO DESEJO
DE PRO-CRIAR - REVISITANDO
A FEMINILIDADE NA CLÍNICA E NA TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE
ANA BEATRIZ ZUANELLA CORDEIRO*
ANA YÊDA CIRILO CARVALHO*
MARIA DO CARMO VIEIRA DA CUNHA*
MARIA THEREZA L. DE A. C. LINS*
Psicanalistas. Membros do Círculo Psicanalítico de Pernambuco.
A histeria foi o ponto sintomático a partir do qual, Freud, começou a construir a psicanálise, gerando desdobramentos em sua elaboração teórica, que culminou nos escritos sobre a feminilidade. Esta aparece ao final da sua obra, como enigma não desvendado, tornando-se, desde então, fonte de pesquisa e aperfeiçoamento constantes. A contemporaneidade por apresentar-nos uma demanda clínica que nos faz confrontar permanentemente com a incompletude de respostas na obra freudiana, instiga-nos a retomarmos os pontos enigmáticos que permaneceram em aberto, permitindo-nos construir novos pressupostos teóricos, para a clínica e a transmissão da psicanálise. Retomaremos os estudos sobre a feminilidade com o objetivo de repensarmos a transmissão da psicanálise e os sintomas apresentados pela clínica contemporânea, através da comprensão da dívida que circula de um sujeito a outro na constituição da singularidade.
As depressões, as infertilidades, os casais que procuram a reprodução assistida e a adoção, são demandas freqüentes em nossa clínica, assim como observamos a improdutividade e a cristalização tornarem-se sintomas no interior das instituições.
Essas manifestações sintomáticas levam-nos a ouvir o emergente do discurso da contemporaneidade, tentando criar uma plasticidade que nos permita compreender e acompanhar essas demandas. Assim, acreditamos ser importante revisitarmos as origens da psicanálise, bem como alguns mitos, que poderão nos auxiliar nas reflexões que ora iniciamos sobre a clínica e a transmissão.
A literatura greco-romana ofereceu a Freud textos de mitos patriarcais como subsídio para elaborar suas questões teórico-clínicas. Dessa forma, Édipo e Moisés, constituíram-se em personagens importantes na construção de seus textos. Freud centrou-se no estudo das civilizações onde o homem ocupava o primeiro plano, não podendo imaginar a mulher além dos limites da inferioridade social que a cultura impunha. A figura do herói estava sempre relacionada ao sexo masculino, o que, talvez apontasse para a dificuldade de Freud avançar no terreno da feminilidade, devido às marcas existentes na burguesia do século passado.
Por nossa vez buscamos, além dos mitos patriarcais, as lendas e os mitos femininos correlacionado-os com a clínica e a transmissão, na tentativa de irmos mais além na questão da feminilidade.
As primeiras pacientes de Freud eram, em geral, moças de educação cultural elevada que estariam preparadas para uma vida intelectual ou criativa que a sociedade oitocentista não podia assimilar. Não queremos afirmar, que esse seja o meio o qual determine a sintomatologia psíquica, todavia, supomos que a forma de expressão do sintoma pode estar atrelada à conjuntura social do momento. Talvez seja por esse motivo que, de tempos em tempos, observamos uma mudança na configuração dos mesmos.
Freud, ao se deparar com o silêncio das mulheres frente aos homens, concluiu que elas possuiam escassos recursos sublimatórios; ao ver a mulher a serviço do homem, descreveu-a como masoquista; ao vê-la ocupar-se do filho, destinou-a, imediatamente, à maternidade como forma de preencher a sua falta. Contudo, com o passar do tempo, as mulheres começaram a exercer outras funções na sociedade. Ao destacarem-se, historicamente, possibilitaram uma visão da feminilidade não somente associada à reprodução, mas, também, a satisfação que advém das ações produtivas.
Freud, até o final da sua obra buscava aprofundar sua compreensão acerca da feminilidade, procurando operar o deslocamento dela em relação à histeria, a qual se constituira em modelo paradigmático introdutório da sua construção psicanalítica. Sabemos que na histeria, a possibilidade de interrogação para a mulher, do seu desejo, está centrada na demanda dirigida ao outro, que é colocado na posição de mestre. Essas mulheres, sob o olhar de Freud, pareciam não possuir um discurso próprio, pois se utilizavam de recursos de sedução, como uma das possibilidades de acesso aos seus projetos. Contudo, no jogo da sedução histérica há uma imobilização e uma captura que acaba por mortificá-la.
