Da Psicanálise à Metapsicologia: uma reflexão metodológica

Luiz Augusto Celes

 

Palavras chaves: Técnica e teoria em psicanálise; Metodologia da pesquisa psicanalítica.

Introdução

Retomando uma compreensão Freudiana do que seja a psicanálise, ele afirma que ela é um método de tratamento das neuroses, uma teoria sobre os processos anímicos e um procedimento de investigação desses mesmo processos. Assim, aparentemente a psicanálise compraz-se ao modelo da concepção vigente de ciência: uma teoria cuja construção se dá por um método de pesquisa e uma prática planejada e controlada por essa teoria e por sua metodologia. Na psicanálise se identificaria um discurso sobre o seu objeto (metapsicologia), uma metodologia de pesquisa, que precisamente permita a "observação" do objeto, portanto, um procedimento "visualizador", e uma aplicação do conhecimento que seria o tratamento da neurose.

Essa interpretação não é estranha à compreensão da psicanálise. Até mesmo as críticas que se fazem à cientificidade da psicanálise revelam-se estarem apoiadas sobre ela. Pois dizem da insuficiência de seu método de pesquisa, que seria incapaz de garantir a objetividade de suas observações. Esses olhares críticos privilegiam o aspecto da investigação, adotando a compreensão da psicanálise como sendo fundamentalmente um procedimento de observação, ainda que, eis suas críticas, insuficientemente planejado e controlado, segundo uma metodologia precisa. Por isso, por ser inadequada a observação, a teoria em psicanálise tem um caráter muito metafórico, o que quer dizer, na concepção desses críticos, muito distante do efetivamente, mas mal, observado.

A compreensão assim expressa da psicanálise não se afasta da mais tradicional concepção da pesquisa na ciência. Para guiar as reflexões que se seguem, vou apoiar-me em algumas formulações heideggerianas, particularmente de Ser e tempo.

De fato, quanto à compreensão da ciência, Heidegger afirma:

"Costuma-se considerar válido que, na ciência, todo manejo se acha apenas a serviço da pura observação, da descoberta e abertura investigadoras das ‘coisas elas mesmas’. Tomado no sentido mais amplo, o ‘ver’ regula todos os ‘dispositivos’, conservando a primazia."

Heidegger ainda toma uma passagem de Kant para mostrar que, "desde os primórdios da ontologia grega, a idéia de intuitus é que orienta toda interpretação do conhecimento". Intuitus é a relação que se pode compreender existir entre o conhecido e o conhecimento. Intuito diz do que se tem à vista, se dá à observação. Desta maneira, a pesquisa científica é um procedimento de fazer ver, e a metodologia é o discurso do método de observação. A observação é o fundamento da pesquisa científica. E o método regula ou normaliza o trabalho de constituir uma situação adequada de observação na qual o que se observa se apresenta como observado (ou observável), isto é, como objetivo. O trabalho de pesquisa teórica é o trabalho de objetivação: fazendo ver tem o objetivo de tornar constante a presença do objeto, isto é, torná-lo objetivo. Mas a pesquisa científica não é entendida como prática. Esta deriva da teoria como aplicação ou a ela se opõe como praxis, sendo a teoria contemplação, quer dizer, pesquisa que se dá como observação.

A primazia do "ver" na pesquisa científica, se traduz como uma "supervisão", isto é, a visão da própria "circunvisão que rege a ocupação ‘prática’". É, como se costuma dizer, ver com um outro olho, que supervisiona, que vê sobre, que vê o que se dá no trabalho, que vê a visão própria do trabalho. Assim é o controle metodológico do método da pesquisa científica. O efeito disso, entende-se de Heidegger, é mudar a ocupação no mundo para um modo de ocupação que objetiva o que, do mundo ou no mundo, vem ao encontro. O manejo e uso "práticos", modo original e fundamental de ser-no-mundo, se transforma em "comportamento teórico", por uma privação da praxis. De tal maneira que a praxis, que efetivamente é a pesquisa científica, se revela, então, de outra natureza que não a do manejo e uso práticos: ela se faz como trabalho de e para fazer "ver", de e para observação. O trabalho da pesquisa científica é um trabalho planejado e controlado que faz "ver" algo que já se sabe, ele é esperado. A paciência do cientista se mostra no trabalho esmerado que fará "ver" e na espera do que vem, como algo que se dá como objetivo. Na pesquisa científica, o ente que nós somos se constitui sujeito da observação e do conhecimento, este intuído na observação do que, objetivado, se mostra, mas se mostra como objetivo, isto é, independente daquele que observa, portanto, do sujeito. O conhecimento científico é ou pretende ser, afirma-se, objetivo. Como se pode, com respeito à psicanálise, caracterizar a sua pesquisa?

