*Haverá
psicanálise no século XXI? ou
A psicanálise tem
futuro?[1]
Maria Cristina Rios Magalhães
Nesta
ocasião pretendo desenvolver algumas vertentes relativas à questão da
longevidade da psicanálise. Será ela uma prática clínico-teórica datada? A
psicanálise persistirá no século XXI?
Estará viva na passagem do século XXI para o XXII? Ou será que já terá
falecido por estar ultrapassada e sem eficácia?
Estas
questões têm sido colocadas, em algumas ocasiões, pela grande imprensa nacional
e internacional. Dentre estas, com facilidade me recordo da última revista
“Isto É” com data de 27 de setembro de 1995; de um debate publicado no jornal
Folha de São Paulo desse mesmo ano; de uma New Yorker Review of Books que saiu,
provavelmente, no ano passado e uma revista Time que saiu há dois anos.
Certamente houve outros artigos e outras situações onde se debateu esta questão
que está no ar, na cabeça de vários psicanalistas, em artigos e livros de
diversos autores.
A
pergunta: “Freud está morto?” ou “A psicanálise está morta?” é levantada
principalmente em função dos avanços das neurociências, da engenharia genética,
dos novos psicofármacos e de novas e rápidas psicoterapias à disposição no
mercado, como também em relação às mudanças profundas havidas na cultura em
geral. Estas mudanças trazem-nos, possivelmente, novas organizações subjetivas,
assim como formas diferentes de constituição da subjetividade. No que diz
respeito às ciências anteriormente citadas - que levariam a humanidade a
prescindir da psicanálise - elas são campos de conhecimentos não coincidentes
com a psicanálise; sendo assim, suas eficácias são diferentes porque suas ações
concernem a áreas distintas das problemáticas do humano. A discussão ou o diálogo
destas ciências com a psicanálise requer um longo tempo, onde seria importante
a conscientização das fronteiras de cada campo e das contribuições que cada um
destes campos de conhecimento pode fazer aos outros. Posso citar pelo menos
dois exemplos: o da engenharia genética que encontrou uma herança multifatorial
- um conjunto de genes que interagindo com o ambiente e a cultura têm até 50%
da responsabilidade pela predisposição a determinados distúrbios mentais; o da
psiquiatria, que com o uso de novos psicofármacos liquida com os sintomas de
vários quadros psiquiátricos, com efeitos colaterais indesejáveis bastante
atenuados e controlados - servindo muitas vezes de argumentos - assim como
outros tantos do mesmo teor, para o decreto de morte à psicanálise. Estes
argumentos contêm em sua base vários equívocos.
O
maior destes enganos é o de supor que aquilo que a genética ou a psiquiatria
biológica chamam de distúrbios mentais seja equivalente ou tenha alguma
correspondência com o que a psicanálise nomeia como psique. Estas são áreas
diferentes de conhecimento, cada qual com métodos distintos, produzindo, assim,
saberes singulares e diferentes entre si. O fato de existirem alguns
psicofármacos que terminam com o que o psiquiatra chama de delírio não impede
que o psicanalista - que utiliza outro método para saber da psique aí
conceituada e tratada em outras bases - constate a existência de um
funcionamento delirante. Por mais que a genética, com sua engenharia, modifique
traços da personalidade de alguém, isto não desfaz o homem cindido ou o
inconsciente, objeto da psicanálise. Estes e outros argumentos do mesmo tipo
são frutos de uma confusão de línguas e da negação de que estes são âmbitos
distintos de conhecimento. O que a psicanálise pode aportar ao conhecimento da
psique e do humano é peculiar ao seu método, o qual não provê a humanidade de
todo saber, levando-a a prescindir das outras ciências. O mesmo ocorre com os
demais campos. A existência de novas terapias rápidas também não é razão para
que pensemos que a psicanálise está superada. Estas terapias, por terem métodos
e objetos distintos da psicanálise, também não produzem cura, nem saber
semelhantes ao da psicanálise.