Parece que no discurso emergente da modernidade, a mulher dificilmente encontrava espaço para sua fala, desviando para o corpo a linguagem que passava a ser falada através da sintomatologia histérica. Como exemplo paradigmático dos impasses da mulher burguesa, podemos citar Emma Bovary, de Flaubert, como aquela que sonhava ser uma outra mulher. Para tanto, ela se utilizava de passagens ao ato na tentativa de realizar os seus sonhos, entretanto, permanecia alienada nas malhas de um discurso em que seus anseios latentes não encontravam palavras ou lugar.
Emma Bovary, aprisionada na imagem do outro, não conseguia constituir-se como singular. Impossibilitada de confrontar-se com seu seu próprio desejo, ela permanecia a serviço do desejo do outro. Por não reconhecer seus próprios limites entrava num processo de endividamento, adquirindo objetos valiosos na ilusão de que esses pudessem satisfazê-la. A aquisição desses objetos levou-a a um endividamento impossível de ser liquidado, obrigando-a a um desligamento do outro (os amantes) denunciando, assim, o vazio que trazia em seu ser. Sentindo-se esvaziada, impossibilitada de quitar suas dívidas, não tendo o que doar, restava-lhe somente a morte.
Na tentativa de compreender, psicanaliticamente, essa dívida impagável contraída por Emma, propomos uma metáfora através da poesia e da literatura folclórica. O texto, "Os inférteis", de Monique Bydlowski aponta sobre a importância da dívida na constituição do sujeito ao relacionar a fecundidade à filiação feminina e à necessidade de possuir uma sombra. A autora relata a história de uma heroína, um ser sobrenatural, que por ser imortal não possui uma sombra, o que a impede de "pro-criar", portanto a personagem vai em busca de uma sombra, única condição para poder transmitir a vida, pois é com a sombra que se reembolsa à terra a dívida de existência. É através de uma ama-de-leite que a heroína negocia a sombra com uma mortal pobre, pouco inclinada à maternidade, oferecendo-lhe em troca enfeites e espelhos.
Monique propõe, através dessa lenda, que todos nós temos necessidade de sombra e de dívida, já que a vida não é um presente gratuito, tornando-se imprescindível transmitir o que nos foi dado, reconhecendo, assim, o dom da vida. A promessa de imortalidade e de morte implica uma dívida que circula de mãe para filha. Ressalta que essa transmissão é talvez válida para outros processos criativos além do nascimento. Dessa forma, o ponto essencial apresentado pela autora é a existência de uma dívida em todos os sujeitos em relação àquele ou àqueles que contribuem para sua formação. Contudo, essa dívida nem sempre consegue ser saldada, podendo levar o sujeito a hipotecar a sua obra, por ela ter se tornado impagável.
Hipotecar uma obra pode ser a única saída possível para o sujeito que encontra-se impossibilitado de angariar recursos para saldar sua dívida. Nesses casos o sujeito parece não conseguir elaborar um desligamento do objeto perdido, pois o ato de saldar uma dívida está diretamente correlacionado à possibilidade de operar uma separação, portanto, de elaborar um luto. Por estar aprisionado ao objeto perdido, o sujeito entra em depressão.
Observamos que na depressão há o conflito no cerne da estruturação narcísica, que se expressa como uma ruptura estrutural, pondo o sujeito numa condição de auto-depreciamento e desvalorização, de perda do sentido pela vida e de um vazio que inunda o seu corpo e o seu ser. Essa perda desconhecida, resultará numa inibição, num empobrecimento e na cisão do ego, dificultando, portanto, que o sujeito reconheça o outro como um ser separado, incompleto, reconheça sua dívida e tente saldá-la. Em outras palavras, elabore o luto e torne-se singular.
Na impossibilidade de elaborar o luto e de simbolizar a falta, o sujeito imobiliza-se, tornando-se prisioneiro do outro. Portanto, o processo básico de constituição desse sujeito será extremamente prejudicado uma vez que a formação da subjetividade exige um trabalho de luto contínuo que envolve separação, perda, tristeza e reconstituição de aspectos do objeto.
