Conversa entre analistas: dá para (se) entender ?

Maria Nilza Campos
Regina Orth de Aragão
Sílvia Regina Tacchinardi

"Quem acha, vive se perdendo..."
Noel Rosa

O ponto de partida para as conversas que deram origem a este texto, e afinal acabaram por tornarem-se o próprio objeto do texto, foi a convocação de René Major para o encontro dos Estados Gerais da Psicanálise, no ano 2000. A proposta de fazer encontrar as diferenças, através de um amplo movimento de circulação de idéias, foi o que dela nos pareceu o mais instigante.

No entanto, a questão que nos interroga é: será possível que, nessas conversas, analistas de origens, culturas e escolas tão diferentes possam se entender? Não haveria uma idealização utópica nessa proposta de fazer encontrar uma tal multiplicidade de línguas?

Dito de outro modo, haverá, no fundo, uma só psicanálise? Estaremos todos afinal falando da mesma coisa, apesar de nossas inúmeras diferenças? É bem verdade que já se disse muitas vezes que o campo da Psicanálise aberto por Freud permite que cada qual se aproprie de seu texto segundo sua própria singularidade. Como diz René Major na sua convocação para os Estados Gerais: "cada instituição tem uma relação particular com a herança de Freud, ou com a herança de um de seus sucessores, e uma relação de poder com esse saber do qual ela se atribui a guarda".

O que nos impulsionou a trabalhar juntas foi justamente essa interrogação sobre os "saberes", os conceitos da psicanálise, os movimentos aos quais eles foram submetidos na história do movimento psicanalítico. Chamamos nosso tema de estudos de "a dança dos conceitos". Interessava-nos entender mais dessa dança – o que faz com que certos conceitos prevaleçam numa determinada teoria ou escola, ou que se evidenciem numa determinada época? Como e por que alguns conceitos ganham relevância, enquanto outros, ao contrário, parecem esquecidos, "recalcados", para eventualmente ressurgirem tempos depois, como resgatados num retorno do recalcado.

Essa interrogação levou-nos ao estudo dos paradigmas em psicanálise e à forma como os autores tratam com diferentes perspectivas um mesmo conceito, bem como a forma como cada escola se apropria de maneira distinta de alguns deles. Tomando como exemplo as teorias kleiniana e lacaniana, vemos como se referem de modo peculiar a elementos teóricos tais como o infantil e o inconsciente, sendo até mesmo intraduzíveis certas formulações como: posição, nome-do-pai e significante. Assim, cada autor toma aquilo que já está elaborado na teoria, de forma tal que possa ratificar suas próprias reflexões metapsicológicas.

Nesse sentido, Renato Mezan refere-se à hipótese de que são as matrizes clínicas que direcionam a importância dada por alguns autores a certos conceitos. Tais variações se devem ao fato de que "as situações clínicas das quais partem suas reflexões não são as mesmas" (1). Lacan se apropria da psicanálise pela via da clínica das psicoses, enquanto Melanie Klein se utiliza do estudo de casos clínicos que se referiam a casos graves de neurose obsessiva .

No processo em que procuramos seguir as trilhas de alguns desses conceitos, como o trauma, a fobia, o desamparo, dentre outros, deparamo-nos com uma situação inesperada: os próprios conceitos passaram a nos "dar um baile". Assim, sentíamo-nos às vezes tomadas por uma dispersão de idéias, uma impressão de caos, de falta de direcionamento das discussões, deslizando de um autor para o outro, como que à procura de um referencial. Como nos organizar a partir dessa multiplicidade de idéias, de percepções, passando pelas várias leituras que nos faziam encontrar os idiomas próprios de cada autor?

