NO LABIRINTO DA PSICANÁLISE
Augusta
G. Heller *
César Augusto Antunes**
"... a fonte principal da nossa ignorância é o fato que nosso conhecimento só pode ser finito, entretanto que nossa ignorância é necessariamente infinita. " Karl Popper
Nos apresentamos como aprendizes desta ciência, portadores que somos de um saber limitado e limitante, nos defrontamos com os inumeráveis caminhos e corredores que constituem este labirinto. Nas circunvoluções da mente procuramos encontrar um conhecimento que sirva como base estrutural para nossa formação como psicanalistas. Para tanto, acreditamos ser necessário a defesa de nossa ciência, o estabelecimento de conceitos limites que sirvam de base para o debate científico e uma revisão dos critérios de transmissão do saber psicanalítico.
É disto que trata este breve trabalho, uma pequena introdução a um debate que se faz necessário, a cada momento com mais intensidade, para podermos resgatar nossa ciência das resistências sociais que ameaçam reduzir, esta grande descoberta, a um amontoado de clichês, usados em conversas de fim de tarde ao redor da mesa de um bar.
A PSICANÁLISE
A psicanálise surgiu no fim do século passado como uma resposta da ciência aos anseios da sociedade, invadida por uma nova patologia, resultante da revolução industrial. No limiar do século XVIII, grandes massas de indivíduos migraram do campo para os conglomerados urbanos, atraídos pela crescente necessidade de mão de obra nas indústrias. Afastados de uma vida pacata no campo, onde os espaços abertos e a liberdade de constituir seu próprio ritmo de trabalho foram substituídos por espaço fechados, horas de atividade restritas e repetitivas, o homem se viu frente a uma afecção que não encontrava referências nos manuais médicos da época. No final do século XIX vários cientistas e pesquisadores se dedicaram ao estudo destas doenças.
Freud foi um destes homens preocupados em encontrar respostas para este interrogante. Suas pesquisas partiram inicialmente do estudo do funcionamento cerebral através de seus trabalhos de neurofisiologia, voltando sua atenção, mais tarde, para patologias funcionais com os estudos sobre Afasias. Através da observação de pacientes histéricas e do funcionamento mental de pessoas submetidas a hipnose, formulou uma série de hipóteses sobre o psiquismo humano, chegando, finalmente, a constituir um conjunto de conceitos suficientes para a construção de uma nova ciência, a Psicanálise.
Como descreve Freud em seu trabalho "As Resistências a Psicanálise" ao comentar sobre as resistências iniciais as suas descobertas: "A direção assumida por essa investigação não encontrou, porém, a simpatia da geração contemporânea de médicos. Eles haviam sido ensinados a respeitar apenas fatores anatômicos, físicos e químicos. Não estavam preparados para levar fatores psíquicos em consideração e, portanto, enfrentaram-nos com indiferença e antipatia. Obviamente tinham dúvidas de que eventos psíquicos permitissem algum tratamento científico exato, qualquer que fosse esse tratamento... encaravam abstrações como aquelas com que a psicologia está obrigada a trabalhar, como nebulosas, fantásticas e místicas, ao passo que simplesmente se recusavam a acreditar em fenômenos notáveis que poderiam ter sido o ponto de partida de pesquisas."
Apesar de haver uma certa atualização nestes comentários, a psicanálise, gradativamente, foi sendo assimilada pela ciência e pelas artes e sua linguagem passou a ser parte constitutiva do discurso intelectual do século XX.
Observamos, neste final de milênio, um retorno das resistências ao pensar psicanalítico. Estas objeções são, em parte, fortalecidas pelas novas descobertas no terreno da neurofisiologia e neuroquímica. Entretanto, o avanço das ciências biológicas não se mostram suficientes para explicar todas as variantes daquilo que se pode nomear como "sofrimento humano".
A Psicanálise atribuiu a pulsão sexual um lugar importante na vida mental do ser humano, explicando os sintomas das neuroses como satisfações substitutivas deformadas de forças pulsionais, das quais a satisfação direta foi frustrada por resistências internas. Da mesma maneira, as contribuições mais importantes às realizações culturais do indivíduo e a sociedade eram também provenientes dos mesmos componentes sexuais.
