A Subversão do Eu*

Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes

Preliminar

A clandestinidade política foi a alternativa que muitos militantes de esquerda encontraram para continuar, dentro do Brasil, combatendo o regime militar entre 1964 e 1979. Todas as organizações políticas, colocadas na ilegalidade, tiveram muitos de seus militantes presos, torturados e assassinados, muitos se exilaram, vários foram banidos. Um contingente significativo permaneceu dentro do país. Seu objetivo: combater os militares, resistir em luta contra os avanços de um governo discricionário e fascista. Denunciar as violências cometidas, chegar mais perto do coração da ditadura e feri-la de morte.

Quando o golpe militar de 1o de abril de 1964 se abateu sobre o governo constitucionalmente eleito de João Belchior Marques Goulart, as organizações políticas revolucionárias passaram clandestinamente a planejar o movimento de resistência e de combate ao governo militar. Havia dentro dos corações revolucionários a crença de que era possível resistir e, quem sabe, bloquear o avanço das forças civis e militares golpistas.

Animava os dirigentes e militantes a idéia de que, consolidando uma resistência em nível nacional, seria possível impedir a decretação de novos atos institucionais e desorganizar o crescimento da repressão armada.

Minha análise desses acontecimentos estará voltada, principalmente, para os aspectos psíquicos e afetivos que fizeram parte do repertório individual de cada um que se viu mergulhado nessa longa noite, oficialmente interrompida quinze anos depois, com a decretação da anistia, em agosto de 1979.

Caminhos do desejo

Piera Aulagnier diz que "não está no poder do eu recusar a morte, está em poder do eu recusar a vida"1.

Tratando-se de uma psicanalista, cada palavra deste enunciado supõe uma trama meticulosa e quase ilimitada. Para Aulagnier, eu é uma instância psíquica que está entre o que se é e o que se tem; entre o que somos e o que gostaríamos de ter.

Pensando na vida e na morte, a premissa é de que o desejo se dirige para o que está no horizonte do possível e não para o que está aprisionado nas malhas do inexorável. Os circuitos do desejo se desenham ao redor da vida porque esta, sim, pode ser ampliada, destruída; pode ser engrandecida ou aviltada. A morte, contudo, não pertence ao espaço compreendido entre ser e ter. A morte está aquém ou além da vida, sobrou para o eu desejar a vida ou tão-somente vivê-la... A constatação simples, e de tão simples óbvia, de que a morte é destino certo e sabido não diminui a desmesurada batalha que se trava para ampliar e melhor viver a vida.

Se o eu está entre ser e ter, poderíamos dizer que a vida sustenta estas relações, dá sentido à constituição permanente do eu, a seu desenvolvimento em espiral, possibilitando a consolidação de seus desejos mais últimos e a satisfação de seus desejos mais imediatos.

Há também a convicção para Aulagnier de que, para que o eu se constitua e se consolide, no mínimo três requisitos são indispensáveis. Primeiro, que o corpo que sustenta o eu possa encontrar uma realidade natural e externa que lhe dê condições de atender suas necessidades e o exercício de suas funções biológicas básicas. Segundo, que o eu tenha sido investido por relações de afeto nos primórdios da vida, que lhe tenham propiciado a atividade de pensar, de simbolizar, de formar seus ideais identificatórios com as figuras parentais. Em terceiro lugar, é necessário que na "cena da realidade exterior ao menos um outro eu continue a ser ponto de apoio e de suporte de investimentos. Esta é a condição para que um fragmento da realidade continue a existir para o olhar do eu, e condição para que o eu continue a existir, ainda que para o olhar de um só outro"2.

Logo, há exigências vitais combinadas com necessidades psíquicas; necessidades do corpo combinadas com exigências afetivas, que irão consolidando as bases para que o eu se constitua, se desenvolva e se consolide.

A partir dessas conquistas fundamentais, o eu poderá se assenhorar de suas escolhas. Nesse momento, fará a escolha da vida ou fará a escolha da recusa da vida.

