Sobre pais e irmãos
Mazelas da democracia no Brasil(1)

Luís Claudio Figueiredo

Considerações preliminares.

A mobilização dos conceitos psicanalíticos para a análise de fenômenos e processos sociais e históricos concretos deve caminhar com cautela. Tal como ocorre na clínica, nada mais empobrecedor e inútil do que a aplicação desses conceitos à realidade de forma a transformá-la em mera ilustração do que a teoria, supostamente, já sabe. Por outro lado, o rigor conceitual torna-se tão mais importante quanto mais complexa e sugestiva é a realidade em exame. Essa complexidade e essa riqueza podem nos encantar e conduzir a apreciações meramente impressionistas. Sabemos, porém, o quanto estas "impressões" estarão inevitavelmente saturadas pelos nossos preconceitos e viéses, por nossa antipatias e simpatias. O trabalho analítico, teoricamente calçado, deverá, entre outras coisas nos levar para além dos discursos ideológicos.

Se o nosso tema neste trabalho são as mazelas da democracia no Brasil e se procuraremos rastrear as vicissitudes de nossa vida democrática na dificuldade de instalar entre nós modos fraternos de convivência, sem dúvida poderemos encontrar na psicanálise inúmeros elementos relevantes, principalmente nas diversas obras de Freud em que são focalizadas as dimensões sociais da existência. Contudo, será necessário saber usar os conceitos e modelos psicanalíticos de modo a abrir e estruturar o espaço da análise sem ocupá-lo e preenchê-lo com a própria teoria, mas também sem deixá-lo sem limites e sem articulação interna. A estrutura do texto que se segue procurou atender a estes requisitos. Começaremos tratando da questão da paternidade e da fraternidade no plano mais abstrato e universal, o que denominamos de "cenário mítico". Em seguida, ainda nos mantendo no plano da teoria, focalizaremos alguns processos sociais na sua eventual concretude histórica - "os cenários históricos". Só então entraremos, munidos das orientações provenientes da teoria mas com o máximo de liberdade e com a maior proximidade em relação aos fenômenos, na consideração do Brasil, de nossa vida social e política, de nossas mazelas.

O texto neste momento, como se verá, muda de clima e muda de ritmo. Essa heterogeneidade estilística, porém, nos parece corresponder a dois momentos efetivamente distintos e dialeticamente articulados do trabalho. A leitura das obras "sócio-culturais de Freud" aqui empreendida se justifica pela necessidade de elaborarmos um quadro de referência para a interpretação da democracia brasileira, considerando-se, de outro lado, que por essa vida "democrática" somos pessoalmente afetados antes mesmo de qualquer reflexão teórica. Nessa medida, iremos a Freud desde uma experiência e um ponto de vista historicamente situado. Em contrapartida, uma certa compreensão da experiência brasileira de algum modo foi se formando a partir da convivência com os textos freudianos antes mesmo que eles fossem submetidos a uma leitura mais meticulosa e focal. No entanto, apesar desta interpenetração dos dois momentos, o que impediria que as duas partes deste trabalho fossem publicadas separadamente, eles são, como dissemos acima, bastante distintos no tom e no andamento. Contamos com a compreensão do leitor: que os mais interessados na democracia brasileira disponham-se a percorrer a primeira parte, mais teórica, e que os mais interessados em psicanálise disponham-se a avaliar a pertinência das leituras aqui desenvolvidas à luz do uso que delas faremos na análise do Brasil.

O cenário mítico. (2)

Comecemos no cenário mítico. Suponhamos que há "leis" na natureza, entre as quais a "lei do mais forte", aquela que regulava a vida comunitária e intercomunitária nos tempos primordiais da horda primitiva, conforme, baseado em Darwin, nos ensina Freud em Totem e Tabu (1913). Por esta imprescindível regulação 'natural' pagava-se, contudo, um preço elevado: o "pai" da horda primitiva era uma figura do excesso que monopolizava a potência da comunidade usando-a a seu bel prazer e atirando os demais - fêmeas e prole - à impotência, à exclusão, à marginalização e, eventualmente, à morte. Na verdade, mais que um pai - o que supõe o reconhecimento dos filhos - tratava-se de um chefe que se impunha pela força; por isso usarei aspas ao me referir a esta figura mítica, o "pai" primordial. As garantias que oferecia - uma certa e sem dúvida indispensável proteção, um território limitado e defendido, uma hierarquia, uma escala de valores - geravam elas mesmas as forças da desagregação e da instabilidade. Porque são estas forças naturalmente geradas como o que se coloca fora e contra o sistema natural de domínio que poderão acumular-se até o ponto de impor ao "pai"/chefe uma derrota - a morte. A "lei da natureza" gera e alimenta o que lhe escapa e o que lhe contesta o domínio. Um domínio, por sinal, sujeito também às outras vicissitudes naturais pois que este "pai", ser da natureza, independentemente de como lhe tratem os "filhos", adoece e morre. A "lei da natureza" pede um suplemento.

O que, idealmente, pode vir depois - a instalação de uma solidariedade fraterna,

baseada nas renúncias coletivas ao excesso (a interdição do incesto, da rapina, do canibalismo e do assassinato), ou seja, a cultura ou civilização - será a condição de uma procura cotidiana e generalizada das felicidades possíveis no campo mais resguardado da convivência socialmente instituída.

A civilização fará o possível para mascarar suas origens no crime. Uma das formas de se ocultar esta origem do laço social no crime coletivo do parricídio será a da criação de narrativas míticas em que a coletividade criminosa é substituída pelo herói individual capaz de realizar a proeza de dar ao seu povo - seus irmãos - a experiência de liberdade sem onerá-los com a culpa. Também deverá ser o mais possível esquecida a rivalidade entre os irmãos que preexistia ao assassinato mas era amortecida ou dissimulada pela onipotência paterna. Pode-se imaginar que diante da onipotência paterna não restava à prole outra saída que uma certa união proto-fraterna - a união dos fracos e excluídos - e que será exatamente a partir daí que o assassinato se tornou possível. Contudo, a rivalidade entre irmãos potencializa-se com a morte do "pai" e a solução pela via da renúncia coletiva aos excessos pulsionais só se torna aceitável porque na sua ausência se instalaria o caos e a luta de todos contra todos. Os discursos e práticas civilizatórios em que a solidariedade fraterna é sempre realçada (formações reativas) tentam escamotear as origens torpes e agressivas das éticas da solidariedade.