Simbolizar implica aceitar a ausência, lidar com as perdas e frustrações, por mais dilacerantes que sejam. Por mais que se teime, admitir, enfim, a magnitude da falta, abrir mão do desejo por um objeto irremediavelmente perdido, deixar que o abandono tenha acontecido e desenvolver a capacidade de ficar sozinho, sem sentir-se culpado nem esvaziado. Assim, o processo criativo de simbolização exige um sacrifício, uma perda e um pagamento, uma dívida quitada.
Contudo, os deprimidos patológicos por não admitirem as perdas, relutam em substituir uma satisfação específica por alguma outra. Para eles é insuportável correr riscos, já que sempre há perdas e ganhos em toda substituição. Por serem as perdas e os lutos inadimissíveis, torna-se, assim, inviável a continuidade da vida, pois a vida teima em exigir investimentos de amor e as substituições de objetos.
As auto-acusações também têm o propósito de acusar e agredir a um outro amado e odiado que está encrustado em si mesmo, e, por isso, essas recriminações retornam ao próprio ego, pondo o sujeito em perigo de suicídio em sua ânsia de matar o outro dentro de seu ser.
Esse funcionamento pode ter ocorrido em Emma Bovary, levando-a ao suicídio. Na sua impossibilidade de quitar a sua dívida e de desligar-se da imagem aprisionante do outro vem a suicidar-se.
Na depressão, falta a crença, de que apesar das perdas há sempre a possibilidade do trabalho de luto e de construir espaços para uma nova possibilidade de vida, de saber que vale a pena fazer as substituições ou desvios, buscar "outros" ganhos. Essas substituições tornam-se difíceis para os deprimidos devido ao seu funcionamento narcísico, totalizante, cristalizado em crenças universais, absolutas, impossibilitado-os de confrontar-se com os enigmas humanos.
Fazendo um contraponto com a depressão, situamos a feminilidade como uma condição possível de ser alcançada, após um laborioso e gradativo trabalho de luto no qual as representações tanto do objeto incestuoso quanto do objeto perdido são gradativamente abandonadas, em vez de assumirem uma posição cristalizada dentro do próprio eu. É a feminilidade que aponta para alteridade, conquistada após a quitação de uma dívida, condição para que o sujeito venha a increver-se como singular na sua existência. Na impossibilidade de elaborar o luto, o sujeito, em depressão, não consegue "pro-criar" tornando-se improdutivo. Não produzindo, ele não terá condições de quitar a sua dívida.
Nesta perspectiva somos remetidas aos filhos adotados que temos analisado em nossa clínica. Assim, propomos que as reflexões que ora trazemos sobre os adotados possam ser utilizadas, também, para a história de cada sujeito. Observamos que o "romance familiar" dos adotados é permeado por uma trama de dívidas. Se por um lado eles ficam presos a uma dívida não saldada com esses pais adotivos, uma vez que esses pais exigem pagamento eterno por não conseguir ultrapassar sua ferida narcísica, por outro lado, os pais biológicos lhe colocaram numa condição de hipoteca, formando uma aspiral sem fim.
Freud em 1909, utilizou a expressão "romance familiar", para designar a construção inconsciente feita pela criança da sua própria família, inventada ou adotada, com todos os adornos de prestígio fornecidos pelas lembranças dos pais idealizados na infância. Dessa forma, cada criança teria duas famílias: a aristocrática e a humilde, como nas lendas típicas das mitologias ocidentais que sublinham o nascimento dos reis e dos fundadores de religião.
Otto Rank em seu livro - O mito do nascimento do herói - cita que Rômulo, Moisés, Édipo, Paris, Lohengrim foram crianças achadas, abandonadas ou "expostas" a um curso d"água por pais reais, em razão de alguma previsão sombria. Essas crianças que estavam condenadas a morrer são recolhidas por uma família de classe social inferior. Na idade adulta, ao conseguirem recuperar a sua identidade originária, vingam-se do pai e reconquistam o reino, tornando-se heróis.
Do ponto de vista psicanalítico os mitos oferecem a condição de analisar as significações inconscientes que não se mostram de forma explícita na consciência. A questão da lenda dos heróis que retornavam às suas famílias de origem faz conexão com a dinâmica psíquica estabelecida por alguns jovens adotados com desenvolvimento cognitivo adequado, que entretanto, não conseguem apresentar uma produtividade correlata à sua cognição.
