AS INSTITUIÇÕES PSICANALÍTICAS
E O CONTATO COM A MÍDIA
nova versão

Wilson de Lyra. Chebabbi

O estudo do tema do contato das instituições psicanalíticas com a mídia já foi tratado no último Congresso Brasileiro de Psicanálise, abordando "A Psicanálise, a Mídia e a ética dessa relação". A insistência desse tema revela a sua complexidade.

Chamamos de mídia, por aportuguesamento da pronúncia inglesa da palavra media, que é o plural de medium. Significa então que chamamos de mídia a pluralidade dos meios de comunicação, desde os cartazes pregados nas paredes ou os títulos dos estabelecimentos comerciais ou nomes das ruas e das praças até os mais complexos como a Internet. Estão no rol das "media", em sentido amplo, naturalmente a imprensa, o rádio, o cinema, a televisão e todos os meios que a Informática tem desenvolvido de modo acelerado nos últimos anos. Strictu sensu, que tem sido como tem sido empregado correntemente, a mídia é o conjunto de discursos em redes de comunicação que são regidas pelo mercado.

A regência do mercado estabelece uma rigidez da interlocução entre o emissor e os receptores que torna a semântica e a sintaxe estereotipadas para cumprir meticulosamente a escala de valores encabeçada pelo valor capital: o lucro. Visam influenciar os recipientes por sugestão e persuasão para induzi-los a consumir. Para tanto é indispensável a ilusão de que algo, com a suposta concretude de "coisa em si", pode ser adquirido do fornecedor mediante pagamento.

Esse algo é uma mercadoria, que significa ao pé da letra: um produto que tem valor de mercado, que se pode negociar, mercantilizar. Na produção desse produto não é eficaz só a força de trabalho, como também o capital investido para a linha de montagem na qual o operário opera como também a obra da mídia que tem como objetivo tornar o produto desejável e portanto necessário. Como o marxismo mostrou, de modo exaustivo, a mercadoria é um "fetiche" no qual se procura, em vão, a satisfação dos anseios mais profundos.

Dizendo de outro modo, a mídia é também um produto produzido para aparentemente tornar o produto sedutor, mas é ela também criada sedutoramente como objeto do desejo. Seduz-nos cada vez mais dispensar o nosso hábitat tradicional das casas, ruas, praças, cidades, países pelos quais trafegamos e nos encontramos com outros seres humanos com os mais diversos desejos e finalidades. A mídia nos convoca charmosamente a existir no mundo midiático da rede informática, na qual podemos vivenciar, de modo virtual, a globalização. Nossas casas, nossas ruas, nossas praças, cidades e países são virtuais e como isso nos conduzimos muito mais rapidamente sem maior esforço nem obstáculos.

E graças à essas facilidades aparentes, podemos negociar, trocar idéias, fazer cursos, consultar bibliotecas, assistir espetáculos, freqüentar museus, namorar, fazer sexo e mesmo consultar-se e tratar-se – seja por medicamentos indicados por programas farmacêuticos, seja por psicoterapias – on line. Qual o salto que se dá, quando se passa da consulta "carnal", em que estão presentes dois corpos impregnados de alma, para a consulta por texto? Nem médicos nem pacientes dispensam "textos". Somos todos escritores e escritos. Só que a palavra que empregamos e nos emprega, encontra-se vivificando um corpo carnal e perecível. Os textos dos primórdios da nossa cultura continuam a existir, livres da precariedade da carne. Os registros dos textos estragam-se com o tempo, mas o texto, enquanto conhecido não.

A grande sedução consiste em atrair a crendice a supor que se poderá ter os mesmos resultados dispensando-se do esforço, do tempo, do empenho e do dinheiro que se teria de investir para realizar essas atividades.

Foi justamente dessa promessa enganadora que a proposta freudiana se distanciou. É portanto falaciosa a utilização de qualquer coisa que queira ser "propaganda", "promoção" ou "doutrinação" da psicanálise como forma de tratamento. Para ser genuíno, o atendimento psicanalítico precisa ser requerido pela necessidade e pelo desejo do paciente. É o entrecruzamento dessas duas vertentes, inconfundíveis e essenciais ao exercício da existência, que torna viável a prática de uma análise.