Percursos singulares

O militante político, na minha opinião, fez a escolha de um percurso singular e próprio, sob risco e turbulência; um percurso comprometido e direcionado para a escolha da vida!

No Brasil dos anos 60, o militante é alguém que se consolidou como sujeito de seu desejo, isto é, alguém que decidiu apostar no que achou que valia a pena.

Não sabia, contudo, qual era a pena nem supôs o quanto valia sua aposta. Juntou suas energias, na alvorada de sua vida adulta, e, instigado pelos ideais externos de liberdade, de autonomia política e de independência nacional, aliados aos ideais internos de compromisso com o novo e com o pleno, se pôs ombro a ombro com os que, como ele, faziam o mesmo.

A filiação política às vezes não era suficiente, prevalecia a necessidade de jogar fora o que era velho e ser pai/mãe de uma nova proposta. Explico melhor: muitas vezes os militantes se juntaram para organizar algo diferente/algo novo, que satisfizesse seu ideário político.

Foi assim que, pela via psíquica, as necessidades do novo, do revolucionário, do radical e do risco permanente encontraram fértil acolhida no militante que apostou na vida a serviço de uma idéia, a serviço de um projeto que não fosse individual e que servisse a muitos e a seu país.

0 militante tem ainda uma componente específica no seu jeito de ser. Como se dispõe a arriscar o que tem, só o faz porque considera que o risco pode vir a seu favor. Há uma certa crença de que vai, ao final, ser vitorioso. Essa é uma crença específica e própria das organizações de qualquer natureza que têm militantes voluntários. O militante político se enlaça a duas âncoras; de um lado, a um outro que lhe serve como referência identificatória, que torna possível seus investimentos psíquicos e afetivos, e que serve como "avalista" de seu desenvolvimento como sujeito. Em outra âncora está o ideário político, a carta de princípios, a tábua de leis com as quais concorda e que, em geral, consolidam a organização à qual pede filiação ou a organização que resolve fundar. Nada mais fascinante do que se consolidar como sujeito e exercer seu desejo vinculando-se a propostas que o inscrevem como artífice da história política de seu próprio país.

Fragmentos: 1960

No início dos anos 60 o governo brasileiro apostava em mudanças construindo, finalmente, uma nova capital, no centro do país, para abrigar as casas legislativas máximas e os poderes Executivo e Judiciário. O governo Jânio Quadros/João Goulart elaborava propostas reformistas, convivia com as entidades representativas dos setores mais organizados da sociedade civil e mantinha com estas uma relação amistosa. Havia uma intimidade aparente com o poder constituído que freqüentava comícios, conversava com os dirigentes de organizações de massa e recebia, em palácio, seus representantes. Vivia-se dentro de um regime democrático, embora sustentado economicamente por setores comprometidos com interesses antagônicos aos das classes trabalhadoras. Era livre o direito de se reunir, de escrever e de opinar.

Mesmo assim, os setores mais avançados da população se organizavam ou se reorganizavam para exigir melhores mudanças e criticar os vínculos governistas com interesses alheios à nação.

O golpe militar, em 1o de abril de 1964, caiu como um raio e encontrou as organizações políticas e entidades representativas de setores sociais se reunindo em locais de endereço certo e conhecido. Foi um ataque que pegou de surpresa os brasileiros e, mais ainda, pegou de surpresa o próprio Presidente da República. Dentro do governo se tramava o golpe – e generais indicados pelo próprio Presidente Goulart tomaram a si a tarefa de derrubá-lo. A aliança com o apoio externo, hoje, é divulgada em prosa e em entrevistas públicas.

Em uma reunião realizada com John Richards, presidente da American Chamber of Commerce, em São Paulo, foi declarado que "João Goulart era pessoa extremamente perigosa e foi sugerido que o governo dos Estados Unidos deveria forçar o colapso econômico do Brasil cortando toda ajuda à administração João Goulart e, dessa forma, causar a queda do próprio João Goulart. Quando isso ocorresse, esperava-se que os militares interviessem e corrigissem as condições existentes"3.