Um
outro lado, o das mudanças na cultura, que tem incidências na constituição e no
desenvolvimento da psique, também tem levantado debates sobre a longevidade da
psicanálise. Muitos psicanalistas, leitores em geral da psicanálise e
intelectuais de várias áreas das ciências humanas, também se perguntam se o
teor e a rapidez das mudanças havidas durante o século XX não teriam engendrado
organizações da subjetividade diferentes das já descritas nos quadros clássicos
da psicanálise. Outros afirmam que seguramente estas novas subjetividades já
existem. Tanto os que se perguntam quanto os que afirmam a existência destas
novas organizações psíquicas, questionam em geral se estas novas subjetividades
ou outras de que ainda não se suspeita, são e serão perceptíveis, possíveis de
serem captadas e tratadas pela psicanálise.
De
fato, as condições da humanidade neste fim de século são distintas das do seu
começo. A cultura da abundância e da industrialização possibilitaram que o
homem sobrevivesse como nunca. Tanto a vida quanto a morte mudaram de figura. A
morte e várias outras condições limitantes para a vida vão cada vez mais sendo
controladas pelos avanços das ciências e das tecnologias, que mais e mais se
propõem a superar as condições impostas pela natureza. Além disso, novas formas
absolutamente potentes e cabais de matar foram desenvolvidas. É possível
exterminar a vida, tal como a conhecemos, humana e não-humana também, com um
simples apertar de botão. As bombas superpotentes geradoras de morte em massa
são uma realidade.
As
tradições foram paulatina e vigorosamente postas em cheque. Isto provocou
fortes reações tradicionalistas. Estas reações, embora significativas no nosso
século, não chegam sequer a arranhar a força de uma cultura individualista, de
massa, globalizante, porque penetra rapidamente, por obra do desenvolvimento
das ciências e das tecnologias ocidentais, em quase todos os cantos da Terra.
Além disso, outros planetas do universo cósmico passam a ser abordados
concretamente, não só através de ficções teóricas e literárias. Viagens
cósmicas passaram a ser realidade.
A
tendência é a infiltração cada vez maior da
cultura industrial de massa e de
consumo, questionando e subvertendo a ordem tradicional numa velocidade jamais
vista. Nesta cultura, com a evidente quebra das posições tradicionais, as
concepções do que seja mulher, homem,
criança, esposa, marido, filho, reprodução, educação, trabalho, lazer,
ócio, saúde, tempo etc, são construções recentes e ainda em elaboração. As
relações dos humanos entre si, com o meio ambiente, com o cosmos e com as suas
produções vão sendo engendradas em novas bases, apresentando ordenações e
significações anteriormente inexistentes. Uma velha ordem vai sendo destruída e
transformada.
Vários
autores falam de mudanças na organização da subjetividade. Nota-se, cada vez mais, quantitativa e
qualitativamente organizações subjetivas mais narcisistas, mergulhadas na busca
incessante de estoques de imagens-fetiche, promessas de completude e gozo que
driblam a incompletude e o vazio do que falta, ou seja, a frustração da
totalidade. Estas imagens-fetiche são fornecidas aos montes pela opinião
pública, que visa sempre a formação dos comportamentos de massa e de consumo
que prometem felicidade completa, ao mesmo tempo que veiculam a possibilidade
de catástrofes cósmicas provocadas pelo homem visto como onipotente, se capaz
de ter acesso aos bens tecnológicos da contemporaneidade. Existem também as
subjetividades narcisistas que se organizam a colecionar imagens-fetiche que
lhes garantam não a felicidade, mas sim a sobrevivência, sentindo-se tremendamente ameaçadas por uma
sensação cada vez maior de impotência, já que estando todo o poder nas mãos de
alguns eleitos, esta elite decidiria o destino da massa segundo suas
conveniências narcísicas. Também faz parte desta exacerbação narcisista a
carência de utopias e ideais, que em outras épocas tinham função de referência
para construções que durariam, por vezes, várias e sucessivas gerações.