Apesar disso, nossos encontros prosseguiram, oscilando entre essas impressões de desordem, de falta de perspectiva, momentos propriamente depressivos, e outros em que predominavam a vivacidade, momentos prazerosos e bem-humorados. O que fez, então, com que tivéssemos sustentado a continuidade desse trabalho, mantendo a disposição da troca e da circulação de idéias entre nós? Em parte, sem dúvida, a possibilidade de manter viva a idéia da pesquisa, da busca, assim como a de suportar o não-terminado. "Assim como o lapso, essa dinâmica é em sua própria essência instável, inesperada, fugidia. Não há controle possível, nem conquistas permanentes. Uma vez alcançada, ela se perde, deixando-nos a cada vez com um estranho sentimento de vazio e abandono, até a próxima descoberta." (2)

Enfim, essa tornou-se a nossa questão, podendo ser traduzida assim: em que condições particulares esse funcionamento de um grupo de analistas, comunicando-se sobre conceitos, é possível? Como foi se construindo, se tecendo essa linguagem comum, que no entanto englobava as contribuições de cada uma? Será que aqui também podemos fazer apelo à metáfora do tecer, evocada por René Major como aquela "operação que consiste, ao mesmo tempo, em deixar desfiarem-se os pensamentos e em seguir o fio que os liga entre si, pela necessidade de seu encadeamento" (3) ? Tal metáfora, referida à cena analítica, aplicar-se-ia a um trabalho coletivo? No modelo de trabalho a que nos propusemos, fomos produzindo associações de idéias em torno de uma temática, processo esse que se sustentou por um propósito de liberdade de fala, deixando vir as inspirações e os efeitos produzidos em cada uma de nós pelas leituras percorridas.

Remetemo-nos aqui a um editorial de Manoel Berlinck(4) onde, após citar uma passagem do capítulo II da Interpretação dos Sonhos, em que Freud compara a reflexão, marcada pela crítica, com a auto-observação, em que a faculdade crítica é suprimida, abrindo caminho para "inumeráveis idéias", num estado análogo ao do adormecimento, da hipnose, e da análise, pergunta-se se a melhor forma de ser psicanalista "não seria, pois, se deixar enlouquecer durante a sessão de análise, e fora dela, não se esquecer completamente disso?"

Em que condições então pode-se "enlouquecer"- ou não esquecer desse enlouquecimento – numa situação de trabalho de reflexão sobre conceitos analíticos? Uma das respostas a essa pergunta é a de manter, mesmo nessa situação, fidelidade ao método psicanalítico, no seu propósito de deixar fluirem as idéias, numa suspensão temporária da reflexão crítica, abandonando-se à trama das associações. Lembrando o que diz Regina Schnaidermman , "Ensinar psicanálise é um ato psicanalítico e é um projeto de desalienação. Desalienação desta vez não do sujeito analisando, mas desalienação do discurso que se tem sobre o saber psicanalítico." (5)

Prosseguimos em nossas discussões através dos textos de vários autores, tentando tecer pontos de ligação entre eles, um pouco como nômades pelos territórios psicanalíticos. Remetemo-nos aqui a Radmila Zygouris, (6) quando trata da pulsão de vida e do fluxo. Diz ela: "a pulsão de vida é uma pulsão nômade. A libido é nômade, isto é, móvel, o que não exclui os trajetos e as fidelidades; ela traça percursos, investe territórios". Comparando-a com as pulsões parciais, a de vida "em contrapartida, é nômade, uma viagem só de ida. O nomadismo, no entanto, não é errância sem objetivo. Ele necessita de um território e de um horizonte significado pela presença real ou alucinada de outrem". A pulsão de vida "é solicitada, estimulada, reanimada pelo outro, pelos outros, pelos barulhos do mundo. Barulho e furor da vida, do exterior vivo. Isto vai desde o grande lamento dos povos até as músicas do mundo. A pulsão de vida tanto se alimenta, se apóia na presença de um outro, um próximo, um amado, um amigo, como também se alimenta dos sinais de vida vindos de longe quando portadores de sentido. Sem essa tensão entre si e os outros, entre si e o mundo, a libido se esvai. Um pouco abruptamente diria que, em última instância, a única coisa que "cura", que reanima o ser humano mal tratado por si mesmo ou por aqueles que o cercam, é a presença".

E quais foram essas presenças que nos reanimaram? Além das nossas próprias, alimentando umas às outras, muito nos veio de outros distantes, trazendo "os barulhos do mundo", seja sob a forma dos textos, dos idiomas, alimentando nossa exploração, desafiando nossa capacidade ou incapacidade de compreensão, fazendo associar esses vários escritos entre si e entre nós.