Na verdade, como se sabe, nem o parricídio e a culpa pelo crime, nem a rivalidade fraterna, nem, o que é mais decisivo, a persistência da inveja da onipotência paterna serão passíveis de uma perfeita metabolização. Este será o dote, a herança de cada um de nós da qual. nunca nos poderemos descartar definitivamente.

Os mais elevados valores, os ideais, as normas e as leis que uma cultura oferece e impõe a todos como condições e exigências de sociabilidade tentam, em parte, conservar o que havia de vigoroso, protetor e reassegurador no pai assassinado; em parte, tentam resgatar, mas de forma mais moderada e menos brutal, o que havia de restrições necessárias no domínio ilimitado e despótico daquele "pai"; de outra parte, deveriam ser, também e simultaneamente, a tentativa de tirá-lo definitivamente do caminho, de enterrá-lo bem fundo para que ele, jazendo em paz, reine em espírito mas jamais em presença. É preciso recordá-lo e reverenciá-lo para que, aliviados da culpa pelo crime, possamos adquirir a convicção de que jamais vamos tê-lo novamente em presença. De que jamais iremos reencontrá-lo naquela forma impositiva e excessiva de presença que configura a ameaça de aniquilamento para a prole e de exploração para as fêmeas. Parafraseando o que diziam certos sherifes acerca dos índios no velho Oeste, "pai bom, é o pai morto" ou, pelo menos, o que se deixa morrer em pessoa para sobreviver de forma atenuada e sublimada na memória reverente dos filhos. Na verdade, é somente sob esta forma atenuada que o chefe da horda - agora assassinado - se transforma efetivamente em pai de filhos que o reconhecem e reverenciam. Correlativamente, é somente agora - no seio de uma fraternidade que herda algumas das funções estruturantes do "poder paterno" ao mesmo tempo que impõe ao pai uma certa ausência - que os filhos conquistam uma verdadeira filiação.

No cenário mítico podem se reconhecer com bastante nitidez as linhas organizadoras seja dos processos de constituição subjetiva, seja de organização social.

Do que precisamos como grupo e como indivíduos: do pai como lembrança e nostalgia e nunca como presença plena e avassaladora. Do pai como alvo de um apelo de limite e proteção, de demarcação de território e separação hierárquica dos lugares, de estabelecimento dos valores e das regras para as trocas e mesmo para as dádivas (porque a "generosidade" - esta bela virtude "materna" - quando excessiva também costuma ser letal), mas nunca como o todo-poderoso senhor dos entes, soberano sobre as coisas, os bichos, as plantas, e as pessoas, acima de qualquer Lei. Este precisa morrer para que o outro seja deixado em reserva e, nesta condição, preservado.

Falamos acima de como a função do pai deve ser, entre outras, a de restringir o campo de operação das dádivas, da "generosidade", e sobre isso talvez convenha uma pequena digressão. Ocorre que as virtude "maternas", aqui genericamente denominadas de "generosidade", contém em si uma forte arbitrariedade e por isso coloco o termo entre aspas: a mesma natureza que dá com prodigalidade, pode, segundo suas "leis", que podem nos soar, contudo, como caprichos e maldades, deixar-nos a seco. Aliás, a duplicidade da "mãe", que ora é presença, seio farto e até desmesuradamente farto, ora é ausência e secura foi, por sinal, muito bem teorizada por Melanie Klein. Essa potência materna em sua desmesura pode muito bem ter sido um contrapeso necessário ao "pai" despótico e vice-versa. Esta mãe-natureza oferece um mínimo de proteção aos filhos pequenos e desamparados diante do poder avassalador do "pai" primordial. No entanto, com o assassinato do "pai" primordial, a mãe sobrevive e tende a se tornar (pelo menos é a reconstrução freudiana da história da humanidade) um pólo alternativo de organização psíquica e social. Mas, neste caso, a "generosidade" deve, também ela, ser contida para não esvaziar excessivamente a força, já atenuada, do pai na cultura. Na ausência da contenção, o amor "generoso" da mãe pode se converter em um dos principais desagregadores da vida social e da vida mental dos indivíduos. A presença do pai na cultura, como destinatário do apelo dos filhos, é o que se traduz como força dos ideais, valores, normas e leis, indispensáveis para a constituição saudável do psiquismo e esta forma de presença - uma presença reservada -, como veremos adiante, está sujeita a uma série de vicissitudes. A incontinência da "generosidade" materna natural poria em risco este modo de estar presente e pode, paradoxalmente, vir a ser um dos elementos que reforçam e apressam as tentativas de trazer o "pai" de volta à presença plena, com toda a sua força e poder, como único meio de defesa contra a "generosidade" natural em sua angustiante arbitrariedade.

Assim como a horda primitiva nos apresentava os personagens de um cenário mítico - o "pai" e a mãe primordiais -, a fraternidade que a sucede, na sua idealidade proto e ultra-democrática também precisa ser entendida neste mesmo plano. Claramente, o "pai" da horda faz parte de um passado irrecuperável, o da submissão a um autoritarismo e a uma onipotência ilimitados que, em compensação, pode ser sonhado como um passado de segurança e de garantia absolutas sob a guarda onipresente do "pai". Em contrapartida, os irmãos solidários da fraternidade plena, fazem parte de uma dimensão inalcançável do "nosso futuro" , um futuro no qual se poderia prescindir por completo de qualquer pai ou de qualquer substituto seu. No primeiro caso, trata-se de uma origem mítica em que terror e proteção se reúnem na forma de uma absoluta tutela; no segundo caso, trata-se de um destino, também mítico, de justiça, equanimidade, liberdade e autonomia, o que é no fundo uma ficção utópica, iluminista e, em última instância, anarquista: uma fraternidade que prescinde de qualquer figura de pai, a plena maioridade dos filhos.