Nosso
tempo é o da fugacidade e rapidez. O “use, goze e jogue fora” é o lema. Com isto, o ser humano tende a se ver também
segundo este lema, lançando-se cada vez mais no imediatismo, crendo que gozar é
a única coisa viável. Entretanto, se ele não morre no gozo, a incompletude
reaparece voltando a incomondar.
Alguns
autores, como Felix Guattari, Contardo Calligaris e Massimo Canevacci dizem[2]
que na contemporaneidade a família não é mais o principal agente da
subjetivação e que esta é incitada e levada a cabo por outros agenciadores que
são tão ou mais importantes que ela. Autores como Philip Slater, Theodore
Roszak, Paul L. Wachtel, Henry Malcom, Charles Reich, Alvin Toffler também em
função das transformações da cultura no século XX, detectam psiques cada vez
mais narcisistas.
O
narcisismo exacerbado tem sido constatado na clínica como muito comum e
freqüente, e tem sido apontado como uma resistência persistente embora esteja
sempre associado a muito sofrimento. Percebo isto na minha clínica e vários
colegas me relataram o mesmo das suas. As discussões têm sido em torno de se
este narcisismo é algo novo mesmo ou se ele não passa de uma quantidade de
fixação maior agenciada por novos e múltiplos fatores em uma estrutura anteriormente existente e que não chega a
configurar uma nova qualidade que tenha que ser descrita como um quadro psicopatológico
realmente novo. Outros autores teorizam a síndrome de pânico - a velha e
conhecida neurose de angústia - e a melancolia como as doenças psíquicas do
século.
Estas
questões são pertinentes ao campo da psicanálise, pois desde Freud a psique, a
neurose, o que tradicionalmente se nomeia perversão e a psicose são pensadas
como inerentes e concomitantes ao aparecimento da cultura. A psique e suas
várias organizações são aquisições culturais.
Desde
o começo, a psicanálise apresentou-se como uma aventura na psique e no
inconsciente, através da linguagem. A escuta do inconsciente por meio do método
da psicanálise nos deu acesso às formações do inconsciente como atividade de
linguagem livre associativa, interpretativa, movidas por transferência.
Tradução, transmissão e transferência são palavras de mesma raiz, nomes de processos e ocorrências vitais na psique.
A raiz da psique está no inconsciente. Ela é alimentada por energia somática
que ligada a representações transferem as marcas da espécie, memória da psique
em atividade de linguagem num interesse
no desconhecido imprevisível e no incognoscível.
Atualmente
existe mais ou menos cem anos de produção de saber do inconsciente que nos
mostram a importância da cultura na constituição da psique. Isto é formulado
por muitos, mas retomarei Freud que em vários momentos abordou este assunto.
Entretanto, aqui relembrarei somente Neurose
de transferência - uma síntese em que aborda, entre outras, as questões das
origens míticas da psique, cultura, neuroses, perversões e psicoses. Este
trabalho nos leva até a Idade do Ouro, onde nossos antepassados viviam uma
satisfação paradisíaca, mas onde
também perderam a pauta instintual. Tornando-se diferentes dos outros
animais que têm seus comportamentos e suas relações pautados pelo instinto,
passaram a viver pulsionalmente. Este seria o momento filogenético do
surgimento da pulsão.
A
Era Glacial é o próximo evento importante, sendo um tempo de muitas
dificuldades em função de um ambiente hostil que impunha muitos riscos para a
manutenção da vida. Foi nesse momento que a humanidade tornou-se angustiada.
Entretanto, se a libido sexual não perdeu de imediato seus objetos, o eu
ameaçado na sua existência terminou por
desistir, até certo ponto, de investi-los. Com isto a libido refluída no eu
transformou-se em angústia real.