O sentido da psicanálise como trabalho de fazer falar …e fazer ouvir.

A psicanálise é originária e fundamentalmente trabalho, no sentido próximo do que Heidegger recupera dos gregos como praxis. Antes de ser metapsicologia, isto é, discurso, teoria, a psicanálise é trabalho de tratamento da neurose. Foi assim que ela surgiu em Freud, "um novo tratamento eficaz para as enfermidades neuróticas"; e foi dele que construiu metapsicologia. (não obstante o termo psicanálise e metapsicologia terem aparecido no mesmo ano na obra freudiana, em 1986).

O trabalho psicanálise é um trabalho específico, cujo sentido vou propor entender, embora não possa aqui justificar completamente, pois interessa neste momento articular uma outra questão.

Sustento a concepção de que o trabalho psicanálise é trabalho de fazer falar …e fazer ouvir, que se pode justificar ou elucidar na regra fundamental e no modo no qual este trabalho se dá.

A regra fundamental da psicanálise, a da associação livre, é um convite explícito para que o analisando fale, e fale segundo uma maneira específica, em associação livre. Assim, a psicanálise entendida como trabalho de vencer resistências, sendo esta a interrupção da fala do analisando em associação livre, reafirma o sentido do trabalho psicanálise como fazer falar. Da mesma maneira, a interpretação e a construção, também definidoras da psicanálise, revelam-na como trabalho de fazer o analisando ouvir o que sua fala fala, portanto, fazer ouvir. Escrevo a expressão "fazer falar" e a expressão "fazer ouvir" separadas por reticências e relacionadas pela conjunção "e". As reticências estão no lugar do ouvir e falar do analista (segundo as regras derivadas, as da atenção livremente flutuante e da abstinência), que faz falar …e faz ouvir o analisando. O "e" conjuga a integridade do trabalho psicanálise de fazer falar …e fazer ouvir.

Acontece que entendendo o sentido da psicanálise como sendo o do trabalho de fazer falar …e fazer ouvir, cabe perguntar se se trata ainda nesse trabalho de uma observação. Para reduzir ao sentido mais imediato: o "ouvir" do psicanalista que se constitui condição para o fazer falar e o fazer ouvir do analisando, o ouvir do analista é, pois, uma observação? A "técnica" envolvida no trabalho de fazer falar, definida radicalmente por sua regra fundamental, a associação livre, não pode ser entendida, sem perda de sua especificidade como trabalho de análise, como um procedimento metodológico de controle de "observação".

Fundamental e originariamente a psicanálise não é procedimento controlado de produção de conhecimento, de observação. A psicanálise entendida como trabalho opõe-se à contemplação. Sendo, por outro lado a pesquisa científica, também um trabalho, o trabalho metódico de produção da observação, resta precisar a diferença entre o trabalho psicanálise e o trabalho metódico da pesquisa científica. Em seguida, deve-se caracterizar a "visão" própria do trabalho psicanálise, já que psicanálise também é teoria, metapsicologia, lembrando a tríplice compreensão de Freud sobre a psicanálise que inicialmente aqui foi evocada.

Tratamento da neurose e investigação se confundem como trabalho psicanálise que não privilegia a visão.

A psicanálise sendo originária e fundamentalmente trabalho de tratamento da neurose não se deixa ser compreendida como aplicação de uma teoria e nem se deixa ter por meta privilegiada a "visualização" de um objeto (o inconsciente, que seja), mas sim a de sua "transformação", não importando aqui o fato de esse seu fim poder ser multiplamente tematizado. Se não basta isso para desfazer a interpretação da psicanálise como sendo prioritariamente um procedimento de pesquisa, deve-se acrescentar ainda que: o trabalho de tratamento da neurose e o trabalho de pesquisa que faz teoria são o único e mesmo trabalho de tratamento da neurose — no mesmo trabalho psicanálise de fazer falar …e fazer ouvir se dá o tratamento da neurose e se dá a "pesquisa" que permite teoria, ou propriamente dizendo, pesquisa teórica. Mas este acréscimo somente se põe como argumento que sustenta a diferença entre o trabalho psicanálise e o trabalho metódico de pesquisa da ciência se se caracterizar a "pesquisa" que, entretanto, dá-se no trabalho psicanálise. Somente a caracterização do trabalho de "pesquisa" que acontece na psicanálise permitirá marcar sua especificidade em face do trabalho da pesquisa científica.