Ambos os momentos míticos estão, efetivamente, fora dos tempos históricos, tanto na mais remota pré-história, como na mais longínqua pós-história. Ambos, contudo, estão de alguma forma inscritos em nosso presente psíquico, operantes e vivos nas formas concretas e particulares de constituição subjetiva dos indivíduos e das sociedades tais como nós os conhecemos. Poderíamos dizer que as histórias sociais, políticas e subjetivas são em grande parte movidas pelas tensões que estes dois pólos criam no presente psíquico dos indivíduos e dos grupos. As diversas configurações sócio-políticas representam diferentes modos de composição da duplicidade acima mencionada. Nesta medida, estes momentos míticos não devem ser entendidos necessariamente como se referindo a episódios "reais" passados ou futuros da humanidade e não é nestes termos que eles melhor servem à compreensão psicanalítica do homem e das sociedades humanas.(3) O que mais nos importa é que eles dizem respeito ao estranho e problemático presente do nosso psiquismo, um presente constantemente instabilizado por aquelas forças contraditórias: a da regressão à dupla "proteção-terror" sob a égide do pátrio poder e a da autonomia solidária que se conquista na e pela fraternidade. Forças que estão sempre em atividade, mas cujos pesos e impactos variam nas diferentes conjunturas psíquicas e sociais ao longo da história.

Os cenários históricos:

A cultura, suplemento da natureza, tem sua razão de ser no conservá-la, mas a conserva mediante todos os expedientes que procuram negar e atenuar a presença excessiva da natureza, retirar da natureza e de suas leis impiedosas o que nelas atenta contra a própria vida. Sabemos, todavia, que estes expedientes produzem sistematicamente o que lhes escapa e o que lhes vêm contestar o domínio. Assim como a "lei do mais forte" gerava a conspiração dos fracos, a conservação do pai assassinado na cultura produz novas questões endereçadas à própria cultura.

Se em Totem e tabu Freud nos conduzia às origens míticas do psiquismo, será apenas alguns anos depois, em Psicologia das massas e análise do eu (1921) e, já no fim da vida, em Moisés e o monoteísmo (1939) que ele focalizará problemas correlatos mas já agora no terreno histórico, seja o das vicissitudes concretas de organizações sociais determinadas (ainda que em um plano bastante abstrato, o exército e a igreja), seja no da saga de um povo e de uma religião, os Israelitas. No capítulo X do livro sobre as massas e grupos e em diversos capítulos do livro sobre Moisés Freud retoma o contato com Totem e tabu. Nestes dois livros tanto se elaboraram novos detalhes do cenário mítico, como nos é afirmado que, embora aquela narrativa - o assassinato do chefe da horda e a constituição da irmandade de herdeiros - não passasse de uma história entre as outras que se podem contar do passado imemorial da espécie, ela contém alguma verdade profunda acerca da nossa herança genética e cultural e da nossa constituição. Assim sendo, pode nos ajudar a entender formas de organização social bem conhecidas nossas.

O pai, recordemos, está conservado duplamente em todas as sociedades que sucedem seu assassinato: de uma lado, há o pai reservado na forma sublimada e purificada da ética, da solidariedade fraterna baseada na renúncia universal aos excessos e, consequentemente, no compartilhar de uma quota universal de mal-estar entre os civilizados. De outro, o pai é, mais ainda, conservado na forma enterrada e fantasmática, e por isso mesmo poderosa, da onipotência reprimida. Ora, sabemos que a repressão é um expediente de conservação muito mais eficaz que qualquer outro.

Valores, ideais, normas e leis sofrem a usura do tempo, o gasto dos usos e abusos, o desgaste proveniente do confronto, tantas vezes decepcionante, com as experiências vividas. As esperanças, por exemplo, de que minha renúncia será contrabalançada pelas renúncias alheias e de que ninguém alcançará a suprema felicidade estão permanentemente sendo minadas, seja pelas realidade das desigualdades sociais, seja pelas experiências persistentes de insatisfação e incompletude que atiçam em cada um de nós a crença de que outros obtiveram o que nos é negado. Tudo isso milita contra a durabilidade de nossa confiança na civilização, na cultura, nas suas leis e nas renúncias pulsionais a que nos obrigamos. Há, também, experiências angustiantes de desamparo mesmo no seio da irmandade: as doenças individuais ou coletivas (pestes, epidemias), as catástrofes naturais, a morte atingem cada indivíduo e atingem seu grupo de modos violentos e arbitrários, indo muito além do que os vínculos sociais entre irmãos podem suportar. A mãe natureza pode-se tornar madrasta e impiedosa.

Já o pai enterrado - a onipotência reprimida -, ao contrário, conserva-se intacto e cresce em poder e fascínio com a passagem do tempo. Aliás, em "A propósito de um caso de neurosis obsesiva" (Obras Completas, vol. X) Freud relata como, em conversa com o paciente, explicou-lhe que "toda coisa consciente estava sujeita a um processo de desgaste, ao passo que aquilo que era inconsciente era relativamente imutável", dando como exemplo ilustrativo o fato de que as ruínas soterradas de Pompéia conservaram-se melhor do que tudo que havia escapado às lavas do Vesúvio. Enterrar é conservar, é preservar, e só quando efetivamente se desenterram as antiguidades, elas começam a ser destruídas. No caso, o soterrado/reprimido/conservado era exatamente uma figura de pai onipotente que se opunha às exigências pulsionais do menino e que veio a reaparecer sob a forma da crueldade e da tirania super-egóica.

Assim sendo, a presença diminuída e reservada do pai nos valores, ideais, normas e leis ciclicamente se revela, de tempos em tempos, incapaz de competir com a nostalgia da presença plena do "pai" tal como fantasiada a partir da sua condição de "enterrado vivo". O apelo, a lembrança e a nostalgia do pai já não se podem mais contentar com o que a cultura oferece e desencadeiam o esforço de ir, para além da cultura, na direção de uma reaproximação com o "pai" ele mesmo, com o "pai" no seu soberano despotismo, com o chefe da horda.