No centro de Belo Horizonte, em janeiro de 1964, o general Carlos Luís Guedes, indicado comandante da IV Infantaria Divisionária, em reunião com representantes das classes conservadoras em uma sala do edifício Acaiaca, diz o seguinte: que os empresários deveriam tomar as ruas do Jango e, quando a opinião pública estivesse mobilizada pelos empresários contra o governo, "nós os militares como parte do povo, apesar de armados, simplesmente usaremos as armas para o que fomos criados: a defesa da segurança interna, ameaçada pela esquerda"4.

Entre os representantes das classes conservadoras havia comerciantes, banqueiros, representantes de cooperativas rurais, de setores imobiliários e financeiros, profissionais liberais, quase todos ligados ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD)5.

Causalidade demonstrada e causalidade interpretada

Debaixo de uma tempestade repentina, não há dúvida sobre suas causas: condições atmosféricas específicas a desencadearam. O que se faz sob a tempestade vai variar conforme a situação de cada um. Quem está abrigado desfrutará da tempestade de um jeito diferente de quem está exposto a ela, a céu aberto...

"A definição cultural da realidade depende da concepção dos critérios de verdade próprios a uma cultura dada; estes critérios, por sua vez, decidirão a respeito dos princípios que a atividade de pensar deve respeitar na busca das causas. Chamo de causalidade demonstrada o conjunto de definições às quais o sujeito recorre... como garantia cultural na atribuição de sentido à realidade exterior..."6

No caso de um ataque de surpresa, a resposta imediata é de susto e, em seguida, de defesa. As organizações políticas e os militantes de esquerda, atingidos frontalmente, trataram, diante do golpe militar, de se defender, embora, às vezes, em situações de ataque, já que a melhor defesa é o ataque.

Tendo sido considerada vitoriosa, a "revolução", como a chamaram os militares, se legitimou a si mesma como um poder constituinte. Sob o Ato Institucional de 9 de abril de 1964, o general Castelo Branco sobe ao poder e, em 11 de junho, entre os 378 brasileiros com seus direitos políticos cassados, havia três ex-presidentes: João Goulart, Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek. Primeiro ato institucional de uma série de 17, a ditadura militar foi violenta na caça aos militantes de esquerda, às suas organizações, às suas famílias e aos seus amigos.

A prisão, a tortura, a cassação de direitos políticos foram prática imediata. O assassinato, uma decorrência de sua prática de sangue.

Coube à militância, após a constatação da "causalidade demonstrada", passar à "causalidade interpretada", isto é, reorganizar-se para se defender e para atacar, para fazer o que considerasse possível diante da nova situação política. As respostas a essa evidência foram tão variadas quanto o número de organizações políticas que se constituíram ou que se reconstituíram para combater o regime militar. De acordo com a pesquisa do livro Brasil nunca mais houve, neste período, aproximadamente cinqüenta organizações de esquerda atingidas pelos militares referidas nos processos reunidos para o estudo do Projeto Brasil Nunca Mais, publicado pela Cúria Metropolitana de São Paulo, em 1985.7

Se eu ganhar você perde,

se eu perder você morre

Os militantes políticos interpretando a realidade tinham poucas escolhas após o início da repressão militar. Muitos não tiveram a "chance" de escolher, foram colhidos sumariamente pelas forças militares. Muitos foram barbaramente torturados, vários assassinados.

Os que tiveram tempo de se defender passaram imediatamente à clandestinidade ou saíram do país. Alguns tentaram viver na legalidade permitida. Houve os que abandonaram a militância.

A passagem à clandestinidade não foi uma decisão fácil, nem plenamente eficaz e poucas vezes totalmente vitoriosa.

O militante clandestino foi perseguido sistematicamente pelas forças policiais. Seu endereço, até então conhecido, foi visitado pelos militares; a sede de sua organização, vasculhada; os vizinhos, os familiares, ameaçados; colegas de trabalho, interrogados.