As presenças, parece-nos que para serem produtoras de fluxo, próprio da pulsão de vida, é preciso que não sejam opressivas, avassaladoras. Assim, pensamos que uma das características de nosso grupo é a ausência de referência a uma só teoria, a um só mestre. Trata-se de um modelo de transmissão que não se apóia fundamentalmente sobre a mobilização de dependências, de invejas, de identificações paralisantes.

Christopher Bollas, no seminário recente em São Paulo, tratou dos efeitos nefastos da inveja para o bloqueio da criatividade, tanto nas relações clínicas, como nas relações entre analistas, e de analistas com seus mestres. Segundo ele, o self criativo é projetado no outro – o mestre – que passa a ser invejado pelo sujeito, como o único capaz de potência criativa. Há várias formas de manifestação dessa submissão invejosa; uma das mais "caricaturais" consiste em reduzir o trabalho mental àquele de decifrar o texto do mestre, e daí em diante, repetir sua fala como portadora da verdade única.

Seguindo a trilha das indagações a respeito do modo de funcionamento do grupo, dessa maneira livre de estar com as idéias, sugerindo uma brincadeira, percebemos que tomávamos o texto como objeto de um jogo, de um brincar. Poder apropriar-se dele, torná-lo "nosso", incorporá-lo e metabolizá-lo, num processo de criação e de transformação. Transformação não mais do texto, mas de nós mesmas pelos efeitos dele. Para Luiz Cláudio Figueiredo (7) "a leitura... pode gerar efeitos que se entrelaçam às memórias da clínica. Trata-se de uma leitura que, estreitamente entretecida no texto, não adere a ele, mas por ele circula, gerando ecos e ressonâncias. Ora, a geração de ecos e ressonâncias, como não podia deixar de ser, pressupõe no texto vazios e desvãos (o absolutamente sólido não ressoa). Isto significa que a leitura próxima e desconstrutiva tem a finalidade de abrir buracos, de esgarçar, de descompactar, de arejar o texto, criando nele os vazios por onde se infiltram os novos materiais que, provenientes do leitor, o texto pode abrigar, repelir e transformar na exata medida em que é, ele mesmo, transformado."

Assim como "a criança do carretel" que se faz, a partir do seu jogo, sujeito ativo diante da experiência de perda e solidão. Com seu brincar ela pode apropriar-se dessa experiência, transformando-a, e desse modo transformando-se a si mesma. Essa mudança de posição, da passividade para a atividade, inaugura para ela uma nova forma de estar no mundo.

O próprio Freud, tido como um homem sério e sisudo, introduz em seu texto "Escritores criativos e devaneio"
( 1907-1908), o valor do brincar infantil para o adulto, salientando como é esperado dele que não continue a brincar ou a fantasiar, tendo que renunciar ao prazer decorrente dessa atividade. "A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real... Quando a criança cresce e pára de brincar, após esforçar-se por algumas décadas para encarar as realidades da vida com a devida seriedade, pode colocar-se certo dia numa situação mental em que mais uma vez desaparece essa oposição entre o brincar e a realidade. Como adulto, pode refletir sobre a intensa seriedade com que realizava seus jogos na infância; equiparando suas ocupações do presente, aparentemente tão sérias, aos seus jogos de criança, pode livrar-se da pesada carga imposta pela vida e conquistar o intenso prazer proporcionado pelo humor." (8)

