MELANCOLIA E IRONIA

Para Manoel Tosta Berlinck, meu mestre, meu amigo.

Antonio Ricardo Rodrigues da Silva

Este trabalho tem como objetivo articular algumas aproximações entre a melancolia, tal como desenvolvida no artigo "Luto e Melancolia" (1917) de Freud e a Ironia, como uma das formas de expressão da linguagem. Partindo do princípio que o campo dos fenômenos irônicos, assim como os do humor, dizem respeito a um amplo leque que inclui muitas definições, com nuanças muito específicas, nos deteremos num tipo bem particular, denominada Jocosa, para diferenciá-la de outras formas de ironia.

O procedimento tomado aqui para a realização dessas aproximações, partirá da definição de melancolia e do trabalho de luto, tal como proposto por Freud em seu artigo de 1917, passando em seguida pela definição de ironia jocosa, ilustrando-a com uma parte que consideramos importante e até característica da obra do cineasta americano Woody Allen. Num terceiro momento faremos as articulações necessárias no campo da melancolia e da ironia, onde também será postulada uma hipótese.

MELANCOLIA E TRABALHO DO LUTO

"Lançar alguma luz sobre a natureza da melancolia, comparando-a com o afeto normal do luto"(p.275) (1) é assim que Freud inicia seu artigo de 1917.

O trabalho do luto e da melancolia vão sendo articulados ao longo do texto e Freud, como de costume, vai-nos conduzindo pelos caminhos do processo patológico, comparando-o com o "normal".

Desde esse início destaca a melancolia no seu contexto psiquiátrico, apontando que sua definição, mesmo na psiquiatria descritiva, assume várias formas clínicas, não sendo possível reuni-la num único grupo como uma unidade, considerando, inclusive, que algumas dessas formas sugerem "uma afecção antes somática do que psicogênica"(p.275) (2) . No entanto, ele tratará dos casos que considera serem pertencentes à segunda alternativa, (pequeno número, mas de natureza indiscutível).

"O Luto, de modo geral, é uma reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante"(p.275) (3).

Mas as perdas são uma parte inexorável e importante da vida dos seres humanos. Aqui Freud começa a destacar as diferenças entre as pessoas que realizam o trabalho do luto e outras que produzem melancolia. Considera haver, nos sujeitos que desenvolverão melancolia, uma disposição patológica e, sendo o luto um processo (uma atitude normal para com a vida), é superado após um certo tempo, retomando o sujeito os seus investimentos.

O trabalho de luto se realiza a partir do teste da realidade, que constata que o objeto de amor não existe mais. Há, então, uma exigência de que toda libido antes investida nesse objeto seja retirada, não sem um pouco de resistência (afinal, como o próprio Freud destaca, não é fácil para as pessoas "abandonarem de bom grado uma posição libidinal, nem mesmo na realidade, quando um substituto já lhe acena" (p.277) (4). Prevalece o respeito pela realidade e pouco a pouco o sujeito vai podendo (com grande dispêndio de energia e de tempo) desenlaçar-se do objeto perdido, que ainda por um tempo continua a prolongar-se no psiquismo do enlutado, mesmo tendo já desaparecido objetivamente. Ao concluir-se o trabalho do luto, o ego fica novamente livre para novos investimentos.

Na melancolia temos, por parte do sujeito, "um desânimo profundamente penoso, a cessação do interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e a diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição"(p.276) (5). Mas o próprio Freud vai destacar que, à exceção da perturbação da auto-estima, todas as outras características aqui arroladas como da melancolia, são também encontradas no luto, pois a perda de um objeto amado produz pesar, perda do interesse pelo mundo externo (pois não é mais possível encontrar o objeto nele) e grande dificuldade em adotar um novo objeto de amor (substituir o morto).

Qual seria então o traço distintivo do luto para a melancolia ?

Se ambas se referem a perdas, de que perda se trata especificamente em cada uma delas ?

Dor, pesar, desinteresse. Estas são expressões características dos que perderam algo. Os que sabem o que perderam podem realizar o trabalho do luto, já os que perderam mas não sabem exatamente o quê, podem se adentrar no enigmático mundo cinzento da melancolia.

Freud considera pois que a perda de que tratamos na melancolia se refere a "uma perda de natureza mais ideal. O objeto talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor."(p.277) (6). Na melancolia, sabemos, nós e o paciente, que uma perda se deu, mas não sabemos o que se perdeu nesta perda. Sabe-se quem se perdeu, mas não o que se perdeu.