Ao traçarmos um paralelo com a mitologia, observamos que o herói retorna a sua pré-história, onde há um nascimento marcado de previsões ameaçadoras à figura paterna. Geralmente, passam a exercer posteriormente uma função superior de mando e de destaque no mundo. No livro "Moisés e o Monoteísmo"- Freud afirma " herói é alguém que teve coragem de rebelar-se contra o pai, e ao final sobrepujá-lo heroicamente."
Ao refletirmos sobre essas questões, pensamos em Renata, uma jovem que não "sabe" da sua condição de adotada, mas todo seu discurso evidencia a busca de sua origem. Logo após ter completado sua maioridade, durante uma sessão de análise, relata que acredita que o seu nascimento foi marcado por muita "dor". "Amanheci deprimida, triste. Atribuo a isto a dor do parto, que talvez, minha mãe tenha sentido. Tive muita dor de estômago e apesar dos amigos terem organizado uma festinha me senti muito carente. Preciso que as pessoas me olhem; fiquei muito agitada e angustiada, chegando a ter um pesadelo. Sonhei que ía perdendo todos os cabelos - uma coisa horrível - e ficava totalmente careca. Quem é careca é meu pai, meu avô e o bebê. Parece que estou nascendo de novo; sinto-me infantil para minha idade. Aliás, minha mãe sempre me diz que eu não sou madura. Todos em casa me cobram muito e desejam que eu seja perfeita, uma princezinha, e têm muito receio que eu não consiga ter uma profissão que me dê o meu sustento".
A improdutividade como sintoma denuncia a dor psíquica dos adotados expressa na demanda dos pais adotivos dirigida ao analista para que os auxiliem na quebra dessa cadeia de compulsão à repetição. Esse sintoma, talvez aponte, o não desejo, do nascimento daquele filho que antes não tivesse nascido, tão bem expresso no final da trajetória de Édipo Rei. Alguns filhos não desejados aspiram ao repouso e à morte eterna, são propensos ao suicídio simbólico, expressão do desejo maior de reconhecimento.
Observamos, que na relação transferencial, o adotado poderá reproduzir seu abandono original, como forma de resgatar a mãe biológica, numa tentativa de inscrição por terem sido hipotecados por ela. É difícil para eles entrarem na cadeia de filiação onde foram "forçosamente" admitidos. Esses sujeitos recusam pagar uma dívida que parece não terem contraído e perpetuam esta dívida reproduzindo-a em sintomas.
Após essas reflexões, pensamos que Renata parece que necessita revisitar, remontar, e re-estrututar as suas origens, o que tormou-se possível através do pedido explicitado por seus pais à analista. Os pais que procuram à analista, solicitam na demanda de análise, um terceiro, que possa intermediar a construção simbólica. A fala no "setting analítico" permitirá ao sujeito a re-construção de sua história. A possibilidade de reconstruir a história está na volta do sujeito para onde tudo começou, retorno às origens que constitui-se numa travessia em busca de uma nomeação, da elaboração de seus lutos, ou seja, de assumir sua filiação.
Renata demonstra a importância da incrição na cadeia de filiação, condição fundamental para que a produção e a transmissão tornem-se possíveis. Mais uma vez recorreremos às lendas e aos mitos para avançarmos em nossas reflexões sobre essas questões. Utilizaremo-nos, agora, do mito da fertilidade na tentativa de compreendermos os entrelaçamentos que operam entre feminilidade e transmissão.
Conta-nos a lenda que Perséfone ao brincar num belo prado foi seduzida pelo perfume de uma planta, enviada pela deusa-mãe Gaia, a pedido de Hades, o senhor do mundo inferior, para que conseguisse raptá-la. A mãe de Perséfone, Deméter, deusa da fertilidade e da agricultura, desesperada com o seu desaparecimento, pergunta-se porque o grande Zeus, pai de Perséfone, permitiu que sua filha fosse levada ao mundo dos mortos. Irada, vinga-se, privando a terra de toda fertilidade, privando os deuses e os homens do fruto da terra. De nada adiantou as súplica dos deuses, nem mesmo do poderoso Zeus para que na terra nascesse uma planta sequer. Por fim, Zeus ordenou que a jovem Perséfone, agora esposa de Hades e deusa dos ínferos, fosse libertada. Abraçada e acompanhada de sua mãe, a deusa retornou ao Olimpo e os campos e pastagens novamente floresceram e a vida retornou à terra. Contudo, Perséfone não podia mais abondonar o Reino de Hades para sempre, porque havia provado a semente de romã na mansão de seu marido. Zeus estabeleceu que sua filha passasse um terço de cada ano com Hades. Assim, toda vez que ela retornava aos ínferos, a terra parava de produzir frutos e chegava o inverno, e quando ela retornava à casa de sua mãe, a terra se cobria com os grãos vivificadores.