É algo dessa situação mental em que mais uma vez desaparece a oposição entre o brincar e a realidade que se busca potencializar na prática clínica, como também nas práticas de ensino e transmissão. A moderação da tirania de um superego crítico e severo seria uma condição para fazer desaparecer essa oposição, como se revela, por exemplo, na capacidade do sujeito de servir-se do humor, como forma de fazer face à realidade, e sua pesada carga de frustração e angústia. Nesse nosso caminhar errante pelos textos psicanalíticos, o humor foi um companheiro de viagem que muitas vezes nos ajudou a suportar o desamparo inerente ao exercício dessa liberdade. Em texto de 1927 (9) , Freud realça a qualidade de rebeldia do humor, em oposição à resignação. "Significa não apenas o triunfo do ego, mas também o do princípio do prazer, que pode afirmar-se contra a crueldade das circunstâncias reais." A condição para que isso se dê é a de uma certa complacência do superego, condescendendo em "capacitar o ego a obter uma pequena produção de prazer". Ou ainda: "Se é realmente o superego que, no humor, fala ...bondosas palavras de conforto ao ego intimidado, isso nos ensinará que ainda temos muito a aprender sobre a natureza do superego. Ademais, nem todas as pessoas são capazes da atitude humorística. Trata-se de um dom raro e precioso, e muitas sequer dispõem da capacidade de fruir o prazer humorístico que lhes é apresentado. E finalmente, se o superego tenta, através do humor, consolar o ego e protegê-lo do sofrimento, isso não contradiz sua origem no agente paterno."

Se então, o humor é incompatível com um superego tirânico, quais as ressonâncias dessa constatação para as diversas modalidades de transmissão? Naquelas referenciadas a um só mestre, temos a submissão a um único discurso, numa eterna repetição do mesmo, expressa por um engessamento da palavra e por uma patética ausência de humor. Em contrapartida, nas formas de transmissão em que há referências plurais, encontramos um superego capaz de apaziguar o ego, mesmo que temporariamente, com suas qualidades amorosas e moderadoras, tolerantes e benevolentes, que poderíamos qualificar, como faz Camila P. Sampaio, de "superego brincalhão". (10) Nessas formas de transmissão há espaço para o brincar, o criar e o humor, o funcionamento se pautando pela circulação da palavra e pela possibilidade de expressão das diferenças.

Nessa modalidade de funcionamento, é o fato mesmo de não estarmos submetidos a uma só teoria que permite a diluição da rivalidade, já que não há um espólio único a ser dividido e que se compartilham heranças múltiplas? Seriam essas algumas das condições propícias para que possam acontecer as trocas generosas num grupo de analistas?

Detivemo-nos a pensar no processo de transmissão da psicanálise, enquanto experimentado no funcionamento próprio deste grupo. No entanto, as ressonâncias destas questões da transmissão se entrelaçam estreitamente com o próprio processo analítico. Para algumas das interrogações que surgiram, encontramos pistas de respostas, para outras não ainda.

A criação está presente, sendo mesmo necessária, tanto na análise como na transmissão, na exata medida em que é preciso reinventar o já inventado, tanto no sintoma como na teoria.

NOTAS

1 Mezan,R., " Klein, Lacan: para além dos monólogos cruzados.", in "A Vingança da Esfinge", Ed. Brasiliense, 1988.

2 Volich, R.M.," O psicanalista em busca de sua alma – Reflexões sobre a "especialidade"do analista ", in Revista Percurso, nº 22, 1º semestre 1999.

3 Major, R., "Por uma autonomia da clínica psicanalítica"

4 Berlinck, Manoel, Pulsional, Revista de Psicanálise Ano XII, Número 121,maio de 1999

5 Schnaidermman, R. Política de Formação em Psicanálise, in Percurso Ano I, nº 1, 2º semestre de 1988.

6 Zygouris, R. "Fluxo e estase", in Pulsões de Vida, São Paulo, Escuta,1999

7 Figueiredo, Luiz Cláudio, "O trabalho do texto, o trabalho da clínica" Aula inaugural do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da Universidade de Brasília. Abril de 1999

8 Freud, Sigmund, "Escritores criativos e devaneio" ( 1907-8) Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago, 1976

9 Freud, Sigmund, "O Humor" ( 1927) Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago, 1976

10 Sampaio, Camila P. "Entre o mal-estar e o bom humor: mazelas da civilização". Revista Percurso nº 21. 2º Semestre de 1998

 

Brasília, novembro de 1999.

Maria Nilza Campos maria_nilza@uol.com.br
Regina Orth de Aragão
regina@cindi.com.br
Sílvia Regina Tacchinardi
tachinardi@tba.com.br


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