Essa experiência enigmática da qual o melancólico nos faz testemunha exigiu do próprio Freud um esforço metapsicológico extraordinário na tentativa de dar conta deste distúrbio, colocando vez ou outra o caráter especulativo dessas construções ainda não "comprovadas" empiricamente.

Partindo do princípio de que a característica por excelência da melancolia diz respeito a um rebaixamento extraordinário da auto-estima, com virulentos ataques de auto insultos e recriminações, coroados por uma expectativa delirante de punição, o que produziria num sujeito algo deste montante, onde a própria vida seria posta em cheque ?

No luto, o mundo fica pobre, triste e vazio, pois não há mais a existência do objeto de amor nele. Na melancolia, é o ego que se esvazia. Esse esvaziamento é progressivo, povoado por uma auto-degradação, que chega ao limite de um despudor ante o outro. Uma autocomiseração que consome o ego até nada mais de moralmente valioso existir em si próprio, restando-lhe apenas a morte (suicídio) ou o morrer (definhando).

As relações entre o adoecer melancólico e a verdade do desejo inconsciente começam a se delinear a medida que Freud se coloca a seguinte e também enigmática questão: " ficamos imaginando tão somente, por que um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie" (p.279) (7). Hamlet é então convidado aqui por Freud, para prestar depoimento (a medida que ele também tinha uma opinião assim de si mesmo e dos outros).

Freud convida também duas mulheres aparentemente muito diferentes, para comprovar sua tese: " Uma boa, capaz e conscienciosa, não terá palavras mais elogiosas para si mesma, durante a melancolia, do que uma que de fato seja desprovida de valor; realmente, talvez a primeira tenha mais probalidade de contrair a doença que a segunda, a cujo respeito também nós nada teríamos a dizer de bom(p.279) (8).

A dinâmica inconsciente precisa ser investigada para que possamos entender melhor como se dá a organização psíquica que leva uma pessoa ao adoecer melancólico.

A perda do amor próprio se refere a uma perda no seio do próprio ego, disparada pela consciência moral, pela instância crítica "No quadro clínico da melancolia, a insatisfação com o ego constitui, por motivos de ordem moral, a característica mais marcante (p.280)" (9).

Mas por que tanta insatisfação ?

A princípio Freud aponta que essa insatisfação se manifesta como sendo sobre si mesmo. O melancólico se auto-acusa de todas as mesquinharias do mundo, mas um exame mais detalhado mostra-nos que com pequenas modificações, estas são dirigidas a um outro, muito próximo, alguém que se ama, que se amou ou se deveria amar.

Um tal despudor parece, então, agora fazer sentido – ataco um outro atacando a mim próprio; as acusações são feitas a outrem, e através de um processo de deslocamento, dirigem-se agora ao próprio ego do paciente. Há, aqui, uma espécie de revolta contra o objeto de amor.

Havia uma ligação intensa com um objeto de amor em particular, marcada nomeadamente por uma ambivalência extrema que por sua vez, se encontrava recalcada. A partir de um desapontamento ou desconsideração proveniente do objeto, a relação foi então destroçada O investimento libidinal é desta maneira liquidado sendo a libido retirada para o ego, servindo para estabelecer uma identificação do ego com esse objeto abandonado. " Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado" (10) (p.281). "Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação" (p.282) (11).

Como pré condição para este processo temos uma forte fixação no objeto amado e, ao mesmo tempo um investimento objetal pouco resistente (devido à ambivalência). Essa contradição, segundo Otto Rank, se afirma, pois a escolha objetal foi efetuada numa base narcísica e quando esse investimento se defronta com obstáculos (a decepção com este mesmo objeto por não corresponder às suas expectativas narcísicas) retrocede então para o narcisismo " original" . No lugar do investimento erótico no objeto aparece a identificação narcísica (e apesar do conflito, não se precisa renunciar a esta relação amorosa, pois ela ficará de alguma forma preservada dentro do próprio ego do paciente, mas de forma destroçada, pagando-se um alto preço). Aqui podemos entender melhor a enigmática frase do Freud "A sombra do objeto caiu sobre o ego" .

A substituição do amor objetal por uma identificação é, segundo Landauer (citado por Freud), um importante mecanismo nas afecções narcísicas e "representa uma regressão de um tipo de escolha objetal para o narcisismo original" (p.282) (12).

