A clínica com crianças e a formação do psicanalista

Angela Vorcaro

 

"Elucidar o estado originário é sempre uma construção. [...] não é fácil penetrar nos modos primitivos do pensar. Entendemos mal o pensar primitivo com tanta facilidade quanto o fazemos com a crianças e continuamente nos inclinamos a interpretar seu fazer e seu sentir de acordo com nossas próprias constelações psíquicas." (1)

Um verbete incluído no Dicionário Enciclopédico de psicanálise alerta para a surpresa que o leitor poderá ter diante do fato de os psicanalistas dedicarem um capítulo separado à criança: "Significaria isso que a perspectiva analítica sobre a criança – se não a psicanálise das crianças propriamente dita – constitui um ramo à parte, derivado, um avatar da experiência analítica ortodoxa? É verdade que até hoje se pergunta se o que chamamos de psicanálise da criança deve ser ou não efetivamente reconhecido como psicanálise stricto sensu (2)". Essa mesma suspensão é relembrada por Sílvia Fendrik (3), ao dizer que, na história da psicanálise de crianças, os impasses ainda não superados mantêm interrogações que não atingiram um estatuto conceitual, por localizarem o fantasma da filiação, posto em ato na cena analítica, como resposta que revela e re-vela o sintoma do analista.

Constatamos que a psicanálise com crianças representa, muitas vezes, uma sub-psicanálise, como diz Marie-Jean Sauret: <<uma psicanálise para principiante>>(4), o que poderia nos levar a perguntar se uma psicanálise com/de crianças estaria à altura do discurso analítico. Efetivamente, encontramos muitos cursos que embora se proponham a formar especialistas em psicanálise de crianças, acontecem totalmente isolados da formação de analistas. Há ainda outras propostas que se definem numa orientação psicanalítica, mas que partem do pressuposto da insubmissão da criança à psicanálise. Ou seja, em ambos os casos, que não são poucos, o atendimento de crianças ocorre desvinculado da formação em psicanálise. Também nas escolas e associações de psicanalistas, a teorização, a partir do atendimento clínico de crianças, está, muitas vezes, numa posição residual ou mesmo exterior à teorização da psicanálise.

É possível observar ainda, insiste Sauret (5), que a teorização, a partir da experiência direta com a criança, cai facilmente na profilaxia ou na ortopedia psicanalítica: perspectiva analítica sob o signo da evolução. Essa mescla de psicologia/psiquiatria/psicanálise, que põe em jogo a criança, obriga os analistas a examinar tais instituições, se não para interferir, ao menos para se ter uma idéia de como o campo social entende o que seja tratar o sujeito. De todo modo, não problematizar essas questões torna os analistas cúmplices da mitologização do indivíduo.

Valeria talvez a pena revirar a questão: será que o discurso psicanalítico alcança a clínica com crianças?

Nesse sentido, não é sem interesse considerar as modalidades da observação direta, desenvolvida na clínica médica e psicológica, para constatarmos o quanto podemos ser enredados por essas modalidades de visibilidade quando estamos diante de uma criança. Afinal, a criança nos impõe tamanhas dificuldades de distinção entre Real, Simbólico e Imaginário que, para sair da deriva imposta por uma continuidade indiscernível quanto a esses registros, acabamos por abandonar cedo demais a clínica psicanalítica e recorrer seja à classificação seja à compreensão. O viés do apagamento da singularidade permite constatar tanto a mutação da psicanálise em discurso social quanto a adaptação da vestimenta psicanalítica a esse mesmo discurso. Essas versões de apagamento da singularidade podem ser distinguidas a partir das modalidades em que as manifestações da criança são capturadas e tratadas como fatos particulares. É possível, no entanto, distinguir essas versões de apagamento da singularidade.

Temos, por um lado, a versão aplicativa, que opera a conversão direta da teoria à situação clínica. Servindo-se da teoria como modo de classificação, o clínico estabelece, reparte e hierarquiza a zona de fronteira entre a normalidade e a patologia, alienando a clínica à teoria, à qual se remete ao assumir-se agente metodológico da vigência teórica. Toma, deste modo, a clínica como instrumento de confirmação do já predito pela teoria. Funcionando na posição de emblema de uma suposição de saber, fetichizando a teoria, o clínico desconsidera, em sua prática, qualquer outro fator de eficácia que não o previsto pela teoria. Supondo-se seu representante legítimo, apaga e despreza o que a excede. Nessa perspectiva, a criança só interessa na medida em que assinala o reencontro do já previsto pela teoria.