Acontece, então, que a praxis e a "pesquisa" se confundem no trabalho psicanálise. Se muitos psicanalistas e críticos da psicanálise insistem em sustentar a idéia de que há uma relação "teoria/aplicação" entre metapsicologia e tratamento da neurose em psicanálise, não se pode, não obstante, fazer a distinção entre o trabalho de "pesquisa" e o trabalho de tratamento da neurose. Assim, se este último é originário e fundamental em psicanálise, aquele, o trabalho de "pesquisa", deve ter as mesmas características deste. Toda a construção da psicanálise, na qual Freud progrediu, é testemunha de que não há, no trabalho psicanálise, uma dupla atitude: uma que serviria à pesquisa dos processos psíquicos e uma outra que serviria ao tratamento da neurose. Há, sim, talvez se possa afirmar, um duplo efeito (indissociáveis) do mesmo trabalho de fazer falar …e fazer ouvir: ele é tratamento da neurose e "pesquisa" dos processos psíquicos. Pode-se então dizer: o trabalho psicanálise de fazer falar …e fazer ouvir, revelado como trabalho de tratamento da neurose, é, ele mesmo, trabalho investigativo dos processos anímicos. O trabalho de tratamento faz "ver" os processos anímicos, sem que ele mesmo, o trabalho de que se trata, tenha "intenção" visualizadora: não é um trabalho realizado para ver, ainda que deixe ou faça ver. O trabalho psicanálise assim entendido caracteriza-se por um terceiro fazer, fazer ver, ainda que seja um fazer diferente do fazer em fazer falar …e fazer ouvir. Fazer falar …e fazer ouvir é fazer o trabalho psicanálise. Fazer o trabalho psicanálise que se confunde com o trabalho mesmo que se tem de fazer, psicanálise. O fazer ver é efeito do trabalho de fazer falar …e fazer ouvir, isto é, é o que, em se fazendo falar e ouvir, se alcança: se alcança "ver" os processos anímicos. Será esta "visão" própria ao trabalho psicanálise que faz teoria, como veremos mais à frente.

A, chamada acima, não-"intenção" "visualizadora" do trabalho psicanálise, afasta-o do trabalho metódico da pesquisa científica que tem, ele sim, intenção e propósito visualizador. Este último faz ver o que se busca como objetivo, como independente daquele que "vê".

A "visão" que tem o trabalho psicanálise é uma "visão" investigativa, assim como se diz, por exemplo, da investigação sexual da criança. É uma investigação guiada pulsionalmente, ainda que no modo da abstinência e da atenção livremente flutuante, se falarmos do analista. Mas é que fazendo falar …e fazendo ouvir, os mesmos processos anímicos se dão a "ver" tanto para o analista como para o analisando. É mesmo como a psicanálise originalmente se constituiu: tratou-se do analisando Freud "ver" os processos psíquicos que se deram a ver no trabalho psicanálise de interpretação de seus sonhos. Esta foi uma situação bastante singular, de auto-análise, jamais repetida de maneira própria. O caráter inusual da auto-análise de Freud não diminui sua importância na construção da psicanálise, inclusive do ponto de vista teórico: sabe-se que foi na Interpretação dos sonhos que Freud deu o primeiro e irreversível caráter teórico à psicanálise, teoria a que chamou metapsicologia — onde o conceito de inconsciente e de processos psíquicos inconscientes foram definitivamente estabelecidos.

A auto-análise de Freud foi uma análise escrita: Freud escrevia as associações que lhe ocorriam. Aliás, é mesmo o conselho que ele dá, para que seja possível uma interpretação dos próprios sonhos. A escrita das suas próprias associações torna-se um meio de falar e ouvir o que ocorre. Também faz uma certa "objetivação" das próprias associações: elas restam escritas e independentes de quem a quem elas ocorreram. Escritas, permitem uma "supervisão", no sentido de Heidegger acima exposto: possibilitam "ver" o trabalho de associação. Esta "supervisão" desentranha a síntese, a síntese do sonho (as associações narradas em sentido inverso, do desejo infantil ao sonho), mas também a síntese "teórica", isto é, o trabalho do sonho como trabalho em sentido inverso ao trabalho de interpretação, de onde, procede-se à construção metapsicológica do inconsciente como trabalho (trabalho do sonho, por exemplo). O que se "vê" no trabalho psicanálise é o seu próprio trabalho de fazer falar …e fazer ouvir, o trabalho que leva à formulação do desejo inconsciente, este que determina o sonho, o sintoma histérico, a idéia obsessiva etc. Por isso não há interpretação de sonho sem "exemplo" de sonho interpretado, não há psicanálise sem "exemplo" de psicanálise. Não somente numa análise efetiva, mas na própria psicanálise o exemplo é a coisa. A "coisa" que se "vê" no trabalho psicanálise não é alguma coisa diferente do próprio trabalho, mas ele mesmo, aquele que se revela no caso singular de cada psicanálise. O que se busca na psicanálise não é outra coisa que a própria fala do analisando. Não é algo sabido e formulado em hipótese. Trata-se, no trabalho de interpretação, diz Freud, de abandonar qualquer representação-meta, de abandonar qualquer objetivo, de não reter qualquer alvo ao qual se queira chegar, para que se possa abandonar-se aos caminhos do discurso do analisando, tomado como fala: não se prevê o que o analisando falará e nem os processos que dariam forma ao que fala. O como fala o analisando é o que se procura. Se a psicanálise tem sua empiria, e a tem, não se trata de um lugar de observação, mas de trabalho de fazer falar …e fazer ouvir.