Para Freud, a identificação é uma etapa preliminar da escolha objetal, sendo a forma primeira pela qual o ego escolhe um determinado objeto (há sempre uma escolha narcísica). A questão na melancolia é a forte marca da ambivalência nessa escolha objetal que, uma vez rompida (perdido "o objeto"), destroça a identificação, regredindo a libido para uma forma de escolha objetal em conformidade com a fase oral ou canibalística (segundo Karl Abraham), devorando o objeto (que é sua própria identificação narcísica, deslocada para o objeto perdido).

Não é sem motivo que Freud dirá que "A perda de um objeto amoroso constitui excelente oportunidade para que a ambivalência nas relações amorosas se faça efetiva e manifesta" (p.283) (13).

A intensa ambivalência é um forte pré-requisito na melancolia. "Se o amor pelo objeto – um amor que não pode ser renunciado, embora o próprio objeto o seja – se refugiar na identificação narcisista, então o ódio entra em ação nesse objeto substitutivo, dele abusando, degradando-o, fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de seu sofrimento". "Via de regra, em ambas as desordens, os pacientes ainda conseguem, pelo caminho indireto da autopunição, vingar-se do objeto original e torturar o ente amado através de sua doença, à qual recorrem a fim de evitar a necessidade de expressar abertamente sua hostilidade para com ele. Afinal de contas, a pessoa que ocasionou a desordem emocional do paciente, e na qual sua doença se centraliza, em geral se encontra em seu ambiente imediato. A catexia erótica do melancólico no tocante a seu objeto sofreu assim uma dupla vicissitude: parte dela retrocedeu à identificação, mas a outra parte, sob a influência do conflito devido à ambivalência, foi levada de volta à etapa de sadismo que se acha mais próxima do conflito"(p.284) (14).

Na melancolia a relação do sujeito com o objeto se torna mais complexa e difícil a medida que, neste conflito, a ambivalência para com o objeto toma um lugar central. Freud considera-a constitucional (um elemento de toda relação amorosa formada por esse ego particular) ou proveniente daquelas experiências que envolveram a ameaça da perda do objeto. O ódio e o amor se degladiam na melancolia.

CHISTES, PIADAS RISOS E OUTRAS COISAS MAIS.

O inconsciente sempre se manifesta através de suas formações. Mais cedo ou mais tarde abre-se uma fresta, uma brecha e lá está ele. Assim Freud o identificou nos sintomas, das primeiras histéricas tratadas na virada do XIX para o XX. Com seu livro "A interpretação dos Sonhos" de 1900, este, (o sonho) é o caminho régio para àquele, (o inconsciente). Também ainda muito cedo, em 1901, Freud descortinava a presença do inconsciente em nossas vidas a partir dos atos os mais banais e corriqueiros, que apareciam em gente como a gente. Estava estabelecida a " Psicopatologia da vida cotidiana" e nos tornamos outra coisa aos nossos próprios olhos. Nunca mais fomos os mesmos.

Se, na maior parte das vezes, as expressões do inconsciente - revelando uma verdade do desejo - produzem quase sempre mal-estar (sintomas neuróticos, conversões, angústia intensa, sonhos terrificantes ou de prazer culposo, falas "descabidas" que revelam o que deveríamos ocultar), também, segundo Santaella (15) "...não é só através do desconforto, estranhamento e enigma que o inconsciente faz sua aparição. Há também formações prazerosas que fazem estalar o riso. Trata-se aí dos chistes, quando o jogo cúmplice com as palavras libera as amarras da censura, desferindo verdades que colocam o riso no lugar do mal-estar ou da dor. Deixando cair o véu sisudo da verdade, o chiste faz com que ela brilhe nua na carnadura viva das palavras. Em achados verbais, o chiste promove encontros do dizer JOCOSO (o grifo é meu) com a verdade".

Almeida destaca que "O riso é o denominador comum de todos os fenômenos cômicos e humorísticos" (16). Riso este que pode ser escrachado com uma sonoridade intensa, dobrado sobre si próprio, movimentando todo o corpo e produzindo lacrimejar dos olhos ou um riso "meia boca", um riso amarelo, constrangido, mas sempre um riso.

O escritor russo Anton Tchekov afirmava que "o trágico e o cômico são apenas duas janelas diferentes que dão para a mesma paisagem atormentada". (17) Esta paisagem atormentada a que se refere Tchekov é a condição humana. Cabe a nós "humanos demasiado humanos"(18) , escolhermos em qual das janelas devemos, podemos e queremos nos debruçar para contemplar, participar ou nos desesperar com a paisagem ao fundo. Paisagem não inerte, que nos afeta, nos convida e também atravessa nossas frágeis janelas e invade a ilusória tranqüilidade de nossas casas.