"Cair" na clandestinidade não foi uma decisão individual, foi uma decisão política, e o ato de "ser clandestino", o cumprimento desta decisão.

Ser clandestino supõe um disfarce, um investimento psíquico reiterado, supõe uma determinação férrea, supõe um pacto com o escondido, um pacto de resistência pessoal política e, muitas vezes, armada.

Ser clandestino é mudar de nome e de cara e fortalecer o coração. O clandestino continua militante sem as vantagens da legalidade do protesto e com todas as desvantagens de ser considerado o inimigo principal a ser destruído pela "legalidade militar".

A clandestinidade como defesa da própria vida (porque o militante escolheu a vida) não durou apenas um momento: durou o tempo em que durou a ditadura militar. Durou até 15 anos para muitos; durou toda uma vida para quem foi assassinado; durou a vida interrogada para os que estão desaparecidos. O que amarrou o clandestino à resistência política o colocou em uma relação assimétrica com a vida. Entre passar à clandestinidade e se tornar um clandestino há uma grande distância. Passar à clandestinidade é aceitar as causalidades e, interpretando a realidade, se defender.

Tornar-se clandestino significa assinar um papel em branco, com resgate a perder de vista. Não há nenhum avalista para esse pacto!

Que motivos levariam alguns a assinar uma proposta tão arriscada? Insensatez? Inexperiência e imaturidade? Liberalismo político e desinformação teórica? Provavelmente, quem o fez nessas exclusivas bases, depois de algum tempo, desistiu de ser militante clandestino e tomou outros rumos e direções. O clandestino que permaneceu clandestino cinco, dez ou quinze anos investiu muito mais do que possuía nessa decisão. Provavelmente, o fez porque tinha aprofundado os laços com a causa que abraçou e encontrado outros iguais, na mesma decisão. Amparado pelo ideário político e pela relação de militância, investiu sua energia nessa trincheira de resistência.

A clandestinidade não foi uma invenção do militante dos anos 60. A história da humanidade está pontilhada de resistências clandestinas.

Dentro do Ocidente, na história dos gregos, Homero conta da resistência de Ulisses e seus companheiros, que acabaram se escondendo dentro da caverna do próprio inimigo – o ciclope. Apesar de parcial e literalmente abatidos pelo gigante, encontraram um jeito astuto de combatê-lo, cegando seu único olho após uma noitada de vinho. Fugiram um a um, disfarçados entre os animais de seu rebanho, apalpados pela mão errante do enraivecido gigante.

Séculos à frente, as histórias da resistência na Segunda Guerra Mundial de tão contadas viraram romances, são poemas e canções, estão nas telas e no cinema. No Brasil, o ideal libertário dos inconfidentes de Minas Gerais é assinalado como um marco na história da insubmissão à Coroa portuguesa.

A trajetória dos clandestinos durante a ditadura de Getúlio Vargas foi magistralmente imortalizada por Jorge Amado.

A militância clandestina faz parte do mito, faz parte da história dos povos. Foi reinventada no Brasil, com o golpe de abril de 1964. 0 inusitado é que hoje os ex-clandestinos dos anos 60 e 70 ainda não têm, para com o tempo, a distância exigida para consolidar uma página do passado. Ainda a estão escrevendo, ainda a estão contando. Algumas vezes aparece o vilão, outras vezes, o enfraquecido, muitas vezes, os fragilizados. Maior número de vezes vêm sendo revelados os que conseguiram sustentar ao mesmo tempo os ideais (agora redirecionados) e por outro lado sustentar o próprio eu, que perdeu parte do que tinha e teve que recompor o que foi.

Essa reinstalação psíquica reorientada só se constitui como possível porque a distância entre ser e ter permite muitas composições.