Por outro lado, ancorado na somatória de concepções teóricas, o clínico envereda pelo viés multidisciplinar, supondo operar tratamentos a partir de engates ficcionais de preceitos oriundos da associação da psicanálise às teorias do desenvolvimento. Desconsiderando sua disparidade, produz, imaginariamente, um acordo sustentável unicamente no semblante de teoria que o atributo "multidisciplinar" oferece ao discurso social, em uma clínica da interpretação compreensiva. Nesta linha, o clínico constitui as manifestações da criança com sua compreensão, articulando, por dedução, o que estaria latente. A manifestação da criança adquire o poder de evocar sentidos, e o que garante a clínica é a prevalência da intuição. Desconhecendo a dimensão imaginária que a constitui, o clínico referencia, no próprio acréscimo de sentidos que a compreensão oferece, a fuga insistente do sentido, obliterando-o. Assim, tanto na particularização teórica, quanto na universalização do imaginário, abandona-se a interrogação sobre a singularidade das manifestações da criança e escapa-se à ética da psicanálise.

O que há na criança (de) insuportável?

Não por acaso existem soluções: os analistas recusam as crianças porque tomam tempo, exigem cuidados especiais e acarretam incômodos diversos. Mas, vale notar que os psicanalistas que só atendem analistas e analisantes que se dirigem explicitamente à psicanálise e/ou que se dedicam à supervisão, podem acabar por ficar isolados da subjetividade de seu tempo. Nesse caso, Sauret (6) confirma o veredito de Lacan: <<seria melhor que renunciassem ao exercício da psicanálise>>.

Fazer trabalhar essas questões é o que a clínica de crianças impõe à formação do analista. Freud constata que a criança concreta sustenta, efetivamente, dificuldades para a psicanálise. Enquanto termo substituível na equação de equivalentes, a criança assume uma função significante: que pode ser vertida em todos os sentidos orientados pelo seu efeito, no fantasma do adulto que a ela se dirige ou que dela escapa. Freud abordou a dificuldade implicada no estatuto da criança enquanto representação narcísica dos pais e da cultura; lugar de realização do que os pais não fizeram, lugar de prevenção e da ortopedia rumo ao ideal de civilização. Mas o que permite tantos desdobramentos de sentido nessa articulação do simbólico ao imaginário, permitindo falar de cúmulo de sentido, nos deslizamentos infinitos entre o significante e o corpo infantil, é isso que toma assento no real da criança.

O estatuto de real da criança também foi bordeado por Freud. E de muitas maneiras. Não apenas ao dizer que a observação de crianças não responde pelo infantil e origina malentendidos, mas ao dizer também que a observação da vida anímica infantil é uma tarefa difícil, que a criança pode tornar-se enigma inabordável, que a criança ensinou-lhe coisas para as quais não estava preparado, que poderia estar muito idoso para ter paciência com elas; paciência, inclusive, para escrever sobre ela. Buscou reparar tal descuido na delegação dessa tarefa à sua criança, a Anna, que representava, então, o futuro da psicanálise (7).

Enfim, se Freud afirma que <<o anímico é imperecível em seu sentido mais pleno>> (o que já é dizer, com Lacan, que há aí um cúmulo de sentido, que não é senão o nonsens>>), de nada adianta buscar apreender-lhe a origem. Não se trata do originário, mas do real. E o real provoca seu desconhecimento, sua negação sistemática.

Se esse real pode ser encoberto ganhando o nome de criança, é preciso considerá-la como a consistência imaginária dada a essa lógica temporal de extração de um sujeito a partir da imanência vital, como percurso da posição na estrutura que o precede.

A análise de crianças incide sobre a forma como foi transmitida a estrutura. Trata-se, portanto, de distinguir como a criança cifra sua relação com a alteridade. Situar a criança na estruturação subjetiva exige a hipótese de que não há insuficiência de linguagem em nenhuma criança, a despeito dos modos como ela se apresenta. Há condições de circulação significante na trajetória lógica de sua estruturação e no aprisionamento a impasses que podem ser gerados nessa trajetória. Abordar a realidade psíquica da criança implicará o recolhimento do tecido significante articulado pelos sentidos, localizando, nele, marcas que balizam sua constituição, para reconhecer as senhas que poderão operar sua leitura.