Octave Mannonni afirma que "Freud era sério, mortalmente sério". "...ao que tudo indica era muito sério em seu consultório. Nos seus famosos casos clínicos, ou em seus diversos artigos de técnica, não há referência ao humor, à piada, ou alegria na relação entre psicanalista e paciente. A tragédia de Édipo Rei, bem como Hamlet são importantes nas suas elaborações teóricas, mas não há referências a obra de Aristófanes e também Molieèe" (19).

Se a tragédia e a comédia são faces de uma mesma moeda, portanto indissociáveis na dialética da vida dos homens, por que de um modo geral, a psicanálise privilegiou a janela trágica ?

O escritor argentino Ricardo Piglia afirma "Que ao lado da resistência à psicanálise, esta visão (a da psicanálise) gera muita atração, pois é um dos aspectos mais atraentes da cultura contemporânea, e isso porque todos nós queremos ter uma vida intensa. Gostaríamos de admitir que em algum lugar das nossas vidas banais, experimentamos grandes dramas, que quisemos matar nosso pai e que portanto vivemos num universo de grande intensidade, vencendo assim o tédio, a monotonia em que estamos mergulhado. O psicanalista nos convoca como sujeitos trágicos, diz que há lugar em que todos somos sujeitos extraordinários, lutando contra tensões e dramas profundíssimos, e isso é muito atraente" (20).

Assim sendo, saímos da banalidade de uma vida marcada pela rotina ensurdecedora e somos atirados no universo dos grandes temas míticos e das emoções mais profundas, conquistando um lugar diferenciado na pasmaceira de um mundo regido pelo controle do imprevisível, iluminado por uma razão que tenta dar conta de tudo. Somos então Ulisses, Hamlet’s, Romeus e Julietas, Narcisos e Édipos; escolhemos como Sofia, somos arrebatados pelo ciúme como Otelos, somos esquecidos e trapaceados como Cabírias, amamos como o paciente inglês, ficamos aterrorizados com nossas fantasias como Alice e Bill, descobrindo através de Kubrick que não adianta ficar "De olhos bem fechados", pois o desejo sempre se encena.

O psicanalista inglês Christopher Bollas, problematizando essa perspectiva trágica da psicanálise, aponta que há mesmo na estrutura do saber e da terapêutica psicanalítica, mecanismos que tanto instalam esse trágico na cena analítica como também o minam. Destaca que é uma parte importante das reformulações clínicas de Lacan a idéia de que o inconsciente faz do self um bufão. Ele se refere aqui especificamente à noção de tempo lógico.

Bollas aponta que "Por toda parte, a fala do analisando mina sua autoridade; o simples fato da associação livre descnstrói qualquer destino de herói trágico. Na verdade um paciente avançado na análise sabe bem que cada sessão tem um destino IRÔNICO: começa-se com uma noção do sobre o que se vai falar, para então se dar conta de que falando vão se desmantelando as intenções e trazendo à tona material inesperado. O self que quer ser senhor de sua narrativa continuamente fracassa em suas intenções. Esse aspecto da psicanálise é um mundo completamente diferente do mundo trágico onde a cegueira defronta-se com o insight. Aqui o self parapráxico fala em um espaço absurdo e a psicanálise é uma estrutura CÔMICA; o analisando é virado do avesso pelas subversões intrínsecas da fala dirigida pelo inconsciente. Um paciente em análise é um homem sincero para seu inconsciente e demora algum tempo, se é que isso chega a ocorrer, antes dele começar a desfrutar a COMÉDIA. Isso é verdade para a vida em geral. Felizmente a psicanálise sabe disso e dá ao paciente um divã, sem dúvida para ele já estar deitado quando escorregar e cair" (21).

IRONIA E MODERNIDADE

Nestrovsky afirma: " Ironia e modernidade não são exatamente sinônimos, mas as duas palavras estão bem mais próximas do que se imagina" (22). A Ironia é para este autor "...aquele movimento que faz a linguagem se suspender ou se negar a si mesma está na raiz de todo período moderno (p.07). E prossegue: " Ironia vem do grego eironeia e quer dizer dissimulação. Na comédia grega, o eiron é o pobre coitado que acaba triunfando sobre o valentão. Parte de sua astúcia é fazer perguntas tolas, para as quais não se tem resposta. Essa é também a estratégia de Sócrates, nos diálogos de Platão, e é por isso mesmo que se fala de uma ironia socrática"(p.10)" (23).