Como nos referimos acima, o mito da fertilidade nos traz à tona todos os elementos fundamentais que compõem a cadeia de filiação para que se torne possível a transmissão. A menina ama e odeia a sua mãe, ama sua mãe porque um dia imaginou ser seu primeiro e único objeto de amor. Odeia por desprezo, por saber que sua poderosa mãe não é completa, sendo também responsável por sua incompletude. O ódio vai permitir sua busca do pai e, a partir daí, começará sua trajetória para a feminilidade. Nesse caminho precisará identificar-se com essa mulher, e, manter-se separada dela, completando sua travessia edípica neste processo de diferenciação, increvendo-se sob a lei paterna.
Nesse processo de diferenciação de Perséfone, onde terá que elaborar o luto da separação, precisará ir em busca de uma outra mulher, na qual possa encontrar traços identificatórios para constituir-se como mulher. Como na lenda, Perséfone, através da deusa mãe Gaia, une-se a Hades, deus da morte, que lhe possibilita uma separação e o desvencilhamento dos laços mortíferos maternos e da demanda fálica dirigida ao pai. Parecia, também, difícil para Deméter se separar e permitir que sua filha construísse sua própria história. Deméter, talvez vivesse a separação como se fosse um processo de ruptura na cadeia filial e não como um processo fundamental na constituição de Perséfone. Ao não elaborar o luto da separação parecia entrava numa depressão, não produzindo os grãos vivificadores.
Mais uma vez passaremos da mitologia para a nossa clínica, relatando fragmentos de um caso de análise.
Flora nas primeiras entrevistas não deixa claro o motivo da sua procura por uma análise, uma sombra parece presente em sua vida. Há dois anos teve um filho após muitas dificuldades clínicas. Mas, apesar de ter um filho não se sentia mãe. Agia como se fosse estéril, não reconhecendo este filho, acreditava que um problema nas trompas lhe impossibilitaria de ter outros filhos, fato que ela havia consolidado pela indicação médica para que se submetesse a uma fertilização "in vitro".
Flora descrevia sua mãe como uma mulher bela, "absorvente", bem sucedida, mas queixosa dos filhos e do marido. Segundo Flora, sua mãe não entendia o seu desejo de ter mais filhos, pois os mesmos não serviam para nada. Flora fez várias tentativas para engravidar, mas não obteve sucesso. Quando lhe propuseram entrar no programa de procriação assistida, parecia que havia encontrado uma saída para seu impasse, para sua dificuldade de identificar-se com sua mãe, uma vez que ela lhe parecia uma pessoa absoluta e sem falhas. Um filho dado pela tecnologia reafirmava a sua condição de fracasso e lhe livrava da sua dificuldade de identificação com a mãe. Flora demonstrava que a constituição da feminilidade não poderia ser encontrada através de uma apropriação do falo quer seja através da geração de um filho homem, ou da busca de um filho gerado pela tecnologia, que Flora via como substituto das insígnias fálicas. Durante a análise, Flora, na tentativa de reconstruir os seus processos identificatórios, pode assumir sua feminilidade, construir um discurso singular, e ao engravidar naturalmente, abrir mão da tecnologia como representante fálico.
A posição de feminilidade, que ora apresentamos, opera um desligamento da última noção freudiana sobre a feminildade, na qual, para a mulher a maternidade era o objetivo final e o filho representante do falo paterno, portanto, a feminilidade não está restrita ao único objetivo que a perspectiva freudiana apontou. Se a equação simbólica do bebê como realização de um voto fálico é clássica nas observações de Freud, a contemporaneidade possibilita compreendermos a feminilidade sob outros focos. Como a deusa mãe Gaia, abre o caminho a Perséfone para assunção da feminilidade, Flora vai em busca de um terceiro, na relação analítica, para constituir-se como singular.