Até hoje ocorre uma confusão no que a Psicanálise quer nomear como sexualidade, que não diz respeito somente a união dos sexos ou na sensação de prazer dos órgãos genitais, mas está relacionado, de forma mais ampla, com todos os aspectos que levam ao homem a busca do prazer e a evitação do desprazer, das zonas erógenas do desenvolvimento psicossexual ao corpo como um todo, como fonte de prazer.
Para Freud, a civilização repousaria no controle das forças naturais e na restrição dos próprios instintos, elevando um ideal de moralidade que muitas vezes lhe exige aquilo que não pode ou não deseja cumprir, passando a gastar sua economia psíquica na busca de um desejado equilíbrio mental. A demonstração de interesses e atividades sexuais na infância, a percepção de desejos incestuosos e homicidas nas crianças não podem ser facilmente aceitos, assim, a teoria psicanalítica teria provocado uma "ferida narcísica" no indivíduo porque para o adulto "sua pré-história parece tão ingloriosa que recusam permitir-se que os façam lembrar dela: ficaram furiosos quando a psicanálise tentou levantar o véu da amnésia de seus anos de infância. Havia apenas uma saída: o que a psicanálise asseverava tinha de ser falso e aquilo com pretensões de nova ciência havia que ser um tecido de fantasias e deformações."
Além da oposição externa aos fenômenos do inconsciente, surgiram resistências dentro do próprio movimento psicanalítico, oriundas mais de fontes emocionais do que intelectuais, novas hipóteses sobre o funcionamento psíquico foram se afastando do conceito pulsional e introduzindo o conceito de relações de objeto. Desta maneira, a descoberta inicial de uma sexualidade infantil condicionando e dirigindo o destino do homem foram sendo abandonadas a ponto de um autor como André Green se perguntar: onde andaria a teoria da sexualidade na psicanálise atual?
Ao longo destes cem anos que nos separam da descoberta da "via régia do Inconsciente" - a interpretação dos sonhos, acreditamos que as explicações freudianas para resistência à aceitação da Psicanálise continuam com o mesmo vigor. Por isto, é necessário que os psicanalistas atuais não se deixem seduzir pelo canto das sereias de terapias condutivistas, baseadas nas leis mercantilistas do custo/benefício.
Autores como Bollas, Green e Ogden tem se destacado na defesa dos conceitos básicos do pensamento psicanalítico. Green propõe uma releitura da Metapsicologia Freudiana do ponto de vista dos limites. Em uma conferência em São Paulo refere que certos conceitos psicanalíticos são conceitos-limites, idéias que estão no limite do conceituável, ou seja, idéias de onde devemos partir para construir um pensar psicanalítico. Este é também nosso ponto de vista, por isto, defendemos, em um outro trabalho, a necessidade do estabelecimento destes conceitos-limites, conceitos que sirvam como infra-estrutura teórica a sustentar a psicanálise como ciência. Chamamo-os de "Shibbolet", a partir de palavra utilizada por Freud em alguns de seus trabalhos e correspondência. Defendemos a necessidade de mante-las como critério para separar o pensar analítico de formas outras do pensar científico. (1)
Acreditamos ser o inconsciente, a repressão, a sexualidade, o complexo de Édipo e o significado dos sonhos, nosso "Shibbolet", um conjunto de conceitos limites que sirva como "matriz disciplinar" (Kuhn) até que possamos estabelecer estruturas paradigmáticas desta nova ciência. Evidentemente, outros conceitos poderão ser acrescentados a estes nomeados por Freud; entretanto, há a necessidade de defini-los para podermos distinguir o que não é psicanálise e assim evitar a ideologização conceitual.
NO LABIRINTO
Como figuras mitológicas, perdidos no remoto labirinto cretense, procuramos um fio que nos leve a uma possível saída desses corredores simbólicos da formação analítica, onde podemos ser devorados por um Minotauro que nos diz "decifra-me ou te devoro".