Estando a modernidade marcada por duas grandes proposições, como afirma Birman, (24) a nietzscheana, morte de Deus e a weberiana, desencantamento do mundo, toda busca da essência, da matriz, do ponto zero, parece deslocada e deve ser abandonada. A linguagem deixa de ser pura nomeação do já existente, passando a um estatuto de criadora dos mundos, podendo inclusive se suspender a si própria e até negar-se. Nestrovski nos diz que, diante da impossibilidade de conciliar a experiência da linguagem com a existência empírica, resta apenas ao poeta, a desesperança. "A luta é sem esperança porque, no mesmo movimento que cancela a mistificação do homem comum, o escritor só alcança afinal o conhecimento desta mistificação. A linguagem irônica divide o sujeito em homem autêntico e um outro homem, cuja existência só se dá pela linguagem – uma linguagem, porém, que reconhece a sua própria inautenticidade. Como nos ensina Paul de Man, em seu grande ensaio " A retórica da temporalidade", o autor moderno, ao reconhecer a tentação do mundo natural, não pode nunca retornar a ele, mas pelo contrário permanece consciente para sempre da diferença que separa a ficção do mundo"(p.11) (25) .

O dicionário de Filosofia de Abbbagnano define Ironia como "Em geral, a atitude de quem dá importância muito menor que a devida (ou que se julga devida) a si mesmo, à sua própria condição ou a situações, coisas ou pessoas com quem tenha estreitas relações" (p.584) (26). Considera haver duas formas fundamentais de ironia: a Socrática e a romântica "A primeira é o modo como Sócrates se subestima em relação aos adversários com quem discute. Quando, na discussão sobre a justiça, Sócrates declara: Acho que esta investigação está além das nossas possibilidades e vós, que sois inteligentes, deveis ter piedade de nós, em vez de zangar-vos conosco". Trasímaco responde: "Eis a costumeira ironia de Sócrates". Aristóteles só faz anunciar genericamente esta atitude socrática quando vê na ironia um dos extremos na atitude diante da verdade. O verdadeiro está no justo meio; quem exagera a verdade é jactancioso e quem entretanto procura diminuí-la é irônico. E diz que, neste aspecto, ironia é simulação. Cícero referia-se a esse conceito ao afirmar que "Na discussão, Sócrates freqüentemente se diminuía e elevava aqueles que desejava refutar, empregava-se de bom grado a simulação que os gregos chamavam ironia. S. Tomás referia-se a este conceito do termo, como uma forma (lícita) de mentira."(p.585) (27).

Já a ironia Romântica "... baseia-se no pressuposto da atividade criadora do eu absoluto. Identificando-se com o eu absoluto, o filósofo ou o poeta (que com muita freqüência coincidem para os românticos) é levado a considerar a realidade mais concreta como uma sombra ou um jogo do eu, a subestimar a importância da realidade, não levá-la a sério". Na obra "Erwin" de C.G.F. Solger (1815), "...a ironia era interpretada do ponto de vista da subjetividade, que se compreende como coisa suprema e que, por isso, rebaixa a zero todas as demais coisas, mesmo o que há de mais elevado". Já em Hegel que, por alguns pormenores, se opunha à doutrina Solger (considerando-a platônica) assim definia a ironia: " Considerem uma lei, singelamente tal qual é em si e por si: eu estou além e posso fazer isto e aquilo. Superior não é coisa, eu sou superior e senhor; acima da lei e da coisa, brinco com elas a meu bel-prazer e, nessa consciência irônica, em que permito que o supremo pereça, fruo-o a mim mesmo". Kierkegaard considerava a ironia socrática "como superioridade de Sócrates à iniquidade do mundo"(p.585) (28)

Dentro dos dois grandes blocos da ironia, temos uma quantidade considerável de categorias da Ironia, tais como a trágica, a paródica, a mordaz e a jocosa. É no entanto esta última (A JOCOSA ou HUMORÍSTICA) que vamos isolar e por em destaque, realizando as aproximações com a melancolia que virão na seqüência deste trabalho.

O sujeito irônico é uma espécie de David diante de um Golias., onde a princípio não há a menor possibilidade de triunfo, pois o adversário é efetivamente mais forte, poderoso ou bem mais aparelhado. No entanto, graças a uma capacidade extraordinária, tirada da manga, é possível se reverter este quadro e o pequeno pode superar o grande, nem que seja apenas na expressão da linguagem, mesmo que ele termine " perdendo a cabeça" como no caso citado por Freud do condenado rumo ao cadafalso.