Os
tempos difíceis prosseguiram e os homens primitivos depararam se com o conflito
entre auto-preservação e prazer de
procriar. Apesar da fome e do grande número de ameaças à vida dos adultos, a
matança de recém-nascidos encontrou resistência no amor de algumas mães
narcisistas. O controle da procriação impôs-se como obrigação, propiciando que
as satisfações perversas escapassem da proibição e promovendo regressão à fase
anterior ao primado dos genitais. Contudo, esta condição afetou muito mais às
mulheres que aos homens, já que a conseqüência das relações sexuais
aparecia, evidentemente, como gravidez
proibida. Foi esta situação na filogênese que gerou as condições para a
histeria de conversão, sendo ela um sintoma indício de que o homem ainda não
tinha a fala e que, portanto, a fronteira entre inconsciente e pré-consciente
ainda não havia surgido.
Neurose de transferência - uma síntese é
metapsicologia. Um saber oriundo da situação analítica e do método que a sustenta. É através deste método que a
clínica do inconsciente, que é o objeto da psicanálise, acontece. A regra
fundamental deste método: a associação-livre, aliada à atenção flutuante, à
transferência e à interpretação são em si mesmas o modo próprio de
funcionamento do inconsciente e da psique. O método que produz saber na
psicanálise é o modo particular, específico, próprio de funcionamento de seu
objeto. Situar a psique do analista e a
do analisante de acordo com o modo de funcionar do inconsciente e potencializar
ao máximo este funcionamento, é o meio e o fim do tratamento. O conhecimento
que aí se engendra é metapsicologia, produção de saber do inconsciente que se
dá a conhecer pela psique. A metapsicologia e o tratamento psicanalítico são o
inconsciente em movimento através de representações. O mito é formação do
inconsciente, tal como o sonho que é paradigma da situação analítica, de seu
método e de sua teoria. Não é só o psicanalista que teoriza em psicanálise,
todo e qualquer analisante também o faz. A produção de saber na psicanálise é,
como já vimos, uma conseqüência de seu método em movimento, uma decorrência da
própria psicanálise em acontecimento.
A
psicanálise é clínica do inconsciente. Ao mesmo tempo que trata ou cura a
psique, produz saber. O inconsciente é também o desconhecido de alguma forma
sabido, mas ele é, sobretudo, o incognoscível que se insinua, produzindo
efeitos, mantendo sua reserva no irrepresentável .
É
com vistas ao inesgotável desconhecido que a situação analítica é construída.
Ao mesmo tempo em que é arquitetada de forma a que o inconsciente funcione ao
seu próprio modo, potencializado, em acontecimento, é também constituída por um
quadro ideal que tem função de balizador e meta do tratamento. Este ideal
balizador proporciona que fluxos do inconsciente e seus entraves sejam
detectados. É no contraste ou na coincidência do quadro ideal com o que
efetivamente ocorre, que a direção da cura pode ser encaminhada. Associação
livre, atenção flutuante, transferência, interpretação, abstinência e
neutralidade, além de serem o quadro ideal balizador, são também atitudes
epistêmicas.
O
encaminhamento da cura é o mesmo que a sustentação do funcionamento do método
no interior da situação analítica. Nesta, método, técnica, saber e cura, são
indissociáveis. À medida que se produz saber do inconsciente, a cura vai se
produzindo também. Isto porque a psique e o inconsciente em trabalho vão se
libertando dos entraves ao movimento e ao acesso à fonte e origem da psique,
através do levantamento das defesas e do estabelecimento ou restabelecimento de
representações tradutivas entre suas várias instâncias. Sendo assim, a
compulsão a repetir os desígnios do fixado pode atualizar-se em representações
que se enlaçam e desenlaçam fluidamente, expressando verdade para o sujeito.
