Sobre
os que "moram em móvel mar": Questões em torno
da elasticidade da técnica.
Fátima Regina Flórido Cesar de
Alencastro Graça
Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP.
Professora da UNIP/SJC. Pesquisadora no Laboratório de
Psicopatologia Fundamental/UNICAMP e do Laboratório de Estudos
da Transcionalidade/PUC/SP.
Resumo
Muitos aspectos poderiam ser considerados numa reflexão sobre o que chamo de casos difíceis. Optei por discorrer sobre a contribuição de Winnicott na compreensão desses casos e algumas questões relacionadas à elasticidade da técnica. Reconhecendo os limites implicados na terminologia "caso difícil", enfatizo a necessidade de se pensar a contratransferência, assim como a técnica.
A elasticidade da técnica pensada de início apenas em relação aos "casos difíceis" é ampliada: a "técnica em si mesma" precisa ser flexível. A dupla (paciente-analista) se constitui morando em "móvel-mar".
No final do texto destaco o sentimento de estrangeiridade apresentado por tais pacientes e sua "necessidade de pertencer" (à vida e à espécie humana).
Palavras chaves
Caso-difícil, Caso-limite, borderline, técnica modificada, "holding", sentimento de estrangeiridade
Sobre os que "moram em móvel mar": Questões em torno da elasticidade da técnica.
I. Desabafo
Cansei. Desisti de tentar evitar a que até então considerava inadequada denominação de "caso difícil". Borderline, casos-limite, fronteiriços, patologias narcísicas, personalidades falso-self, "como se" etc. Verdadeiro "saco de gatos (1)" que "mal e mal" se localiza num território perdido entre a neurose e a psicose. (2)
Na verdade, é crescente o número de autores que buscam uma reflexão teórico-técnica sobre os chamados casos difíceis. Entretanto, não seria meu objetivo o levantamento desses trabalhos. É neste sentido que pretendo delimitar na medida do possível o que chamo de caso difícil (e explicar o porquê de ter optado por essa denominação). Já de início, é bom sublinhar que, nesta apresentação a teoria winnicottiana constituiu o "solo básico" de compreensão desses que "moram em móvel mar". A partir dessa "moldura maior" o pensamento de Winnicott é que as reflexões se diversificam e se aprofundam.
O que considero como definição básica desses casos corresponde ao terceiro grupo da seguinte classificação de Winnicott.
No texto "Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão dentro do setting analítico", Winnicott busca certa sistematização, agrupando os casos de acordo com o equipamento técnico que eles exigem do analista.
Num primeiro grupo estariam os pacientes que funcionam como pessoas totais e cujas dificuldades estão nas relações interpessoais. Em termos de ambiente, supõe-se uma vida familiar no período da pré-latência e um desenvolvimento satisfatório nos estádios iniciais de vida (aqui pode-se falar de Édipo e castração).
Na segunda categoria, a totalidade da personalidade ainda não foi considerada, mas encontra-se em "vias de" corresponde ao estádio de preocupação, é a conhecida posição depressiva.
No terceiro grupo estariam todos os pacientes cuja análise deve lidar com os estádios primitivos do desenvolvimento emocional, até o estabelecimento da personalidade como uma entidade e antes da aquisição do status da unidade espaço-tempo. Esta situação vai refletir diretamente no tipo de técnica requerida denominam-se manejo os procedimentos técnicos necessários nesses casos e que geralmente não coincidem com a técnica clássica comum. A doença está diretamente relacionada a um fracasso do ambiente (relação mãe-bebê) nos primeiríssimos momentos do desenvolvimento emocional.
Nesses casos, do ponto de vista clássico segundo Winnicott, não se faz análise; mas análise é principalmente oferecer um holding adequado, um cuidado suficientemente bom por parte do analista para o paciente poder evoluir do estádio de dependência absoluta até a independência.
De uma forma muito criativa e clara, o psicanalista Heitor de Macedo apresentou em uma palestra (1998) a metáfora abaixo, que corresponde à classificação proposta por Winnicott. Segundo ele, haveria três tipos de "moradas" no mundo:
Numa primeira, o sujeito vive numa casa tão confortável, tão à vontade, que recebe pessoas e as hospeda com generosidade vive de "portas abertas".