Gostaríamos de destacar que há, na Ironia, uma dimensão fundamental de SUPERAÇÃO e mais especificamente de AUTO-SUPERAÇÃO. Esta questão está colocada desde Sócrates e retoma um lugar importante a partir do romantismo com sua exaltação desmedida do EU sobre o mundo e suas adversidades.

Na sua "Estética da criação verbal", Bathkin afirma: "A ironia penetrou em todas as línguas modernas, introduziu-se nas palavras e nas formas (sobretudo nas formas sintáticas: a ironia destruiu, por exemplo, a pesada oração enfática do discurso). A ironia insinuou-se em toda parte, é atestada em todos os seus aspectos: desde a ironia ínfima, imperceptível, até a zombaria declarada. O homem moderno já não proclama nem declama, fala, e fala com restrições... A ironia como forma de mutismo. A ironia (e o riso) servindo para superar situações, elevar-se acima delas" (29)

A IRONIA E O CINEMA DE WOODY ALLEN

O cinema de Woody Allen talvez pudesse ser considerado um cinema da Ironia. Sem dúvida ela está lá todo o tempo. Se, no início de sua carreira, como ator, aparecia mais enfaticamente o tom humorístico, chegando às raias da galhofice, nos filmes onde toma as rédeas como diretor e roteirista, o tom irônico parece preponderante. A própria biografia do diretor de " A rosa púrpura do Cairo" revela esse caráter. Allen é um fã incondicional dos Irmãos Marx (30), que ele homenageou na "Era do Rádio" de 1987 (seu filme mais autobiográfico). Neste, o personagem de Allen agora já adulto, após seguidas das decepções, questionando o sentido da vida enquanto anda pelas ruas da sua Nova York amada, entra numa sala de cinema e assiste a um bela comédia dos Marx, saindo completamente diferente de como entrou, mais leve e com mais força para seguir sua pequena vida.

Também é do Groucho Marx (que Allen também homenageou em "Todos dizem eu te amo" de 1995 - na cena do Hotel Ritz em Paris, onde há uma festa de fim de ano em que todos os convidados têm a marca inconfundível em seus próprios rostos das sobrancelhas grossas e arriadas, do imenso bigode e do charuto, características marcantes deste personagem) a seguinte frase, que Allen parafraseou em Annie Hall (Noivo neurótico, noiva nervosa): "Eu nunca quereria pertencer a um clube que tivesse como sócio uma pessoa igual a mim" (p.85) (31).

Tomarei aqui essa frase, como uma espécie de paradigma da ironia ou (da auto-ironia) e considerarei esta capacidade de se colocar sob suspeita, (mas de uma forma "jocosa" e até inconseqüente) como uma " boa" saída para os impasses da auto-depreciação, que no sujeito melancólico pode levá-lo à morte.

Em 1977 Allen produz uma reviravolta importante na sua carreira, que vai inclusive colocá-lo num novo patamar artístico, ao escrever (junto com Marshall Brikman), dirigir e atuar (ao lado de Diane Keaton) o filme "Noivo neurótico, noiva nervosa". "Bem, aconteceram duas coisas em Noivo neurótico, noiva nervosa. A primeira foi que eu tinha atingido um certo patamar pessoal no qual senti que poderia considerar os filmes que tinha realizado como coisas do passado. Queria dar um passo na direção de filmes mais realistas e profundos. A outra coisa foi que conheci o Gordon Willis (diretor de fotografia). Tecnicamente falando, Gordon foi um professor muito importante para mim. Ele é um mago da técnica. E também um grande artista. Ele me ensinou muitas coisas sobre a câmera e a iluminação. O filme foi uma guinada sob todos os aspectos. Daí em diante, passei a considerar Noivo neurótico, Noiva nervosa como o primeiro passo em direção à maturidade em certas maneiras de realizar filmes." (p.p. 84,85) (32) . A partir de "Noivo Neurótico" Allen vai trabalhar basicamente com a mesma equipe, imprimindo a marca inconfundível de sua autoria. Roteirizando, dirigindo e atuando, a marca Woody Allen se expande, aparecendo um personagem que se pode considerar uma espécie de alter-ego, persona do próprio Allen, - o sujeito neurótico, judeu, de um grande centro urbano, inteligente, hipocondríaco, analisante, às voltas com seus conflitos, tentando sobrepujar sua miséria pessoal. No entanto, e essa a nosso ver é a marca distintiva da obra woodyaleana, tudo isto é feito com uma ironia jocosa extraordinária, diríamos até desconcertante.