Cabe aqui uma pequena digressão. Uma certa decepção com as promessas da cultura e com as restrições que ela impõe pode gerar, de início, um recrudescimento das esperanças na "generosidade" materna, das crenças na "generosidade natural", reeditando-se no plano dos acontecimentos históricos, o que, no cenário mítico sucedera ao assassinato do "pai" primordial: a supervalorização do materno e o matriarcado. A incontinência desta "generosidade" poderá, por seu turno, debilitar ainda mais a força, já atenuada, do pai na cultura, conduzindo a sociedade, novamente, às condições de barbárie. Os sonhos nostálgicos de retorno à natureza acalentados pelos românticos do século XVIII e XIX, por exemplo, parecem caracterizar um momento bem definido deste processo, o momento que antecede um novo assassinato. Haveria, assim, um pós-romantismo que é, na verdade, um hiper e ultra romantismo quando se anuncia, finalmente e novamente, a morte do pai (a morte de Deus, de todos os valores e ideais comunitários e de todas as autoridades que falam em seu nome). Sugiro, aliás, que se pense o Processo do Romantismo, de Hölderlin a Nietzsche, a partir destas indicações.

A cultura engendra assim, pelo que promete e pelo que simultaneamente frustra e subtrai, pela ambivalência diante do pai, um apelo de suplemento, uma ânsia de retorno à presença viva, natural e plena do "pai", o grande protetor, o "Salvador da Pátria". É o "retorno do reprimido". Mesmo que este movimento regressivo não se possa jamais consumar no reencontro do "pai" primordial - que por definição está aquém da história -, os grupos e "massas" tendem a se organizar em torno de uma figura paterna de destaque que ocupe um lugar semelhante. Ora este movimento regressivo de re-posição do "pai" no seu velho trono está sempre pré-condicionado por dois aspectos que cabe aqui rememorar.

Lembremo-nos que na formação da fraternidade intervieram alguns afetos muito perturbadores e que jamais são de todo eliminados: invejas e ciúmes entre irmãos formam parte da base afetiva sobre a qual se construiu e se mantém a renúncia coletiva à posição de plenitude de que gozava o pai assassinado. Um certo senso e uma exigência de justiça nasceram e renascem, assim, da necessidade de controlar as rivalidades fraternas. É aquela parte da ética que se cria e justifica em termos bastante racionais e laicos: é necessário regular as relações entre os indivíduos e entre eles e a coletividade para que não se destruam. Mas quando as promessas da civilização são corroídas e perdem algo da sua capacidade vinculatória, quando a solidariedade entra em crise, haverá em todos, mais expressamente em alguns, dormitando ou já em efervescência, movimentos afetivos muito fortes nos quais ressurgem as fantasias onipotentes agora potencializadas pelas rivalidades. Diante destas emergências pulsionais, como seria de se esperar, a ética racional e laica tende a se mostrar frágil e impotente.

Um segundo aspecto, também já mencionado, diz respeito a uma das estratégias de ocultação do crime coletivo: a atribuição do assassinato liberador a um herói individual. Ora, sempre haverá alguém disposto a representar a farsa deste herói e sempre haverá entre os irmãos uma certa necessidade de projetar neste personagem alguns conteúdos mais explosivos de agressividade e culpa.

A maior parte do tempo existimos no seio de grupos e organizações relativamente estáveis em que um certo equilíbrio se mantém entre a presença do pai - representado por alguma figura de autoridade - e os laços fraternos - encarnados em alguma forma de solidariedade. É importante reconhecer como estes dois eixos - o eixo horizontal das relações fraternas e o eixo vertical da filiação - se entrelaçam necessariamente.

Sem uma certa solidariedade fraterna não se sustentariam certas crenças e esperanças consensuais, ou seja, certos movimentos afetivos de caráter libidinoso dirigidas aos poderosos, vale dizer, não se constituiriam e sustentariam autoridades legítimas. Uma autoridade deve ser amada e deve ser amada por muitos para que seu poder cresça e se implante solidamente. Isto significa, contudo, que mesmo no bojo de um autoritarismo explícito já existem e operam elementos de índole "democrática", isto é, uma certa exigência e expectativa de justiça igualitária e de direito legal, se não neste mundo e neste tempo, em algum tempo e em alguma parte, seja no céu, seja no inferno. Na medida em que toda vida social, mesmo sob o totalitarismo despótico, depende de alguma forma de solidariedade fraterna, a confraternização democrática já pertence a seus horizontes de possibilidade. Em outras palavras, o despotismo autoritário abriga em si mesmo uma tendência à própria negação, um apelo de democracia. Considerando os processos na sua integralidade, caberia dizer: o eixo horizontal é indispensável para a constituição da verticalidade e, embora nos cenários míticos, possa-se falar em precedência da verticalidade nos termos de um poder que desce sobre o grupo desde as alturas em que se coloca o chefe, nos cenários históricos o eixo horizontal é tão originário quanto o outro. De fato, mesmo no plano do mito, é necessário considerar, como fizemos anteriormente, que é a proto-fraternidade dos excluídos que permite o assassinato fundante do chefe onipotente e só na posterioridade deste crime e na instituição das novas regras de convivência civilizada o chefe morto é efetivamente assumido como pai. Na formação efetiva dos grupos e massas históricos, mais ainda, é visível a dependência do eixo vertical em relação ao horizontal.