A criança é responsável pelos seus sintomas, pois são eles que a constituem como sujeito de sua própria palavra, mesmo que surjam do inconsciente parental. Como diz Martine Lerude (8): o sintoma não é um simples parasita vindo instalar-se sobre uma natureza vitoriosa, perfeita. Mas tratar uma criança implica virar o método analítico ao avesso: emprestar-lhe desejo, significantes e imaginário, para que ela possa experimentar e constatar a possibilidade de sair das determinações do campo da linguagem em que está imersa, através do seu ato de fala. É precisamente isso que se faz necessário nas graves patologias infantis.

O grande problema é que, para causar o trabalho do simbólico pelo qual a castração se realiza, é preciso acolher a criança. As modalidades desse acolhimento são complexas, pois podem implicar a repetição indiferenciada da posição em que ela se oferece. É o que ocorre quando o analista assume a condição de suplência das funções parentais ou pedagógicas, que os pais e outros agentes do discurso social lhe delegam. Trata-se de acolher a criança sem gozar às suas custas e sem se colocar como objeto de seu gozo. Se o analista deve, num primeiro tempo, dis-pôr-se, para situar as condições nas quais a criança se manifesta por adesão ou por oposição, é para que, num segundo tempo, exerça o ato capaz de engendrar, na criança, a capacidade do exercício de atos que a inscrevem no laço social. A condição de a clínica analítica operar é a de supor que a criança coincide com um sujeito incomensurável, margem muitas vezes estreita demais no caso de crianças. Que seu sintoma dependa da subjetividade de um outro – sintoma da verdade dos pais, localizando o gozo do casal ou o gozo materno – isso não impede que seja surpreendida e que seja convocada a distinguir-se do gozo que encarna e de sua anuência em encarná-lo.

Mas o analista de crianças produz, muitas vezes, incidências em que não se atêm à lógica da psicanálise. A clínica, então, longe de interrogar a teoria, trabalha, nesse caso, dela desvinculada. Seja por restringir-se a observar as crianças brincarem, seja valendo-se da dimensão da sugestão e do suporte (aconselhamento aos pais ou a via pedagógica), seja ainda por limitar-se a fazer acompanhamentos de crianças, o analista se contenta em fazer uma clínica em que dissipa sua intervenção por meio da inespecificidade. Nesse movimento há um ato, mesmo que esse ato não seja psicanalítico e que possa ser até qualificado de interesse científico. Seu ato surge velado na captura da criança pelo próprio fantasma, ou nos atos da criança em que o analista é capturado pelo fantasma da mesma.

Essa inclusão do analista ou da criança como termo de uma constelação fantasmática é circunstância bastante corriqueira na clínica de crianças. Muitos são os analistas que se conduzem posicionados como especialistas em suplência, a partir da função que atribuem à maternidade e à paternidade. Guiados por seus próprios ideais, realizam, na clínica, a orientação rumo à boa família e à boa educação das crianças; a partir de sua própria mitologia, efetivando a aderência da psicanálise às práticas médicas e pedagógicas. Muitos são os que se servem da oposição taxativa ao discurso médico-psicológico, sem, entretanto, nele incidir, em nome do segredo ético com que se impõem o silêncio, implicando o que Lacan (9) diz: os analistas não dizem o que a prática analítica opera, para nada quererem saber de seu ato, que lhes causa horror. Enfim, esse real que está em jogo na formação do analista, e que só a explicitação de suas operações clínicas pode abordar na transmissão do caso, é privilegiadamente incidente na clínica com crianças.

O que há, na criança¸ de insuportável?

As questões se repetem, insistem. A clínica de crianças impõe ao analista o real de seu gozo, diz Sauret (10), convocado pelo reencontro da criança. Criança de que não podemos mais nos lembrar, criança da qual não podemos nos separar e que recalcamos, para efetuar uma neurose. Analisar uma criança concreta, que nos parece um fluxo, contínuo e indistinto RSI, implica o reencontro do real do gozo irredutível do sujeito: o infantil imperecível que repete seu traço no fantasma, como objeção ao saber.

A criança, portanto, captura imediatamente o que há de mais singular no analista, porque ela convoca o seu fantasma. Não é por acaso que a produção de sentidos em que o imaginário do clínico rola como um barril ¾ para encobrir o lugar em que a criança comparece no furo do analista, ou na codificação da patologia psiquiátrica-neurológica em que ela é contida ¾ seja um dos meios com o qual se contorna o atendimento da criança:. Não é sem motivo que a criança mobilize com tanto vigor a resistência à psicanálise e mesmo a resistência da psicanálise. No tratamento de crianças, portanto, o desejo do analista também não é anônimo. É porque temos tanto a fobia da clínica, resolvida com o recurso à teorização, quanto o fascínio por ela, em que não há lugar para interrogar a teoria, como diz Jean Bergès (11).