O reconhecimento artístico e a boa bilheteria de seus filmes possibilitaram a produção de pelo menos um filme por ano. Este, entre suas comédias, fará incursões em obras de cunho mais dramático – e aqui temos a outra grande influência sobre Allen (além dos irmãos Marx) que é a do cineasta sueco Ingmar Bergman. "Interiores", "Setembro", "A outra", "Crimes e Pecados", seguem nessa perspectiva. O tom da ironia jocosa desaparece, aparecendo uma sombriedade e pesadez, digna de um excelente aluno do mestre escandinavo.

Interessante ressaltar que um cineasta como Allen, que se consagrou e é mundialmente reconhecido como sinônimo de comédia inteligente, faça, vez ou outra, incursões por um universo diametralmente oposto (aparentemente pelo menos) como o realizado em "Interiores" (de 1978). Aqui temos a impressão de estarmos diante de um outro cineasta que trata os temas fundamentais da condição humana com mão pesada. Outro aspecto a ser destacado é a quantidade e a importância das personagens melancólicas nestes filmes. Especificamente em "Interiores", temos a personagem da mãe (interpretada pela atriz Geraldine Page) e a da filha caçula. "Setembro" (de 1987), "A outra" (de 1988) e "Crimes e Pecados" (1989) retomam com o mesmo tom e clima, os temas de "Interiores". O sentido da vida, a solidão, o amor, o trabalho como expressão da subjetividade, a competitividade, o casamento, a traição, os filhos ou o não desejo de tê-los, o suicídio.

Em "Crimes e pecados", há duas narrativas que seguem paralelas, duas histórias que aparentemente não se tocam. Uma com os personagens típicos das comédias de Allen, seus conflitos, desencontros e tudo mais, regado por seu já característico humor inteligente e uma ironia jocosa e cortante; na outra, há um mundo aparentemente mais arrumado, com personagens mais próximos da "vida real", com seus pequenos dramas e delitos, até que a tragédia se abate sobre um deles e um novo e sombrio mundo se ordena em torno deste, exigindo ações que mudarão para sempre o sentido de sua própria vida.

A junção destes dois mundos (através das duas narrativas) se dá nas últimas seqüências do filme, quando a personagem Clifford Stern (interpretado por Allen) encontra e conversa na festa de casamento da sobrinha de sua mulher, com o médico/oftalmologista do pai da noiva (o rabino que está ficando cego) sobre seus crimes e seus pecados. Só que esta conversa se dá num tom de ficção. O médico confessa-se, relatando o que fez, no entanto esta parece mais uma boa idéia para um filme tanto aos olhos do documentarista (Allen) como do médico criminoso.

"Crimes e pecados", com esta narrativa, parece ser uma síntese do interesse de Allen pela comédia e pela tragédia. Se há dentre seus filmes basicamente comédias e algumas incursões pelo drama, aqui estes estilos estão juntos num mesmo filme, que parecem ser dois em um.

A IRONIA JOCOSA COMO SAÍDA PARA A MELANCOLIA

Seria possível, a partir do exposto até aqui, postular que a ironia jocosa poderia significar um saída menos trágica (e nós arriscaríamos dizer até saudável) para os impasses colocados pela doença da bilis negra (a melancolia) ?

Será que a fenomenologia cinzenta e pesada da melancolia poderia ser transformada no amarelo/vermelho da vivacidade da ironia jocosa ?

A melancolia é uma organização que vem sendo postulada como uma quarta estrutura, capaz inclusive de se manifestar defensivamente em quadros histéricos ou simplesmente maníacos.

Um sujeito marcado efetivamente por uma forma irônica e jocosa de se relacionar com os objetos a nosso ver poderia trazer uma base melancólica importante, tendo no entanto a possibilidade de elaborá-la nessa intensa expressão irônica, traço distintivo de suas relações com o mundo.

A ironia jocosa seria uma espécie de acordo feito na economia psíquica deste sujeito, o que o colocaria na possibilidade de não sucumbir ao puro auto envilecimento e depreciação, que, no melancólico, leva-o até o limite extremo da morte por inanição.