Nesse momento, voltaremos à literatura para mostrarmos a importância dos processos identificatórios, da transmissão no registro da reprodução simbólica e concluirmos as idéias que desenvolvemos, ao longo desse texto, sobre depressão, dívida, feminilidade e transmissão, utilizando-nos, nesse momento, da personagem Christine Daaé, da obra "O Fantasma da Ópera", de Gaston Leroux.
A ópera narra a história de uma menina que passou a infância percorrendo cidades do interior na companhia de seu pai, que lhe ensinava a arte da música. Após a morte deste, não consegue avançar no ofício musical, por ter perdido o interesse por tudo na vida. Alguns anos depois, ao chegar, à Ópera de Paris faz apresentações sombrias, provavelmente, por estar vivendo um luto devido a perda do pai. Com o passar do tempo, passa a receber a visita do Fantasma - pai morto -, que será posteriormente atrelado à figura do arquiteto da Ópera.
O Fantasma cobrando a ela uma dívida, permite a sua inserção cultural, através da sua produção que era a música que ela cantava. Observamos que existiu um outro que a ajudou constituir-se e por isso, contraiu uma dívida que precisava ser saldada. Christine, como um modelo ilustrativo da feminilidade, nos ajuda a compreender a dívida que contabiliza o capital libidinal circulante entre o sujeito e o outro. Como nos demonstra a personagem, a quitação dessa dívida, só seria possível na medida em que Chistine assumia suas perdas e elaborava o seu luto. A dívida por ser simbólica, só poderia ser quitada com a própria produção, momento a partir do qual podemos dar, contribuir, e assim, transmitir; o que irá se prolongar num eterno "continuum".
A assunção da feminilidade e a conseqüente construção da singularidade favorece a produção e a transmissão. Portanto, a transmissão começaria quando quitássemos nossa dívida simbólica com as nossas origens, o que implicaria dizer que ela se realiza no registro filial. Pensamos que a questão central da transmissão se passa no registro da reprodução simbólica e não biológica. Frente à improdutividade o sujeito enuncia uma demanda de análise por não saber como saldar sua dívida com as suas origem. Na relação transferencial o sujeito poderá revisitar suas origens, e assim, talvez, reinscrever sua história pessoal, até o limite de, ao final da análise, poder suportar sua incompletude e a do outro.
Freud já estabelecia uma conexão entre a feminilidade e o fim de uma análise, no qual estaria implicado o quitamento de uma dívida simbólica. Nesse sentido, gostaríamos, também, de propor a feminilidade como um paradigma para pensarmos a transmissão do saber psicanalítico, à medida que ela pressupõe suportar a incompletude, a criação de um estilo próprio e o abandono de crenças universais absolutas. Assim, na transmissão da psicanálise é fundamental que o sujeito possa falar em seu nome próprio, ciente de seu desejo e advertido de seus limites. Sob essa ótica, o saber pode circular na Instituição entre todos os psicanalistas e não ser privilégio de detenção por parte de alguns poucos. O sujeito que produz, sabe agora da possibilidade de circulação da meia-verdade, que nunca é toda, entre todos. Transmitir na Instituição Psicanalítica não é só partilhar, mas se inscrever numa fratria.
Para construirmos esse trabalho, reconhecemos que nada é realizado se não tivermos o outro como alicerce das nossas constituições e construções. Foi devido a esse reconhecimento que revisitamos as lendas, os mitos, Sófocles, Freud, Otto Rank, Ernest Jones, Melanie Klein, Winnicott, Lacan, Pierre Fedida, Thomas Ogden, Monique Bydlowski, Joel Birman, Maria Rita Kell e outros. Foi preciso que houvesse leituras desses pioneiros e contemporâneos, termos uma origem psicanalítica, firmada na nossa instituição, que nos forneceu espaços de estudos e laços identificatórios para deslizarmos nas interlocuções e tentarmos criar um trabalho que pudesse transmitir o que seja a nossa prática psicanalítica.
ANA
BEATRIZ ZUANELLA CORDEIRO*
ANA YÊDA CIRILO CARVALHO*
MARIA DO CARMO VIEIRA DA CUNHA*
MARIA THEREZA L. DE A. C. LINS*
Endereço eletrônico: cppl@cppl.com.br
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