Parece-me que, para além da análise, já que só ela o permite, a interrogação que o real da clínica é capaz de fazer à teoria é o que pode permitir o bem-dizer sobre a criança e ultrapassar o ponto de deriva ou de contenção que ela promove, também na psicanálise.

Assim, a clínica psicanalítica com crianças continua interrogada, e naquilo mesmo que podemos aprender do ponto de embate entre Anna e Melanie. A condição de estrutura que põe em funcionamento modalidades de amarração e de desamarração do Real, do Simbólico e do Imaginário impõe particularidades às condições que tornam possível uma interpretação. Muitas vezes, essas condições não se fazem sem o empréstimo do imaginário do analista, e sem que a criança se aloque na sua própria versão paterna. Não há anonimato aí. Sem tais condições, não há como ler as cifras da criança. Sem considerar sua incidência, não há como distinguir a criança sujeito, não há como operar um dizer que permita à criança ler e transliterar suas próprias letras, para desarrimar o gozo.

As várias experiências de atendimento psicanalítico a crianças, nas contingências que as graves psicopatologias lhes impõem, constatam que a circunscrição da criança ao limite da clínica psicanalítica é, ao mesmo tempo, condição necessária para que ela opere deslocamentos lógicos estruturais de posição nos registros Real, Simbólico e Imaginário, e restrição contingente para abarcar toda a rede de urgências que o próprio processo de estruturação exige desdobrar. Várias são as conseqüências desse limite. É necessário seguir seus trilhamentos.

Trata-se aqui de crianças que não estão localizadas na função da fala. Algumas diferenciações mínimas entre circunstâncias que o explicitem podem ser delineadas:

Sua posição no circuito social só lhes permite tomar como homogêneos o campo da linguagem e o espaço indiscernível em que estão mergulhadas;

Podendo distinguir e mesmo privilegiar enunciados no campo da linguagem, tais crianças estão impedidas de proferir uma enunciação pela qual - sincronicamente – alienam-se e se destacam da rede significante.

Sendo assimiladas ao intervalo em que a alteridade aloca sua própria falta, essas crianças a encarnam, coladas à hiância que as debiliza ou as constringe à condição de morbidade.

O empecilho ao atendimento analítico dessas crianças é que o desdobramento de suas experiências no discurso social apenas reproduz essas posições, resgatando a mesma modalidade de exclusão a que estão submetidas, já que, ao menos aparentemente, só ao se alocarem nesse lugar, elas conduzem a rede significante, a elas dirigida pelo Outro, a tomá-las em uma mesma posição. Assim, como diz Alfredo Jerusalinsky (12), a criança recebe diretamente e acata, sem inverter, a demanda de exclusão a ela dirigida. A questão que se coloca é: como deslocá-la desta posição? como convocá-la a sair da passividade de suportar a posição real em que se insere e em que o Outro a insere? Como demandar-lhe que faça o real ao invés de sofrê-lo?

Um dos efeitos decorrentes dos limites das circunstâncias da clínica analítica com essas crianças é que os analistas, muitas vezes, vêem-se obrigados a intervenções de outras ordens que não a do ato propriamente analítico, produzindo as ditas adaptações da técnica, que escapam ao escopo da psicanálise. Escapam, não apenas porque estejam necessariamente conduzidas por outro discurso ou mesmo pelo próprio fantasma do analista, mas pela intensa exposição ao indizível do real a que o analista está, nessas circunstâncias, submetido. Como conseqüência, observamos que as urgências com que esses pacientes convocam o analista configuram-se como limite. Limite ao contraponto que a clínica deveria fazer à teorização, por meio da diacronia que faria retorno à lógica da criança e que permitiu sua intervenção no a posteriori de sua incisão.