Quando se trata de uma psicanálise que não é auto-análise, na qual a escrita do caso (que a seu turno será sempre uma psicanálise) não se coloca de maneira primária, o mais imediato e distintivo aspecto é o fato de que no trabalho psicanálise, entendido como trabalho de "fazer falar" que tem por condição o "ouvir do psicanalista" para se "fazer ouvir" o analisando, não se privilegia a visão. Em psicanálise o "divã" se constitui mais do que simplesmente um "fundo", mas sim a "figura" psicanalítica propriamente, que torna possível o trabalho que se caracteriza, então, por um menosprezo, senão recusa da visão. O "divã" não é um símbolo vazio do trabalho psicanálise, ao contrário, ele o realiza. O "divã" não é uma comodidade para o analista ou para o analisando: é a condição mesma do trabalho, é também sua realização — o trabalho psicanálise de fazer falar …e fazer ouvir se realiza no "divã". "Divã" não é representação; é o "berço", o "leito" da psicanálise. É o lugar onde não se dá a "ver", foi instituído para propriamente "não ver" nada. É o lugar do falar e ouvir; mas como leito, é o lugar do "sonho": deixar-se levar por aquilo que ocorre, pelos pensamentos, palavras ou imagens que vêm ao espírito e que devem ser ditas. Mesmo quando são imagens o que ocorre, não se trata de um convite a observá-las, mas de descrevê-las, em todos os seus detalhes, isto é, trata-se de falar. Não será, por outro lado, a imagem reconstruída pelo analista o que vale como interpretação. Mas sim as palavras que, ouvidas no modo da atenção livremente flutuante, fazem "sonho" no analista. A função do analista não é "descobrir". Não é investigar ao modo em que um investigação policial se procede, isto é, sabendo o que se quer achar e esquadrinhando. Adotar a atenção livremente flutuante significa exatamente não hierarquizar o discurso do analisando, tomá-lo, ao contrário, como fala que fala e que, como tal, tem o mesmo valor qualquer fala, seja qual for, inclusive a fala que não se dá em associação livre, pois, se há análise, é resistência. Não há fala vazia do analisando senão sob um ouvir inadequado que não seja segundo a abstinência e a associação livremente flutuante. Ouvir que não se faz como uma "observação". Não se trata de uma "troca" do órgão de observação, da visão para a audição. O ouvir do analista é para deixar-se "sonhar", segundo a palavra de Figueiredo a respeito das construções em análise, quase um "delírio", para aproximarmo-nos de Freud, um deixar formar em seu espírito o que fala a fala do analisando.

O modo do trabalho psicanálise, a atitude para com o paciente e a maneira de tomar o seu discurso, modo que se resume e ganha sentido na transferência, aponta ainda outra distância entre o trabalho metódico de pesquisa científica e o trabalho psicanálise. Mais especificamente dito, distancia a visão do trabalho metodológico da "visão" própria do trabalho psicanálise. A transferência coloca em crítica (e em crise) as pretensões de objetividade que são o objetivo e o valor dos procedimento metodológicos científicos.