No lugar de candidatos encontramo-nos atravessados por discursos ideológicos, propensos a tomar partido, por este ou aquele autor, antes mesmo de conseguirmos saber o que estamos defendendo.
Como evitar a sedução do discurso doutrinário, de sermos surpreendidos pela agradável sensação de um saber imaginário onde poderíamos ser um sujeito de um suposto saber. ?
Diante do discurso exaustivamente repetido de uma psicanálise em crise, somos possuídos pela sensação de termos chegado no fim da festa. Os lugares já foram ocupados e só nos resta pratos requentados de uma ciência em extinção.
Se a Psicanálise é algo em processo terminal, então pensamos: "Somos candidatos a nada? "
Como "candidatos a nada" estamos sujeitos ao desamparo e frustração, mas sabemos que, ao mesmo tempo, esta é a raiz do labor psíquico, pois é na impossibilidade do encontro do ser com o objeto que se estabelece o desejo. O que podemos capturar deste objeto são seus atributos, pois o conceito de nada e tudo surge no desencontro do ser com a coisa em si - "das ding". Assim, não nos acreditamos como candidatos à Psicanálise, somos, em verdade, candidatos a um desejo, o desejo de ser analista.
Desta maneira, cabe a nós "candidatos" um novo ato psíquico, persistirmos na defesa deste afeto e, talvez, uma das formas de assim agir pode ser a construção de um trabalho científico. Escrevemos, então, para exorcizar este fantasma, este dibuk que nos atormenta nestes corredores solitários dos labirintos da ciência.
A preocupação de um certo desencanto com o pensar psicanalítico tem atingido todos os níveis hierárquicos dentro das instituições ligadas à IPA. Otto Kernberg, em um trabalho de 1996 já abordava a preocupação em não inibir a criatividade do candidato e muito menos destruí-la.
Se, como já dissemos, o termo candidato a uma associação psicanalítica não define nosso "status" profissional, o termo analista em formação poderia ser mais esclarecedor?
A medida que de alguma forma a ignorância é ilimitada como nos diz Popper, o conceito de psicanalista em formação não é adequado, pois toda formação analítica é interminável. Estamos condenados, independente do nível hierárquico - membro associado, analista didata - a sermos para sempre Psicanalistas em formação.
Somos candidatos a analista diante de cada pessoa que nos procura soterrados em angústias inomináveis, nascidas em lugares inacessíveis de sua alma. Se deste encontro irá emergir um analisando e um analista, é algo que só o andamento do processo nos poderá dizer. Apesar do desejo de exercer a função analítica, esta só poderá acontecer com a construção de um tipo específico de funcionamento mental. Trachtenberg chama a este fenômeno de "estados psicanalíticos da mente". (10)
Desta maneira, acreditamos que as inumeráveis e contínuas contribuições à psicanálise podem gerar divergências conceituais que levam aqueles que entram em contato pela primeira vez com esta ciência a sentirem o discurso psicanalítico como hermético e carente de sentido. Principalmente se, como assinala Sandler, tomarmos a palavra pelo seu valor facial, ou seja, tomarmos a palavra pela palavra, não mais como um condutor de afetos, mas como expressão concreta do que o outro tenta transmitir. Entretanto é na sua dinâmica, na existência de um inconsciente seguidamente percebido mas nunca capturável conceitualmente que reside a riqueza da psicanálise. A lógica do inconsciente possui critérios próprios e só tem seu sentido no limite do setting.
Uma outra questão que se nos apresenta, estudantes dos textos freudianos, é se o paciente do início do século continua o mesmo. O sujeito deste novo século que se aproxima recebe estímulos de inumeráveis fontes e exige satisfação imediata. Como dizia a propaganda de uma indústria "sua satisfação garantida ou seu dinheiro de volta" ou como a propaganda de um iate numa revista americana dizia: "The difference between a man and a boy is the price of your toys". Desta maneira, pensamos que o paciente que procura os nossos consultórios hoje em dia, apresenta distúrbios psíquicos compatíveis com a sociedade competitiva e de baixa tolerância a frustração. As perturbações narcísicas tomaram o lugar dos quadros neuróticos dos tempos de Freud. A repressão cedeu lugar a cisão, desmentida e desestimação. Assim sendo, nosso trabalho é mais de restabelecer os processos repressivos, os limites do ser, do que removê-la.