Para não sucumbir psiquicamente, o clandestino mobilizou seus ideais identificatórios e o repertório de investimentos afetivos que sabiamente manteve em reserva durante os tempos de dor. Diz Freud que há reservas de prazer que são como as reservas ecológicas que os países mantém para garantir o equilíbrio da natureza. Essa reserva psíquica vai aparecer nos sonhos, nas fantasias, nos "planos e viagens" que o militante clandestino ou em outras circunstâncias recessivas – na prisão, no exílio – faz infinita e reinventadamente, quando está no fundo do poço. É necessário que um mínimo do eu tenha sido preservado – lembrando que, neste caso, é necessário que o corpo que o eu habita tenha tido condições mínimas de satisfação. Piera Aulagnier vai dizer que num campo de concentração, por exemplo, num estado de miséria, numa situação de dor e de tortura, este mínimo não está preservado. Para o clandestino, o mínimo foi preservado – ele pôde, mesmo que limitadamente, se mexer, ir e vir, comer, dormir... O clandestino pôde transgredir em pensamento porque suas fronteiras foram muitas vezes virtuais.

Essa singularidade do militante clandestino vai aparecer nos gestos de infinita e irrepetível ternura que ocorrem na vida de militância. Desses gestos, os mais sabidos são a homenagem que os clandestinos fazem a seus heróis quando escolhem seus "nomes frios".

Esses nomes continuam como homenagem quando os clandestinos os dão a seus filhos, e estes, por sua vez, aos seus próprios filhos.

Em nome do pai, ou através do nome da mãe, a linhagem e a filiação militante vai se desvelando através das diferentes gerações.

Quando, porém, o clandestino volta à legalidade, há um detalhe que de simbólico se torna um enclave. O movimento de anistia celebrou publicamente a abertura das prisões e o retorno do exílio. As fotos, os filmes e os depoimentos foram ao vivo, e as comemorações da anistia instalaram de pronto, no cenário político, o anistiado.

O clandestino entrou em silêncio na clandestinidade e saiu dela pela mesma via. Poucas vezes houve celebrações públicas para os ex-clandestinos.

Por isso, talvez o ex-clandestino tenha ficado com o grito preso na garganta e a lágrima aprisionada no canto dos olhos. Fez com a discrição clandestina seu retorno à vida pública. Voltou à casa paterna, telefonou 15 anos depois para o amigo, apareceu no trabalho do antigo colega, com o nome escrito na lapela, temendo não ser reconhecido. Chegou de volta à vida pública, desconfiado, muitas vezes cheio de defesas. Sua trajetória clandestina o tirou da cena pública, dos públicos atos. Tornou-se e aprendeu a ser um militante discreto, uma mulher discreta, um homem discreto.

Fez de longos silêncios seus primeiros contatos públicos. Muitas vezes, ouviu contar por outros episódios de que participou, sem fazer reparos ao relato. O clandestino aprendeu a "engolir sapo" e, de tanto o fazer, foi ficando acostumado a se importar apenas com o essencial. Há uma história que é contada ao turista que visita a cidade onde Shakespeare nasceu de que a expressão "engolir sapo" é shakespeariana e oriunda de uma prática médica da época, comum na Inglaterra. Bem, sem querer dignificar a expressão, ela é cabível para os que aprenderam a viver como despossuídos dentro de seu próprio país e como andarilhos em sua própria cidade natal.

O clandestino sabia que qualquer vacilação era mortífera. Em geral, não brincou com a sorte.

Jogou sua juventude, seu corpo, sua cabeça e sobretudo seu coração nessa página da história.

Há quem diga: o militante tornou-se militante porque gostava de sofrer, gostava de ser vítima.

É pouco provável que a vítima se escolha para o holocausto. As vestais não escolheram a beleza e a virgindade para serem atiradas aos vulcões e os pharmacós gregos não se agregaram voluntariamente para serem sacrificados durante as calamidades e os desastres naturais. Há caminhos menos cruéis para se tentar um lugar na história e jeitos mais suaves de sentir dor.