Como observa Mezan, a psicanálise se construiu sobre a subjetividade a mais singular, a de seu criador. A auto-análise de Freud não se presta à compreensão da transferência. A obra maior da auto-análise de Freud foi a Interpretação dos sonhos, e é precisamente na questão da transferência que ela mostra seu limite: a Interpretação dos sonhos não tem uma teoria sobre o tratamento, ainda que contenha uma teoria dos processos psíquicos inconscientes. No entanto, em termos da "metodologia" que guia a construção da psicanálise, ela marca já aí sua índole: trata-se de uma construção subjetiva, apoiada na subjetividade do que constrói, daquele que faz psicanálise. Os procedimentos de "objetivação" do trabalho psicanálise, para que ele deixe ver, são, sob os critérios da objetividade, insuficientes. O convite que Freud faz ao leitor da Interpretação dos sonhos, não é o de que relevem os aspectos particulares de sua vida, mas, ao contrário, que mergulhem nas particularidades de sua vida pessoal para que a interpretação de seus sonhos tenha alguma significância. Coincide novamente o trabalho de busca do desejo realizado no sonho com o trabalho que faz teoria, isto é, o trabalho investigativo. Abra-se mão do desejo particular do sonhador e não será possível a construção metapsicológica. O fundamento da metapsicologia é subjetivo, ainda que ela mesma não o seja. Numa psicanálise que se passa entre analista e analisando, a subjetividade implicada se revela no termo transferência. Ao mesmo tempo, a transferência distancia a psicanálise do subjetivismo. Talvez venha mostrar a inadequação do critério objetividade versus subjetividade na valorização do conhecimento que se constrói. A transferência, enquanto "resumo" da atitude própria de tomar o analisando em psicanálise e da maneira própria de tomar o seu discurso, nomeia a "subjetividade" implicada no trabalho psicanálise de fazer falar …e fazer ouvir. A transferência não sendo uma simples repetição do analisando do modo característico e "sintomático" de lidar com o seu desejo, envolve, no que ela tem de criativo, o desejo do analista. Ou, como Freud fala, um certo qualquer detalhe particular da pessoa do analista. É o desejo do analista como que colocado à disposição do desejo da analisando que faz transferência. É por isso que Lacan vai dizer que a psicanálise, tomada como um vagão no trem da ciência moderna, revela o desejo do cientista na produção da ciência. O não subjetivismo implicado no trabalho psicanálise se expressa no modo característico de se "lidar" com a transferência: em psicanálise, o analista não a toma como pessoal, como, ao contrário, teria feito Breuer com o desejo de Anna O.. A condução da transferência se dá no sentido de o desejo do analista, no jogo da transferência, ser carta marcada. O desejo do analista é "isca" para a atualização transferencial do desejo do analisando. O espelho de que o psicanálise faz vez é o espelho de seu desejo. Uma e principal razão de por que o analista deve submeter-se à análise pessoal.

Mas será que no trabalho psicanálise enquanto a situação que se define pela presença de analista e analisando (e não na de auto-análise) se pode continuar afirmando que a "visão" que caracteriza a pesquisa teórica se trata da "supervisão" do próprio trabalho psicanálise?

Essa questão é fundamental e, elucidada, permite até mesmo mostrar o modo característico do enraizamento da metapsicologia no trabalho psicanálise. Mas uma vez, ficaremos com uma indicação do caminho para uma resposta. Além do mas, o caráter francamente especulativo da metapsicologia impede de estabelecer resposta única e completa à questão a respeito da teoricidade do trabalho psicanálise. Aqui nos daremos por satisfeitos se mostrarmos o enraizamento da teoria no trabalho. Mostrar o enraizamento ainda que não se possa tematizar toda a questão da psicanálise, sob pena, como observa Fedida, de (pseudo-)cientificá-la.

Acontece precisamente que logo no início da constituição da psicanálise, Freud, salientando o efeito terapêutico da técnica que aprendera com Breuer e que será a que se constituirá psicanálise, diz que sua vantagem em relação a outras técnicas e seu ganho se deve ao fato de que ela "imita fielmente o mecanismo segundo o qual se geram e dissipam estas perturbações" (grifo meu). Está assim explicitada a "supervisão" de Freud, a de que a técnica imita o que trata. Constitui-se desta maneira a "visão" que caracteriza e fundamente teoria. O trabalho de cura da histeria (da catarse, à associação livre na interpretação) revela os mecanismos envolvidos na gênese e manutenção da histeria, porque os imita. Sobre essa mimética se pode mostrar como o inconsciente é, na Interpretação dos sonhos, definido antes de tudo como trabalho, trabalho do sonho, mimetizado na técnica de interpretação do sonho. Perca-se essa referência ou enraizamento essencial da metapsicologia no trabalho psicanálise de fazer falar …e fazer ouvir e se estará pseudo-cientificizando a psicanálise, esvaziando o que a metapsicologia (nome que talvez devesse ser escrito no plural) pode ter de valor essencial para a psicanálise, a saber, o de uma "potencialidade" ou índole analítica.


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