Freud, nos seus últimos trabalhos, parecia prever este desenlace, foi substituindo a função de interpretação, que visava dissolver a repressão, pela ação de construção em análise, que visa restabelecer barreiras protetoras contra as lacunas de memória que eram ocupadas por "acting".
Nos vemos em constante combate com a era da medicação, que vem travando uma luta com a análise clássica, das quais somos aprendizes. Numa entrevista Peter Gay, falando em defesa da Psicanálise comenta que: "Mesmo a competição química do Prozac pode se transformar em aliada da psicanálise. Conheço dois casais de lésbicas com filhos. Parece-me que em ambos os casos uma representa a mãe e a outra o pai, mas é claro que isso tudo é bem mais complicado do que Freud poderia sonhar." (5) Assinala assim, que, mesmo com o avanço no conhecimento da bioquímica e com mudanças marcantes nas estruturas sociais, os seres humanos são atravessados por estas marcas simbólicas que constitui aquilo que chamamos de conceitos básicos de Psicanálise. No caso acima, mesmo um casal de homossexuais não pode fugir da trama de Édipo. A isto, nenhuma medicação pode dar conta.
Sabendo que a força da pulsão - "drang" é algo que não cessa em sua intenção de realização, a demanda frente ao desejo conduzirá o ser humano a uma eterna insatisfação, poderá ser mitigada pelas drogas, mas nunca eliminada. Resta, então, a Psicanálise. Única alternativa em busca das fontes deste desejo e possibilidade de domesticar a natureza insaciável do querer humano.
E este é o fio de Ariadne, fio da esperança de podermos fugir do labirinto que nossa paixão nos conduziu.
BIBLIOGRAFIA
1 - ANTUNES, C., GOLDSTEIN, J. & HELLER, A . O Shibbolet da psicanálise. In: Revista Brasileira de Psicanálise. Vol. 32, no. 4, 1998.
2 - ANTUNES, C., BEHS, B., GOLDFELD,P. & HELLER, A . Formação analítica em uma nova sociedade: uma ilusão de futuro. Trabalho apresentado no Encontro de Institutos de Psicanálise. Porto Alegre, 1998.
3 - BRANCHER, Luiz Gonzaga. Algumas reflexões sobre a clínica e a psicanálise atual. In: Revista do Instituto W. Bion. Ano 1- no. 1, abril de 1997.
4 - FREUD, S. As Resistências à Psicanálise. (1925) In: Obras completas. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda , 1976.
5 - GAY, Peter. Longa vida, Freud. In: Revista Veja, edição 1598. Ano 32 - no. 20, 19 de maio de 1999.
6 - GREEN, André Conferências Brasileiras de André Green Rio de Janeiro: Imago Ed., 1990.
7 - GRINBERG, Leon. Psicoanálisis - Aspectos teóricos y clínicos. Buenos Aires: Paidós, 1981.
8 - KERNBERG, Otto. Trinta métodos para destruir a criatividade dos candidatos a psicanálise. In: Livro anual de Psicanálise vo. XII. 1996. São Paulo: Editora Escuta.
9 - SANDLER, Paulo César. Imagens, Palavras e Psicanálise. In: Revista do CEP de PA. Porto Alegre: Edição Especial - março de 1999.
10 - TRACHTENBERG, Renato Os estados psicanalíticos da mente. A ser publicado em Psicanálise - Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. 1999.
César
Antunes** Médico, do Instituto de Psicanálise da SBP de PA
Rua Tauphick Saadi 320/ 301
fone: (51) 3464083 - E-mail: rasec@conex.com.br
Augusta G.
Heller * Psicóloga, do Instituto de Psicanálise da SBP de PA
Avenida Taquara 572/401
fone: (51) 3301559 E-mail: - anipe@orion.ufrgs.br
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