Por outro lado, as instituições psicanalíticas pretendem ser constituídas como entidades grupais com a finalidade de assegurar a representação social desse saber específico que foi descoberto por Freud e para favorecer a existência de um território no qual os profissionais possam aprender, ser treinados e estudarem aquilo que faz-se necessário para se manterem atualizados e terem pares com os quais possam intercambiar e ao mesmo tempo encontrar acolhida e entendimento, ainda quando surjam divergências, naturais e necessárias, como ocorre em toda profissão.

A representação social de nosso saber tem como finalidade assegurar a preservação da seriedade do esforço de Freud e de todos os analistas que têm mantido o zelo por esse saber e contribuído para o seu desenvolvimento. Isto é necessário para haver um centro de conhecimento sóbrio para dirimir os mal-entendidos e as distorções oriundos da apressada e voraz versão que circula nos diversos setores da opinião pública. A psicanálise presta-se particularmente a uma pluralidade de versões em função de dois fatores, pelos motivos a saber:

1)Não é um saber fechado, pois depende fundamentalmente da experiência da interlocução para ser sempre de novo descoberto

2) A sua prática implica numa privacidade que desperta uma multidão de fantasias incitadas pela curiosidade e pelas especulações a respeito do que poderia estar se passando na intimidade de um processo dessa natureza.

Deste modo a psicanálise tem uma posição ambígua: ela é um saber privado que só é alcançado pela sua experiência íntima, não pode pretender publicidade e propaganda, e por outro lado ela é um conhecimento que pertence ao acervo público e não privado da humanidade. Dele têm se servido inúmeros outros campos de saber. Neste aspecto, a psicanálise não tem o direito de se esquivar de tornar comunicável os seus saberes. Mas como?

A experiência clínica com pacientes concretos pode até certo ponto ser transmitida, mas essa transmissão não pode ignorar certos preceitos éticos essenciais que garantam a não violação da intimidade das pessoas que se tratam. Freud publicou alguns

poucos casos clínicos, mas não só não esmiuçou o todo dia dos processos como também cercou-se de cuidados especiais.

O que Freud não cessou de fazer, durante toda a sua vida, foi escrever os achados com os quais ia construindo a sua teoria, de maneira sempre provisória e sem jamais apontar para os mistérios que a sua razão, e quiçá a razão humana, não dava conta de desvendar. Por este motivo sua obra é uma obra aberta que tem sido uma fonte frutífera para sempre novas exegeses.

A avidez da opinião pública não tolera bem a relatividade, a incerteza, a dúvida e a polissemia. Há uma conivência implícita entre a mídia (stricto sensu) e a opinião pública no sentido de procurar declarações que fechem o questionamento. Pois é o questionamento que atormenta. O questionamento revela a liberdade humana, pois a decisão é remetida sempre ao sujeito.

É neste último aspecto que surgem dificuldades do contato das instituições psicanalíticas com a mídia. Podemos com facilidade verificar a tendência da mídia a editar as declarações que fazemos de tal modo que fiquem mutiladas as frases mais fecundas, exatamente por terem um âmbito de significância mais ampla, estimulante da atividade de pensar dos leitores, telespectadores ou internautas.

Já as instituições psicanalíticas, para se constituírem precisam estabelecer certos marcos básico que funcionem como linhas gerais de processamento e de entendimento do que seja a psicanálise. Isto é indispensável. A variabilidade, entretanto, precisa ser assegurada para não bloquear o desenvolvimento da instituição. Essa relatividade é menos difícil (embora não seja fácil) num território social em que o contato pessoal direto é sempre possível.

No âmbito da mídia que se impõe cada vez mais, contudo, cada interlocutor não tem como responder contemporaneamente ao monólogo do autor que escreve, fala ou envia mensagens, a não ser a posteriori, por cartas, telefonemas ou textos por computador como nos "chats", "E-Mails" ou faxes. É portanto sempre um contato virtual e não diretamente vital, no qual a pessoa encarnada fica suposta.