O retorno da jornada clandestina e militante trouxe de volta homens e mulheres com o coração cheio de segredos e a alma repleta de saudades. O militante assim ficou porque não podia dizer, nem para o amigo e companheiro mais próximo, de sua própria história anterior. O clandestino é clandestino dentro da vida clandestina. Somente mais um ou no máximo dois sabiam sua identidade verdadeira, seu nome e o nome de sua família, para contactá-la em casos extremos. Até mesmo os filhos nascidos durante a clandestinidade não sabiam o verdadeiro nome dos pais ou de suas famílias de origem.

Afirmei, no início, que o militante que decidiu ser militante fez a escolha da vida. Poderia ter desistido de ser militante – mas se ficou aderido à sua escolha é porque, embora não soubesse o preço, bancou sua escolha porque tinha reservas psíquicas suficientes para ser seu próprio avalista. Preencheu o virtual espaço entre o ser e o ter reinventadamente, quando foi constrangido à clandestinidade.

Com o passar do tempo, continuou o mesmo? Perdeu sua identidade? Se assim o fosse, teria perdido a razão. Nem continuou o mesmo, que seria a paralisia mortífera, nem tornou-se um outro, que seria a desrazão absoluta.

Quando saiu da clandestinidade, fragmentado, como um caleidoscópio girando, fez novos desenhos de seus desejos, reagrupou o pontilhado de que se constitui seu eu. Na feliz concepção de Monique Schneider, a constituição psíquica do eu não é um bloco monolítico; é feita de um pontilhado que se organiza, se desorganiza, se reagrupa ampliando seu território resgatando reservas, estendendo-se a novos ideais.

uma subversão psíquica na vigência desse esforço, para dar conta dos desafios. Como parte dessa turbulência, algo de novo se acrescenta e alguma coisa fica perdida. Nem o mesmo nem um outro. O militante, o ex-militante incorpora a seu repertório psíquico um acervo de experiências que leva algum tempo para se tornar uma experiência interior. Esse "algum tempo" é, às vezes, o resto da vida. Às vezes não é tanto tempo, pois ainda há tempo para apostar de novo em renovados projetos, na tentativa de resgatar antigos desejos.

Notas

1. Piera Aulagnier. Os destinos do prazer. Rio de Janeiro, Imago, 1985, p. 138.

2. Idem, p. 140.

3. René Armand Dreifuss. 1964: A conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis, Vozes, 1987.

4. Idem, p. 414.

5. Idem, p. 363. 0 lPES e o lBAD foram criados a partir das administrações de Juscelino Kubitschek e de Jânio Quadros. Reuniam seus fundadores, em 1961, "suas relações econômicas, multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e sua ambição de readequar e reformular o Estado. 0 lBAD agia como unidade tática e o IPES operava como centro estratégico. A elite orgânica empenhava-se na fusão de militantes grupos antigovernistas dispersos. Esta elite estava ligada organicamente por laços sócio-culturais, padrão de vida, aspirações profissionais, interesses decorrentes de sua condição de acionista e atitudes econômico-políticas a uma burguesia internacional, que se preocupava com o crescimento e não com a independência nacional". cf. p. 72.

6. Piera Aulagnier. Os destinos do prazer. Op. cit., p. 50.

7. Arquidiocese de São Paulo. Brasil nunca mais, um relato para a história. Petrópolis, Vozes, 1985, p. 102. 0 Projeto Brasil Nunca Mais reuniu quase a totalidade dos processos políticos que transitaram pela justiça militar brasileira entre abril de 1964 e março de 1979. Consta de mais de um milhão de páginas referentes a 707 processos completos. A equipe que trabalhou no projeto durante cinco anos produziu ainda um relatório de cinco mil páginas distribuído para universidades e arquivos públicos no Brasil e no exterior. 0 livro é uma síntese desse trabalho – sob a responsabilidade da Arquidiocese de São Paulo.

* Publicado em "Tiradentes, um presídio da ditadura "- memórias de presos políticos - Scipione Cultural, em 1997 e publicado na Pulsional - Revista de Psicanálise de nº 112, em agosto de 1998.

Maria Auxiliadora Arantes
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