O
meio e a meta são o pensar e a fala livre associativos fomentados pela
dissolução e potencialização de transferências e produção de interpretações que promovem novos fluxos que se
associam tendo como objetivo a produção de saber, de tratamento e de cura do
fluxo do inconsciente e da psique como um todo. Isto engendra na psique novas
formas de ela mesma existir, se organizar e
funcionar que numa amplificação de possibilidades bordeja o irrepresentável, o
incognoscível[3].
O
manejo do método na psicanálise apresenta peculiaridades a cada caso. Nunca se
sabe, a priori, como este método será
posto e sustentado em andamento. A questão é: quais são os procedimentos ou
técnicas que podem ou devem ser criados para que a livre associatividade e a
capacidade de interpretação possam fluir junto à potencialização e diluição da
transferência. Isto requer uma série de decisões clínicas que devem ser tomadas
a cada caso que incluem até as condições materiais que viabilizam a fala e a
escuta do inconsciente, mesmo em casos onde a fala do analisante é apenas uma
perspectiva, como no tratamento relatado por Marie Christine Laznik-Penot neste
mesmo congresso.
Nesse
tratamento, cuja analista é uma supervisionanda sua, introduziu-se um vídeo nas
sessões de uma criança diagnosticada como autista. Esse menino se dedicava com
certa obstinação a assistir vídeos, repetindo e cortando seqüências de
histórias. Revelava a sua linguagem possível, já que não falava com palavras.
Foi esta “fala”, em linguagem visual, que continha inclusive palavras e falas de
outros, que pôde estar em movimento e transferência nessa situação analítica.
Por
meio de deslocamento e recalque a psicanálise é freqüentemente confundida com
sua teoria já publicada ou com sua memória. É confundida também com formas
peculiares ou circunstanciais de fazer funcionar seu método, que transformado
em rito de defesa ignora o inconsciente e institui a situação analítica como um
a priori. Neste caso, ela
constitui-se numa reprodução sustentada por identificação, não gerando
psicanálise, que é produção e não reprodução de saber.
É
absolutamente necessário que se possa distinguir o que, na psicanálise, é raiz
e o que são meras circunstâncias automatizadas. Esta confusão engendra morte na
psicanálise. Neste contexto, deixa de ser produção de saber acontecendo, o que
a caracteriza enquanto uma práxis clínica.
A escut[AF1]a na psicanálise nada mais é
que a prática do método e produção de saber do inconsciente. Tomar as formas
ritualizadas de fazer funcionar o método e as teorias prontas, já conhecidas,
como sendo elas a psicanálise, é ceder ao recalque num engessamento à psique,
tornando esta prática clínica um aparelho de pensar que nada mais tem a ver com
a clínica e muito menos com a psicanálise. O gesso, o aparelho de pensar, a
aplicação de teorias ou de jeitos instituídos não favorecem a livre associação
que é sua regra fundamental, nem mesmo enquanto meta, já que a grande maioria
de pessoas que procuram uma análise estão fortemente comprometidas com esta
impossibilidade.
A
ideologia parasita constantemente a psicanálise. Isto também a leva à morte se
não puder ser reconhecida como resistência. É, então, fundamental que a
psicanálise possa ser tomada em sua radicalidade: produção ativa de saber do
inconsciente, numa escuta da memória e do inusitado na psique através da
transferência, liberdade associativa e interpretação. Estes são elementos de
funcionamento fundamentais na psique e por isto mesmo, muitos antigos,
teorizáveis só de forma mítica como fez Freud em Neuroses de transferência: uma síntese.
A
única premissa necessária à psicanálise é o da existência do inconsciente.
Sendo ele o desconhecido, não sabemos como se apresentará. A psicanálise é
exatamente um método através do qual o inconsciente é continuamente descoberto,
podendo manifestar-se e esconder-se, por meio da linguagem potencializada em
sua capacidade. A existência do inconsciente, sua capacidade de linguagem da
qual decorre seu modo de funcionar - associação livre, transferência,
interpretação - são os limites da psicanálise. Sem estes elementos a
psicanálise é impossível e ela não existirá mais se a espécie humana tornar-se
incapaz de linguagem.