Desconfiado, o habitante do segundo tipo de morada, embora tenha uma boa casa, recebe suas visitas na porta.
No terceiro caso, o espaço é mínimo, às vezes nem espaço há. Assim, seu morador recebe suas visitas numa "casa pré-fabricada", ao lado dessa outra pequeníssima à qual se recolhe quando necessário. A "casa pré-fabricada" corresponderia ao conceito de falso self em Winnicott? No texto Os objetivos de tratamento analítico Winnicott dá mais dicas do que ele consideraria casos difíceis (que requerem modificações na técnica):
E quanto à análise modificada?
Eu me dou conta de trabalhar como um analista ao invés de realizar análise padrão quando me defronto com certas condições que aprendi a reconhecer:
a) Quando o temor da loucura domina o quadro.
b) Quando um falso self se torna bem sucedido e a fachada de sucesso, mesmo brilhante, tem de ser demolida em alguma fase para a análise ter êxito.
c) Quando, em um paciente, uma tendência anti-social, seja em forma de agressão, roubo ou ambas, é o legado de uma privação.
d) Quando não há vida cultural, somente uma realidade psíquica interna e um relacionamento com a realidade externa, estando as duas relativamente desconectadas.
e) Quando uma figura paterna ou materna doente domina o quadro (Winnicott, 1962b; p. 154)
Quando falamos de casos difíceis, obrigatoriamente, questões sobre a atuação do analista e a técnica são colocadas, dada a impossibilidade de se separar o paciente difícil das dificuldades encontradas.
De imediato, gostaria de colocar a seguinte questão: Por que difícil?
II. Paciente difícil, analista em dificuldade
Vamos ao óbvio: o caso é difícil porque traz dificuldades para o analista. O caso difícil é, antes de mais nada, difícil para o analista. Uma reflexão sobre esses casos deve passar obrigatoriamente por uma reflexão sobre a contratransferência. Per-turbações, desassossego, inquietação. Angústia, raiva. Premência em ajudar, agonia diante do pedido do paciente de alívio do sofrimento. O paciente dificulta, "bagunça o coreto-setting" do analista. A técnica clássica não dá conta de responder às suas questões. A técnica requer, portanto, elasticidade como disse Ferenczi. Salvem o caso difícil! Salvem o analista! Um analista em apuros, com dúvidas sobre sua identidade e sua atuação. Ainda faz psicanálise quando modifica o enquadre, quando se irrita ou quase chora diante de um relato dramático? Como lidar com a solicitação de ajuda tão presente nesses casos? Ou com as intensas barreiras autísticas? Como pensar uma "psicanálise terapêutica", como assim se refere Fédida?
Responde-se contratransferencialmente a um tipo de transferência não neurótica, que alguns chamam de psicótica e que eu preferiria denominar arcaica (Zygouris). É a insistência da infância, do infantil mais remoto que conduz a "ataques" a uma (determinada) posição do analista (4). Uma regressão ou necessidade de regressão determina uma demanda muito específica à "personalidade do analista em sua contratransferência" (5). Para Khan, eis a pergunta básica que o analista precisa fazer, nesse momento, a si mesmo: "Qual é a necessidade do paciente agora, e de quem?" (6).
Aqui entra o que Winnicott chama de análise modificada, e Fédida de psicoterapia. O manejo, o oferecimento de holding são as respostas requisitadas.
O manejo da regressão corresponderia segundo Winnicott ao provimento da adaptação ambiental que faltou ao paciente em seu processo de desenvolvimento.
Quando há um ego intacto, o setting da análise não é (tão) importante em comparação com o trabalho interpretativo. Em outros casos, em que o ego ainda não se desenvolveu assim o falso self oculta e protege o verdadeiro o setting se torna mais importante que a interpretação (7). Setting para Winnicott, vale dizer, corresponde "à soma de todos os detalhes do manejo" (8).