Esse tipo de comunicação não cabe na clínica psicanalítica, a não ser para avisos, informações, asseguramentos, explicações e ponderações, que não pretendam ser uma sessão, embora seja uma forma de atendimento.

O psicanalista não pode ignorar, contudo que a mídia faz parte integrante e indispensável da nossa cultura atual. É impossível deixá-la de lado. As instituições psicanalíticas precisam manter um contato com a mídia tendo sempre presentes as deformações possíveis. As deformações mais frisantes das informações veiculadas sobre a psicanálise são:

1 as que se utilizam de discursos freqüentes nas propagandas comerciais, políticas e religiosas e

2 as que assumem uma feição didática racional fechada.

As primeiras se valem do poder do fascínio, da sugestão e do efeito emocional que, em psicanálise, são contrários à sua proposta porque capturam a alma do outro e nela inserem a versão de verdade que querem veicular. A maneira didática favorece a entender a psicanálise como algo que se vai aprender intelectualmente, dispensando-se do contato íntimo consigo mesmo e com a própria experiência de vida. O melhor meio de informar o que é a psicanálise é sentir por conta própria o anseio de ser escutado por alguém treinado para um "ouvir" especial acolhedor que não conduza a direção de sua fala.

Tanto nas primeiras como nas segundas, o fluxo do texto – falado ou escrito – tem de ser linear para poupar o ouvinte ou leitor do questionamento e da reflexão que o tornariam aberto à participação, portanto de co-autoria do que está sendo pensado. Este meio de comunicação fica portanto sempre nas duas dimensões da linearidade. Falta-lhe o "fundo", isto é o "profundo" que a psicanálise almeja. O consumidor e o distribuidor do discurso midiático ficam comprometidos com as propostas do "relax".

Em poucas palavras, o contato fecundo das instituições psicanalíticas reside na possibilidade de que a mídia faça uso de si própria para veicular entendimento da experiência analítica sem tentar efeitos manipuladores sobre os receptores. Para isso, contudo, os agentes da mídia precisariam manter-se sempre autocríticos dos desvios que o seu poder é capaz de engendrar.

É contudo esse poder, engendrado por uma reinvenção da cultura (Muniz Sodré, 1998), pela "desrealização" do mundo, pelo simulacro da experiência, que subvenciona o desenvolvimento milionário dos produtos da comunicação tecnocrática.

Simulacros da experiência como as que oferece, por exemplo, a exposição "Erótica 99" em Nova York ou o mundo televisivo, especialmente pelas telenovelas que se inserem no cotidiano, seduzem com a tentação de deixar-se embalar pela ilusão de atendimento do pensamento mágico. Posso praticar inúmeras modalidades de sexo sem risco e sem pecado. Posso participar intimamente do meio social da elite mais abastada sem mudar de condição real. O pensamento mágico é então subvencionado pela mídia e, por circularidade, esta fica a serviço do mesmo. O preço que se paga por estas ilusões é a constatação do que já Nietzsche dizia: "o deserto está crescendo".

Como pode então dar-se uma autocrítica assumida pelos promotores da mídia, subvencionados necessariamente pelo mercado que subvenciona o funcionamento de seus sistemas? Como podem os editores das emissões radiofônicas, televisivas, cibernéticas, "em tempo real", parar, repetir o que foi comunicado e perscrutar o que está no fundo? Para ser bem "sucedida", a mídia precisa manter-se uma "sucessão". É isto que garante o seu sucesso. O espetáculo não pode parar.

Como pode o ser humano rever, em profundidade, o sentido que tem emprestado à sua existência sem "parar"? O recolhimento, a ascese, a revisão sentida e sofrida da própria experiência e de seus descaminhos são indispensáveis ao processo psicanalítico.

Wilson de Lyra. Chebabbi
Estrada D. Castorina, 124
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chebabi@rionet.com.br


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