Por outro lado, os vínculos fraternos não se sustentariam sem uma ancoragem em e sem se nutrir de uma remissão ao pai na sua dupla condição: o pai da cultura, um pai ausente mas preservado na forma de ideais, valores e regras de convivência coletiva interiorizadas, e o pai onipotente, mais que preservado, reprimido e consagrado na forma do ancestral morto. Este segundo aspecto é, segundo Freud, o que, no seio da ética, nos aparece como grandioso e superior, um miolo de índole religiosa no terreno da ética . Por isso, mesmo no bojo das fraternidades democráticas mais bem instaladas o movimento regressivo está sempre pronto para eclodir e certas condições históricas podem ser muito propícias a esta eclosão. Não há, segundo o pensamento psicanalítico, uma democracia tão consolidada que esteja livre desta ameaça porque sua consolidação depende de formas de presença do pai que, se dão vigor aos laços filiais, constituem-se também em um foco permanente de riscos para a democracia. Riscos que crescem quando a presença reservada do pai na cultura parece se tornar insuficiente para a própria manutenção da solidariedade fraterna (o que os sociológos chamam de "anomia"), situação em que o retorno do "pai" em sua plena presença vem a ser exigida pelos irmãos desamparados. Em outras palavras: uma fraternidade plena em que se prescindisse totalmente da referência ao eixo vertical - um regime anárquico de sociabilidade e uma ética puramente laica e pragmática - parece da ordem da utopia, um dos sonhos mais queridos da Idade Moderna. O que não exclui, é claro, a luta pela democracia e pelo exercício da autonomia e da generosidade entre irmãos (ela também inscrita em nosso psiquismo), mas que assinala os limites e a interminabilidade desta luta.

Diga-se de passagem que o retorno do "pai" em sua plena potência quando chega a ocorrer, mesmo que de forma aproximada e incompleta, pode significar uma precipitação no abismo, uma entrada nas trevas e na selvageria, como bem o demonstram os episódios totalitários na história recente de nossa civilização (a URSS de Stalin, a Alemanha de Hitler etc). De fato, quando este retorno se acerca a uma consumação, o pai como lembrança, nostalgia e alvo de um apelo é substituído por uma figura que, envergando a fantasia de "pai" que a coletividade desamparada lhe oferece, não pode deixar de ser um impostor, ou seja, na verdade, um filho - um ex-irmão insubmisso - que se pretende não-castrado e que se dispõe a ocupar o lugar mítico do herói. Trata-se, portanto, de um perigoso impostor, talvez ele próprio parcialmente ignorando a impostura em que está implicado mas que, movido por uma inveja não mitigada da onipotência paterna e pela rivalidade exacerbada com os irmãos empenha-se em uma imitação grotesca e caricata do que seria aquela potência máxima. O mito se repete como farsa e com ela se confunde. Não é casual que os grandes ditadores sejam figuras grotescas e histriônicas, personagens de ópera bufa não fora sua extrema periculosidade. Será preciso, mais uma vez, o assassinato, com a atenuante de que agora pode-se vir a saber logo depois que o morto não era o "pai" ele mesmo, mas apenas um louco que havia aceito o papel. E então, refeitos do crime e do luto, podemos, quem sabe, colocar novamente o pai assassinado no lugar de onde não deveria ter saído: "além do homem", na distância em que, mais do que apenas alvo de um apelo que lhes endereçam os filhos irmanados, ele, também, é apenas um apelo aos filhos, sem se dar, contudo, plenamente a ver e a conhecer em pessoa. Neste lugar ele se conserva num certo anonimato e remete-se aos filhos apenas na forma dos ideais, das metas e das normas e exigências éticas que alcançam a todos e a todos obrigam de forma equânime e impessoal.(4)

A questão é: como manter na relação com o pai a justa-distância? Como sustentar o pai como destinatário e como remetente de um apelo? Como mantê-lo na distância justa que a ambivalência diante dele solicita? Como sustentar este luto, jamais plenamente consumado? Como renunciar a trazer o "pai" para a presença plena e opressiva nos momentos em que ele parece nos escapar por completo deixando-nos entregues à loucura e ao desespero - loucura que se configura como uma ilimitação do amor – e do ódio - materno - e como continuar confiando nele e a persegui-lo quando ele em sua presença diminuída nos parece reduzido a uma impotência ignominiosa? Como impedir que um irmão se alce à posição de onipotência? Como prescindir destes simulacros e destes loucos? Como sustentar uma fraternidade apesar de tantas forças contrárias que a atacam de fora e a minam de dentro?

Estas são questões universais que decidem os destinos das sociedades humanas em seus processos de construção e destruição civilizatória. Estas questões, porém, tornam-se mais agudas e mais urgentes quando as promessas da cultura parecem esbarrar rapidamente em desmentidos incontornáveis. É o que ocorre quando os ganhos em segurança e felicidade que a cultura promete, em troca de uma certa repressão das exigências pulsionais e ao preço de um certo mal-estar bem socializado, revelam-se continuamente precários e ilusórios, quando o cotidiano nos oferece um panorama em que o mal estar da repressão não é recompensado enquanto que, ao contrário, a expressão brutal da cupidez e da agressividade parecem, isto sim, trazer inúmeras vantagens e vantagens muito imediatas.

Brasil: natureza e poder.

Gostaria de trazer para perto de nós estas questões tomando apoio em duas plataformas: nossa posição periférica no seio do Ocidente e nossa ambivalência diante das metrópoles e eixos culturais da nossa civilização.

Em termos econômicos, políticos e culturais fomos e somos reconhecidos como destinados a ocupar uma posição periférica, exótica e excêntrica no campo da cultura ocidental na qual nos formamos como Colônia e depois como Nação. Isto significou uma profunda identificação pelo avesso, como se fôssemos e devêssemos ser fundamentalmente o espaço privilegiado da anti-cultura, da natureza, do retorno a ela, do reencontro e da reconciliação com ela. A natureza generosa ("berço esplêndido"), a terra-mãe gentil, a cordialidade, as artes femininas da cozinha e da sedução, as belezas e fecundidades naturais e maternas - "nossos bosques têm mais flores", nossas praias mais amores, nossa preguiça e nossas mestiças -, foram ao longo dos tempos, com algumas variações mas com uma notável perseverança, marcando um dos eixos sobre os quais nos damos a conhecer e nos reconhecemos. Fomos e continuamos sendo uma das terras de eleição das utopias nostálgicas de todos os romantismos, pré-modernos, modernos e pós-modernos. Não é casual, mas é bastante irônico, que a literatura e a música românticas tenham sido elementos decisivos para a criação de uma "cultura brasileira" e de uma "identidade nacional" na qual retomávamos por nossa conta o destino a que fôramos lançados, o de representar a natureza em todo seu esplendor, em sua pujança e fascinante ilicitude. A letra do Hino Nacional expressa hiperbolicamente esta poderosa vertente cultural. Os requebros da "baiana" Carmen Miranda - com seu turbante repleto das frutas da terra, suas miçangas e balangandãs - foram cartões de visita muito adequados a toda esta imagística. E mais ainda o foi o ‘samba exaltação’ de Ari Barroso - Aquarela do Brasil - em que o "Brasil brasileiro" é equiparado ao "mulato inzoneiro" para ser cantado em seus versos. "Inzoneiro", para quem não sabe, quer dizer "mentiroso", "manhoso" e "sonso".