Tal trabalho exige muito do analista porque é necessário ter sensibilidade para as necessidades, provendo um setting adequado. E como disse Winnicott, o analista "não é afinal, (embora muitos acreditem!) a mãe natural do paciente!" (9).
Outra grande dificuldade deriva do fato de que, em determinadas fases, o que se chama resistência no trabalho a transferência negativa indica uma falha do analista. A resistência persiste até que o analista descubra o erro e responsabilize-se por ele: uma análise fracassada é uma falha, não do paciente, mas do analista.
Se o paciente difícil precisa ser atendido em suas necessidades, o analista precisa identificá-las apropriadamente, não confundindo-as com "dar satisfações". Afirma Winnicott:
No tipo de caso de que estou falando nunca se trata de dar satisfações, à maneira ordinária de sucumbir a uma sedução.
Aqui vale uma digressão.
Uma tentativa atual parece ser a de uma "sentimentalização" da devoção necessária junto a um caso difícil. O paciente com seu sofrimento agudo e pedido desesperado de ajuda é capaz de "acionar armadilhas contratransferenciais". Aprisionado em algum "ponto cego", o analista pode equivocadamente ocupar um lugar de heroísmo e onipotência "eu vou salvá-lo!" acreditando mesmo que é o destinatário do pedido do paciente (é e não é, na verdade!). A devoção aqui é equivalente a uma reposta narcísica e onipotente. Se a pessoa real do analista ("a humanidade") é requisitada nesses casos não deve ser via um "alargamento egóico" do próprio analista, mas pela necessidade do paciente. Assistimos aqui a uma série de paradoxos: o analista precisa estar centrado (em seu self) e des-centrado de seu narcisismo; atento à alteridade ao mesmo tempo.
Portanto o manejo não é uma questão simples. Precisamos "desbanalizar" com rigor a noção de "holding" corrente em nossos dias.
III. Do sentir-se estrangeiro e da necessidade de pertencer
O sentir-se "esquisito", "complicado", de muitos de nossos pacientes nos comunica um sentimento de profunda solidão e a necessidade de pertencer à espécie humana, à vida e ao tempo presente. É a relação com o analista que possibilitará a experiência inédita do "pertencer". "Pertencer é viver" (10), já nos ensinou Clarice Lispector.
Assim como o olhar da mãe é fundamental para o reconhecimento do ser do bebê (vide texto de Winnicott sobre o papel do espelho), considero que a primeira condição para a experiência do ser e de pertencer deve ser o olhar do analista: um olhar que reconheça a gravidade/intensidade do sofrimento, mas não se assombre, não "psicopatologize" e, dessa forma, "aborte" o gesto humano que está contido num sintoma. Deve ser um olhar que não "persiga" a criatividade do paciente presente na linguagem do sintoma.
Uma de minhas pacientes, Adriana me conta (com muita vergonha) que quando criança adorava cavalos, via filmes de cavalos inúmeras vezes e depois fazia movimentos e relinchos numa imitação quase perfeita. Conversamos sobre o que antes era "esquisitice" e agora pode ser compreendido. Lembrei-me também da bela história de Aisha, paciente de Khan que lhe disse: "Como você sabe que sou uma égua indomável e caprichosa? Meu pai sempre me chamou assim" (11).
A expressão "móvel-mar" que uso no título do presente trabalho, foi retirada de um poema traduzido por Pound, que comunica com muita eloqüência este sentimento de não pertencimento, de "precariedade existencial" desses pacientes:
De o Navegante
[...] Nenhum teto
Protege o navegante ao mar entregue.
É o que não sabe o que vai em vida mansa,
Rico e risonho, os pés na terra estável,
Enquanto, meio morto, mourejando,
Eu moro em móvel mar (12)
O poema fala de duas condições diferentes daqueles que vivem em terra firme e daqueles, navegantes, que "moram em móvel-mar". É interessante pensarmos o poema, como uma metáfora capaz de expressar as diferenças entre as pessoas tal como são apontadas por Winnicott:
[...] Existem dois tipos de seres humanos, quais sejam, aqueles que não têm consigo uma experiência significante de colapso mental na primeiríssima infância e aqueles que a têm, e que, portanto, dela precisam fugir, flertar com ela, temê-la e, até certo ponto, estar sempre preocupados com sua ameaça. Pode-se dizer, e com verdade, que isto não é justo. (13)
Existe uma diferença! Winnicott confirma a intuição ou percepção de muitos pacientes a respeito de sua condição psicótica ou borderline. São os que "moram em móvel mar" condição diversa dos que vivem em "vida mansa, tendo os pés na terra estável".