O fato do complexo de Édipo, da histeria,
da paranóia etc... se apresentarem ou não na situação analítica é uma
possibilidade. Terá de ser verificado se o que Freud e todos os outros
psicanalistas escutaram do inconsciente, do eu etc... continuará falando na
situação de análise. Se o objeto da psicanálise é o desconhecido, novas
organizações da psique se mostrarem é uma conseqüência bastante razoável para o
incognoscível como meta.
Toda teoria já produzida na psicanálise
faz parte da sua memória e enquanto sua clínica estiver viva novas organizações
da subjetividade podem acrescentar-se. Porém, se a psique, através de seu poder
de linguagem, não reapresentar no interior da situação analítica figuras de
algumas marcas desta memória é porque esta teorização não é mais pertinente à
psique, nem ao seu tratamento ou cura. Neste caso, ela passa a ser parte
somente dos arquivos da história da psique e da psicanálise. O único
compromisso que a psicanálise pode ter com o já conhecido é de natureza
histórica.
O
fato de que possam existir novas organizações da subjetividade e outras formas
de subjetivação diferentes das que a psicanálise descreveu e conceituou até
agora não é nenhum motivo para constrangimento. A escritura[4]
do desconhecido é a vocação da psicanálise.
As
neurociências, a engenharia genética, os psicofármacos e as terapias rápidas
oferecem outras possibilidades que são peculiares a cada uma destas ciências. A
psicanálise oferece esta entrevista inesgotável com o desconhecido, através do
imprevisível da linguagem. Fazer o inconsciente fluir poiëticamente através
dela é o trabalho do psicanalista. A fixação de figuras é a morte da psicanálise
e, no limite, a morte da psique também.
Maria Cristina Rios Magalhães
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E-mail: crismagalhaes@uol.com.br
Bibliografia
-Freud, Sigmund. Neuroses
de transferência: uma síntese, Rio de Janeiro, Imago, 1987.
-Lach, Christopher. O mínimo eu. Sobrevivência psíquica em tempos difíceis, São Paulo,
Brasiliense, 1986.
- Malcom, Henry. Generation
of narcissus, Boston, Beacon Press, 1971.
- Mello, Humberto Haydt de. O manuscrito perdido de Freud, São Paulo, Escuta, 1987.
- Reich, Charles. The greening of America, New York, Randon House, 1970.
- Roszak, Theodore. Person/ Planet, Garden City, New York, Doubleday, 1978.
- Slater, Plilip.
Pursuit of loneliness, Boston, Beacon Press, 1970
- Slater, Plilip.
Earthwalk, Garden City, New York, Anchor Press, 1974.
- Toffler, Alvin. The third wave, New York, William Morrow, 1980.
- Wachtel, Paul. The
poverty of affluence: a psychological portrait of the american way of
life, New York, Free Press, 1983.
NOTAS
[1]Comunicação feita no Congresso O SÉCULO DA PSICANÁLISE, realizado em Salvador em outubro de 1995
*Publicado no Boletim de Novidades Pulsional, edição n°91, novembro de 1996, São Paulo e na Cliniques
Méditerranéennes, nº 57/58, Marseille, Érès, 1998.
Versão revisada.
[2]Abordaram o tema em várias situações: conversas, seminários e artigos.
[3]Ver artigo de Maria Cristina Rios Magalhães, “Transferência: transmissão de saber na psicanálise e a formação do psicanalista”, in Anuário Brasileiro de Psicanálise n°3, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995.
[4]Discuto mais amplamente esta questão em Maria Cristina Rios Magalhães, “Teôrrico na psicanálise”, pag. 105, in Caterina Koltai, (org), O Estrangeiro, São Paulo, Escuta/Fapesp, 1998.
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