Muitas vezes, encontramos analistas tão siderados pela clínica que chegam a encarnar uma posição disléxica e afásica, em relação ao que se passa com a criança. A criança, imersa no real, conduz o analista a tal sideração, exposto à irrepresável eclosão de significantes não endereçados, num tempo não dialetizável, sem pulsação. A inibição provocada no analista é, muitas vezes, patente. Mas, oferecer testemunho do seu encontro com o real, recuperando as modalidades da incidência desse real no simbólico, é exigência para a inscrição da criança no discurso social. Como diz Michèle Faivre-Jussiaux (13), a despeito da necessidade de um diagnóstico que oriente a direção do tratamento, é apenas no caso que o analista mostra a não coincidência entre cada paciente e uma estrutura patológica já estabelecida. Afinal, em sua singularidade, as crianças apresentam a freqüente reversibilidade de posição em relação à fixidez das estruturas, esclarecendo que passam, ultrapassam e atravessam quadros distintos. Apenas na sua transmissão, o analista aponta o ângulo a partir do qual o laço transferencial da criança e o desejo do analista incidiram nesses deslocamentos, testemunhando a diferença radical que exclui a criança de qualquer laço social.

A "insubmissão" da criança à psicanálise é, de fato, uma resistência da psicanálise. A criança vem apontar, nesse lugar de objeto, uma resistência NA psicanálise – resistência que é mais que um conceito "aplicável" ao analisando ou ao analista – é a própria psicanálise que precisa dis-pôr-se à clínica com crianças e, assim, estar ao alcance delas. Nesse sentido, o psicanalista é, por vezes, intimado a ocupar lugar de Outro primordial, ou mesmo o lugar de secretário. Essa mudança de posição – temida, evitada, obliterada, angustiada, mal tratada, tomada como impossível, viria de fato revirar a psicanálise.

Ocupar a posição de analista com crianças coloca a ética da psicanálise em jogo porque, nesse caso, a responsabilidade é outra – trata-se da diferença entre estruturas "resolvidas", e o fato de considerar, na criança, essa "não resolução". Se a estrutura não está resolvida, há chance de uma re-solução. O analista vai agir sobre o NÃO – trata-se de uma estruturação incompleta, ou de uma estruturação inacabada, ou de uma estruturação em que terá havido um lapso – o que é algo mais que fazer o analisando trabalhar na decifração...

Uma das finalidades da experiência psicanalítica, lembra Faivre-Jussiaux (14), é desvendar o lugar do analista na aventura singular, cuja causa ele suporta e, ao mesmo tempo, o destitui, fazendo dele, um outro. Que esse real se torne legível é, ao mesmo tempo, o desejo do analista e a aposta da transmissão do caso. Fracassar nessa tarefa situa o analista, juntamente com a criança, fora do discurso.

Assim, a perspectiva que o lugar da criança assume, na formação dos analistas, vai além da clínica. Trata-se de analisar como o campo discursivo concebe e trata a subjetivação, e de, também, interrogar a teoria psicanalítica com o caso clínico, para sustentar o gesto freudiano da descoberta do inconsciente. Trata-se, ainda, de oferecer, aos que se interessam pelo discurso psicanalítico, o testemunho da clínica com crianças, expondo-o à refutação. Esta é uma proposta – e uma aposta – de uma clínica psicanalítica com crianças possível.

NOTAS

Sigmund Freud (1912-13), Tótem y tabú, O.C., Amorrortu, Buenos Aires, 1993, p.106.

G. Guilherault, Psicopatologia da criança, Dicionário Enciclopédico de Psicanálise, Kaufmann P. (org.), Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1996, p.99.

Silvia Fendrik, Ficção das origens, Artes Médicas, Porto Alegre, 1991.

Marie-Jean Sauret, O infantil e a estrutura, Conferências em agosto de 1997, Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, 1998, p.60.

Idem.

Op. cit., p. 60.

Fiz um estudo pormenorizado destes aspectos no livro: A criança na clínica psicanalítica, Rio de Janeiro, Cia de Freud, 1997, pp. 46-64.

Martine Lerude, Au bonheur des enfants, La psychanalyse de l’enfant, Paris, Association Freudienne,1992.

Jacques Lacan, Proposición del 9 octobre sobre el psicoanalista de la Escuela, Momentos cruciales de la experiencia analítica, Buenos Aires, Manantial, 1987.

Op. cit. p.62.

Jean Bergès, La carte forcée de la clinique, Le discours psychanalytique, Paris, Association Freudienne, 1990.

Em comunicação pessoal, São Paulo, 1999.

Michèle Faivre-Jussiaux: L’enfant lumière: Itinéraire psychanalytique d’un enfant bizarre, Editions Payot Rivages, Paris, 1995,pp.14-19.

idem, pp. 20-21.


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