A luta travada por todos entre a saúde mental e a doença é dramática para alguns para aqueles que, vivem "não um dia-a-dia, mas uma vida-a-vida" (14). Ao lado de uma certa possibilidade de maior riqueza de experiências emocionais existe um risco real de loucura e morte. A grande questão aqui é o embate entre ser e não ser, entre viver e morrer, entre a continuidade e a descontinuidade do existir. Se quando nascemos somos atravessados pelos enigmas de existência (Safra), o caso limite nos interpela diretamente, à flor de sua pele, em sua e nossa "carne viva" a respeito das condições do viver humano. E ainda, nos arremessa (pois há vocábulo mais preciso) ao questionamento daquilo que chamamos de técnica e do que é ser e se manter analista.
E aqui, situamo-nos mais e mais no território da ética, digna morada, terra mãe do existir, do conviver e do cuidado que são necessários ao despertar do humano. Ah! Somos então "all the lonely people" moradores em móvel-mar? Mas, estaremos todos no mesmo barco? Neste momento, sou conduzida pela letra (com direito à melodia) da música Lanterna dos afogados:
Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar
Há uma luz no túnel
Dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar
Eu tô na lanterna dos afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar (Lanterna dos Afogados, Herbert Vianna)
Digo adeus, por ora, citando Clarice Lispector, companheira minha em andanças e perdições, acadêmicas e não acadêmicas, clínicas e existenciais; ela também, decerto, moradora em "móvel-mar".
Sem nosso sentido humano
Como seriam as coisas e as pessoas antes que lhes tivéssemos dado o sentido de nossa esperança e visão humanas? Devia ser terrível. Chovia, as coisas se ensopavam sozinhas e secavam, e depois ardiam ao sol e se crestavam em poeira. Sem dar ao mundo o nosso sentido humano, como me assusto. Tenho medo da chuva, quando a separo da cidade e dos guarda-chuvas abertos, e dos campos se embebendo de água. (Lispector, 1967-73; p. 216)
NOTAS
Perdoem-me a expressão por demais coloquial!
Winnicott em seu importante texto "A psicologia da loucura", distingue a loucura que se apresenta no caso limítrofe da loucura do caso de colapso total (Winnicott, 1965; p. 96).
Expressão de Fédida.
Como ressalta Masud Khan, contratransferência não significa aqui a "transferência conflitual inconsciente do analista, mas sim a sensibilidade total do analista em relação ao paciente; é mais do que um simples rapport intelectual e compreensão" (1960; p. 170).
Khan, 1960; p. 171.
Idem.
Winnicott, 1955-56; p. 486.
Idem.
Ibidem, p. 488.
Lispector, 1967-73; p. 111.
Khan, 1987; p. 216.
Pound, 1985; p. 65.
Winnicott, 1965; p. 96.
Lispector, 1967-73; p. 216.
Referências Bibliográficas
KHAN, M. (1960). "Regressão e integração no setting analítico. Ensaio sobre os aspectos transferenciais e contratransferenciais desses fenômenos" In Psicanálise: Teoria técnica e casos clínicos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984.
lispector, c. (1967-73). A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
Pound, E. Poesia. São Paulo: Hucitec, 1985.
SEARLES, F. H. ([1979). "Countertransference as a path to understanding and helping". In: My work with boderline patients. London: Jason Aronson Inc, 1986.
Winnicott, D. W. (1955-56). "Variedades clínicas da transferência". In: Op. cit.
_______________. (1964). "A importância do setting no encontro com a regressão na psicanálise". In Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
_______________. (1965). "A psicologia da loucura". In Op. cit.
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