"Rir da própria desgraça" diz a sabedoria popular "é também uma forma de filosofar". E nós diríamos um pouco mais, não se levar tão a sério, não desejar ser sócio de nenhum clube, principalmente daqueles que nos aceitam como sócio, talvez seja uma boa forma de se estar no mundo, sorvendo suas belezas, se indignando com suas vilanias e, principalmente, não se iludindo que o mundo e os objetos de amor são movidos por nossa imagem que se apresenta como espelho.

Assim, aceitar sua condição de desamparo e dos seus objetos de amor e achar bonito o que não é espelho.

Muito obrigado.

NOTAS

1 FREUD, Sigmund. "Luto e Melancolia". SEB, vol. XIV (1917)

2 FREUD, Sigmund. Idem

3 FREUD, Sigmund. Idem

4 FREUD, Sigmund. Idem

5 FREUD, Sigmund. Idem

6 FREUD, Sigmund. "Luto e melancolia"

7 FREUD, Sigmund. Idem

8 FREUD, Sigmund. Idem

9 FREUD, Sigmund. Idem

10 FREUD, Sigmund. "Luto e melancolia".

11 FREUD, Sigmund. Idem

12 FREUD, Sigmund. Idem

13 FREUD, Sigmund. Idem

14 FREUD, Sigmund. Idem

15 SANTAELLA, Lúcia. "Riso que fere e seduz"

16 ALMEIDA, Jane de. "Achados chistosos"

17 TCHEKOV, Anton. Apud SLAVUTZKY, Abrão. "A piada e suas relações com o inconsciente ou a psicanálise é muito séria".

18 Refiro-me aqui a expressão de Nietzsche para a condição do homem, destinado a entreter os deuses.

19 MANNONNI, Octave. Apud SLAVUTZKY, Abrão. "A piada e suas relações..."

20 PIGLIA, Ricardo. Apud SLAVUTZKY, Abrão. " A piada e suas relações..."

21 BOLLAS, Christopher. "Gracejando/desconjuntando"

22 NESTROVSKY, Arthur. " Ironias da modernidade"

23 NESTROVSKY, Arthur. Idem

24 BIRMAN, Joel. "O Mal estar na atualidade"

25 NESTROVSKY, Arthur. "Ironias da Modernidade"

26 ABBAGNANO, N. " Dicionário de Filosofia"

27 ABBAGNANO, N. Idem

28 ABBAGNANO, N. "Dicionário de filosofia"

29 BATHKIN, Mikhail. "Estética da criação verbal". Apud ALMEIDA, Jane. "Achados chistosos"

30 O outro cineasta que é modelo para Allen é o sueco Ingmar Bergman. Allen realizou o filme "Interiores" inspirado neste e trabalhou também com o seu diretor de fotografia Sven Nikvyst.

31 BJORKMAN, Stig. "Woody Allen por Woody Allen"

32 BJORKMAN, Stig. "Woody Allen por Woody Allen".

BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, N. "Dicionário de filosofia". São Paulo: Editora Martins Fontes, 1998.

ALMEIDA, Jane. "Achados chistosos". São Paulo: Editora Escuta, 1997.

BAKHTIN, Mikhail. "Estética da criação verbal". Apud ALMEIDA, Jane. "Achados chistosos".

BIRMAN, Joel. "O mal estar na modernidade". Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1999.

BJORKMAN, Stig. "Woody Allen por Woody Allen". Rio de Janeiro: Editora Nórdica, 1992.

BOLLAS, Crhistopher. "Gracejando/Desconjuntando". Separata. Capítulo 8 do livro Cracking up (tradução de Vera Lúcia Blum; revisão de Luís Cláudio Figueiredo) Cópia cedida por LCF.

FREUD, Sigmund. "Luto e Melancolia"(1917) Vol. XIV - SEB. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1980

_______________"O Humor"(1927) Vol. SEB. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1980.

MANNONNI, Octave. Apud SLAVUTZKY, Abrão. "A piada e sua relação com o inconsciente..." (Cópia reproduzida
da Internet)

NESTROVSKY, Arthur. "Ironias da modernidade". São Paulo: Editora Ática, 1996.

PIGLIA, Ricardo. Apud SLAVUTZKY, Abrão. " A piada e sua relação..."

SLAVUTZKY, Abrão. "A piada e sua relação com o inconsciente ou a psicanálise é muita séria". (Cópia reproduzida da Internet)

Antonio Ricardo Rodrigues da Silva, Psicólogo Clínico; mestre em psicologia clínica pela PUC-SP; sócio do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem – CPPL; membro fundador do Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP; professor substituto do Departamento de Psicologia e Orientação Educacionais – UFPE.
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