Uma maneira tão curiosa de "exaltar" a nossa terra já nos deveria anunciar que esta exuberância nativa, esta exacerbação das forças maternantes, é também e necessariamente a arena em que todas as arbitrariedades podem ser perpetradas, seja com os disfarces e compensações da potência feminina ilimitadamente "generosa" - Terra dos conchavos, acomodações, favores, maracutaias e, palavra definitiva, Terra das mamatas - seja com a prepotência dos interesses egoístas e anti-sociais da voracidade paterna arcaica - País dos padrinhos, País dos patrões... Se somos os filhos desta terra-mãe gentil, somos também os filhos, afilhados e apadrinhados, cunhados e genros (e noras) de coronéis e caciques. Convém registrar a absoluta complementaridade destas duas concepções que organizam nosso imaginário. A "generosidade" ilimitada da natureza, a extraordinária gentileza desta terra-mãe, em que, presume-se desde Caminha, "em plantando tudo dá", sustenta a crença na onipotência materna.

Cabe aqui uma observação. Como Winnicott aponta, o amor do bebê pela mãe é cruel no sentido de que faz a ela, ainda não plenamente diferenciada de si mesmo, exigências ilimitadas e esta crueldade (ruthlessness) não cede espaço algum à preocupação da criança com a mãe. Ora, no processo normal de desenvolvimento vem uma fase em que se constitui a capacidade da criança preocupar-se com a mãe e com as demais fontes de carinho, proteção e sobrevivência. Ele descobre que estas fontes não são inesgotáveis e que é necessário cuidar delas e não explorá-las impiedosamente. No entanto, retornando agora às subjetividades brasileiras, maltratar e explorar sem piedade a nossa "natureza", confiados em sua "generosidade" inesgotável, tornou-se, sem dúvida, um esporte nacional e, nesta empreitada, os coronéis e caciques - filhos desta terra e donos do poder - chegam às raias do requinte. Abre-se então o espaço de uma questão: como explicar a persistência dessa forma de amor cruel, ou seja, desta forma tão regredida de lidar com nossas fontes naturais? É neste momento que podemos recordar que o desenvolvimento da capacidade de preocupar-se depende do reconhecimento dos limites da mãe, não só dos limites físicos mas daqueles impostos pelos "direitos" da mãe a uma vida mais independente das exigências filiais. Quando estes limites não podem ser estabelecidos e legitimados, persevera a crueldade, já agora associada à crença na onipotência materna e por ela justificada. Parece que a forma vandálica e predatória de tratar a mãe-natureza que ainda hoje predomina entre nós, mesmo com toda a circulação dos discursos conservacionistas em uma parcela da população urbana, dá testemunho desta dificuldade de superar a crença infantil na ilimitação da "generosidade" natural.

O que sempre mais importa, no entanto, é reconhecer a estrita complementaridade: as figuras do excesso - "mãe" natureza generosa e "pai" onipotente, voraz e protetor, formam um casal imbatível. É claro que muito da força desta dupla tremenda depende de alguma forma de solidariedade fraterna sem a qual não haveria libido bastante e suficientemente convergente para sustentar figuras tão poderosas. Contudo, e esta é a tese que procuro demonstrar, estamos sempre à beira de um movimento fortemente regressivo que faz repetidamente abortar os germes da democracia entre nós.

É natural que a nostalgia por alguma ordem que pareça pairar acima das arbitrariedades miúdas do nosso cotidiano possa prosperar entre os brasileiros, mesmo que seja uma ordem eventualmente opressora, mas percebida como fundamentalmente benévola e protetora. Esta nostalgia nos coloca vezes sem conta na expectativa de um retorno do "pai" em sua máxima potência e presença. Muitas manifestações da religiosidade popular mais tradicional como as que giraram e giram em torno, por exemplo, de Antônio Conselheiro e do Padre Cícero Romão, entre muitos outros, poderão ser interpretadas por este ângulo. Na política, figuras como Getúlio Vargas, Jânio Quadros e mesmo Fernando Collor pareceram responder mais ou menos bem a este apelo ao "pai" Ressalte-se, porém, que, talvez, em parte o segundo mas, sem dúvida, o terceiro dos mencionados entrou rapidamente na categoria dos impostores, dando ensejo a um arremedo de festa totêmica por ocasião do impeachement. Como o impostor era, como sempre ocorre, um filho mimado que se pretendia não-castrado - um irmão insubmisso, ex-governador de um pequeno Estado nordestino -, a "festa" se converteu em um autêntico "pega pra capar" e o banquete se transformou em um vômito universal. Nem sempre, contudo, o final é tão alegremente conclusivo: Getúlio Vargas, como tão claramente anteviu na carta-testamento, deixou a vida para passar à história, definitiva, como "Salvador da Pátria e pai dos pobres". E isso não é "passado": o atual presidente do Senado é um autêntico "paínho" baiano - protetor e amigo do povo - cuja aura e prestígio só têm a ganhar com o fato de que é também conhecido como "Toninho Malvadeza".

É diante desta mescla indissociável de "generosidade", proteção desmedida e exploração arbitrária, de amor e violência incontida que olhamos com grande admiração para os povos ocidentais que pareciam ter conseguido instalar uma civilização que, até há pouco tempo atrás (antes das guerras na Iugoslávia, certamente), se apresentava como mais livres destas mazelas. Surgia daí, embora não fosse esta a única fonte deste movimento, uma certa ânsia de incorporar a modernidade no que respeita a força das leis, a nitidez das normas e ideais etc. Em geral foram as elites culturais - profissionais liberais, militares, artistas e literatos e mesmo muitos clérigos mais cultivados - os que mais desejaram e desejam escapar desta alternativa infeliz - barbárie maternante ou/e barbárie paternante - instituindo uma ética moderna em que o "pai" (e a "mãe") - ou seja, a ordem familiar e patrimonialista - pudessem recolher-se no fundo da terra. Este recolhimento da ordem familiar poderia dar espaço, então, ao Estado e a seus funcionários idôneos, às leis impessoais e às suas autoridades legítimas, à lógica cega e impessoal do mercado e a seus agentes honestos, competitivos, eficientes etc.

Como se sabe, é muito discutível se estes anseios foram ou podem vir a ser plenamente alcançados aqui ou alhures. Entre nós é, inclusive, discutível a força real destes anseios mesmo nos que mais parecem comprometidos com os discursos da modernidade. Na verdade, os discursos modernos e as medidas modernizantes quase sempre são desmentidos pelas práticas sociais que os incorporam apenas como adorno e prova de civilidade e modernidade. Frequentemente são adotados sem que seus porta-vozes disponham-se a renunciar aos velhos hábitos, a abrir mão dos favores, das mamatas e da prepotência de filhos e afilhados dos grandes caciques. Como nos é difícil constituir uma fraternidade e nos sustentarmos nela!

Um dos mais nefastos resultados deste processo de "abrasileiramento" do ocidente é a própria desmoralização desta modernidade, reforçando, na direção contrária, seja uma cultura cínica e transgressiva, seja uma dissociação constitutiva entre discursos e práticas, entre a letra da lei e suas sinuosas interpretações sempre conformes às necessidades de momento etc. A dissociação, tem a "vantagem", sobre o próprio cinismo, de parecer nos colocar acima de qualquer suspeita: os dois regimes – práticas e discursos – parecem tão auto-consistentes e tão isolados um do outro que nem nos damos conta de como transitam em direções opostas. Com isso, podemos evitar até o desconforto de um cinismo mais assumido, como na famigerada "lei de Gerson", a do "tirar vantagem em tudo" da forma mais selvagem, predatória e egoísta.

Se a presença do pai na cultura deve comportar sempre uma certa ausência, se deve ser uma presença atenuada, pois só assim a solidariedade fraterna pode ter espaço e vingar, a cultura cínica e transgressiva ou a dissociação constitutiva que nos estrutura têm o dom de transformar o pai numa espécie de "bobo" que não merece ser reverenciado e por cuja morte não devemos sentir culpa alguma. Nestas condições, para algum pai merecer o nosso respeito, ele deveria comparecer em pessoa com toda a sua gula, com toda a sua fúria, com todo o seu poder de vida e de extermínio. Chama a atenção, por exemplo, o modo de nos referirmos a esta instituição do Estado Moderno que é o Imposto de Renda quando ela se apresenta no contexto de uma cultura em que apenas o "pai" natural e voraz merece algum respeito. O imposto de renda na condição de dispositivo fraterno a serviço da coletividade não nos merece a menor consideração e a sonegação pode ser praticada sem culpa. O que tememos, porém, é a gula insaciável do Leão - diante da qual nos sentimos desamparados e a que renunciamos limitar; é a este poder apenas que nos submetemos.

Fraternidade, fraternidades: caminhos para a ditadura.

Um outro aspecto a considerar são as formas perversas que a luta pela conquista e pelo exercício de uma certa solidariedade fraterna pode assumir entre nós. A onipotência paterna indomada, a insistência do "pai" e da "mãe" em continuarem vivos e presentes, nosso próprio anseio de que eles não nos abandonem não abrem espaço para o fortalecimento das fratrias - vale dizer, no nosso caso, não abrem espaço para a implantação de uma experiência democrática consistente.

Muito soubemos, na história social brasileira, das estruturas patriarcais, dos apadrinhamentos e das formas de solidariedade que lhes correspondem: uma certa experiência de família extensa, cheia de compadres, afilhados "primos" e "tios" sangüíneos ou meramente "sociais". Escusado dizer que, no topo destes grupos, figuras notáveis e veneradas de pais e mães exerciam seu quase completo domínio, infantilizando, independente das idades, todos os dependentes e agregados. Tais modalidades de convivência, todavia, estão cada vez mais desgastadas e impróprias às condições da vida urbana e da cultura individualista das cidades.

Já no que diz respeito a estas condições de vida "moderna", pouco sabemos da fraternidade como modo de vida institucionalizado, experimentada cotidianamente e fora de situações críticas

Surgem, entretanto, algumas formas bizarras de fraternidade, como, por exemplo, a de uma cumplicidade cotidiana com as grandes e pequenas transgressões a que todos nos entregamos com naturalidade. Criam-se assim modos de estabelecer relações fraternas - como as do "jeitinho" - que aparentemente contrariam a submissão ao poder de uma autoridade cruel, injusta, corrupta e insensível. Ao "quebrar meu galho" e "dar um jeitinho" que me beneficie, qualquer um, sem distinção alguma, vira "meu irmão", "meu chapa". "Xará" é a designação genérica deste familiar de ocasião que não compartilha comigo o nome de família (o nome do pai), mas, supostamente, o nome próprio. Geram-se desta forma grandes redes informais e efêmeras de solidariedade fraterna entre "xarás". Até certas autoridades podem ser incluídas no grande abraço transgressivo: o guarda que poderia me multar mas me "quebra este galho", tenha o nome que tiver, é, inexoravelmente, meu xará.

Mas estas relações acabam sendo um terreno fértil para novas prepotências. A fraternidade trangressora do "jeitinho" e do "quebra galho" entre "xarás" é prima irmã daquele "tirar vantagem em tudo" que destroça rapidamente qualquer projeto fraterno e democrático. Em um átimo, passa-se de "xará" a "filho-da-puta", situação na qual a ausência de um sobrenome paterno deixa de ser a oportunidade de uma confraternização sem fronteiras pré-fixadas para ser a de uma humilhante exclusão da família. Tanto o xará como o filho da puta são filhos da mãe, produtos da natureza.

Ambas as tendências - a da confraternização irrestrita e de ocasião e a exclusão igualmente ocasional (porque o filho da puta de hoje pode ser o xará de amanhã) -, apenas complementam a equação básica: a das barbáries paternantes e maternantes, porque há sempre um "pai" e uma "mãe" sendo explícita ou implicitamente invocados, imitados ou "amansados" na solução dos problemas pela via transgressiva.

Aliás, mesmo nas questões legais e até "constitucionais" as figuras naturais do "pai" e da "mãe" povoam nosso imaginário. Muitos funcionários públicos e membros da chamada "classe produtora" - os empresários brasileiros - acostumaram-se ao longo da história do País a lidar com o Estado como quem lida com um "pai" que é uma "mãe" em sua infinita generosidade e reagem raivosamente quando suas expectativas são frustradas. O corporativismo dos funcionários públicos ameaçados em alguns de seus privilégios pelas reformas administrativas e o choro de empresários quando perdem incentivos fiscais, subsídios, proteções alfandegárias, créditos a perder de vista, perdões de impostos atrasados e outras "boquinhas ricas" foram interpretados pelo cáustico humor de Roberto Campos como formando o "movimento dos sem-teta", o que muito bem expressa esta concepção do Estado como a figura combinada (andrógina e por isso super-poderosa) de "pai" e "mãe", obrigados a oferecer uma proteção infinita e um leite inesgotável a seus pimpolhos. esfomeados. Aliás, o corporativismo é, e muitas vezes com o respaldo dos partidos de "esquerda", uma das formas mais características da solidariedade fraterna no Brasil, uma solidariedade algo mafiosa. Chama ainda mais atenção a aliança do PT com os grandes empresários rurais nas pressões contra o governo para a anistia das dívidas. O que une, aparentemente, gatos tão díspares dentro de um mesmo saco é a generalizada condição de vorazes sem-teta que acabam assumindo os movimentos reivindicatórios no Brasil. Algumas categorias sociais tendem a se transformar, por momentos, em verdadeiras gangues que chantageiam toda a sociedade e oferecem "proteção" aos membros da "família". Apenas mais um elo em nossa história anti-democrática, mais um ingrediente da equação básica em que "pai" e "mãe" continuam reinando incontestes.

São experiências "democráticas" ou anti-democráticas como as acima referidas que talvez nos permitam entender o resultado de uma pesquisa recente (1999) com os jovens do Rio de Janeiro: uma porcentagem alarmante de jovens pobres considerava a ditadura o melhor regime político para o Brasil . A ausência ou a presença de formas tão precárias e mesmo delinquenciais de fraternidade só pode conduzir-nos de volta ao desejo regressivo de uma paternidade absoluta. Fidel Castro, com suas barbas de opereta, já é o presidente de honra da União Nacional dos Estudantes conforme deliberação do último Congresso da UNE em junho de 99.

Para além dos "pais"?

No grande filme que é "Central do Brasil", de Walter Salles, encontramos um povo na busca do pai. É o menino que instiga a mãe a escrever ao pai, são todos os analfabetos que procuram na escrevedora de cartas - uma figura algo andrógina de mulher masculinizada - as letras e o discernimento que lhes fazem falta, é a escrevedora de cartas que, apesar de sua descrença e do seu cinismo inicial diante dos pais - forjados no encontro com o "pai" violento e omisso, sedutor e esquecido da filha - acompanha e sustenta o menino em sua procura, é o motorista de caminhão que julga ter encontrado um pai severo, rigoroso e castrador entre os Evangélicos, são os romeiros que se dirigem ao pai na figura do padrinho Padre Cícero Romão Batista, são os irmãos que esperam o retorno do pai...

Há algo no filme de absolutamente realista - a miséria e a violência cotidiana - em que o assassinato de um "trombadinha" à luz do dia é mero detalhe -, o esforço sem lucro e as esperanças vãs, há, enfim, esta procura desorientada, crédula e interminável do pai. Tudo isso é impactante e nos toca profundamente. De tudo isso nós conhecemos bem o sabor, mesmo que tentemos nos esquivar. O que mais nos toca, contudo, é o que há no filme de mais raro e inverossímil, algo com que podemos sonhar mas que quase nunca podemos experimentar. O menino não encontra o pai, encontra os irmãos e é por eles encontrado. O pai, sim, também comparece. São deles as habilidades de marceneiro tão louvadas pelo filho que o procura e tão bem adquiridas por um dos filhos que o espera. Tão bem adquiridas, na verdade, que este é o filho que já não se ilude: ele sabe que o pai não voltará. Mas o pai comparece, principalmente, como o destinatário da carta da mãe, agora morta, escrita do distante Rio de Janeiro e é ele, também, o remetente da carta endereçada aos filhos, também escrita da mesma longínqua cidade. As duas cartas, deixadas lado a lado no oratório da casa quando a escrevedora parte, deixam o pai - e a mãe - na justa distância em que já não mais se procura O Pai. Mas é aí que a função paterna se institui e que uma fraternidade pode se formar e se sustentar, dando assim por encerrado o "trabalho do filme". (5) Neste momento Walter Salles sem se tornar utópico - estamos seguramente no centrão do Brasil, no sertão da Bahia - torna-se profético (o que, por sinal, é sugerido pelos nomes dos três irmãos: Moisés, Josué e Isaías). Fazendo mais do que nos apresentar, de novo, à velha realidade, o autor nos dá um rumo: o de uma ética da fraternidade, para além dos pais excessivos, "generosos" e prepotentes.

A psicanálise nesta história

É claro que na solução que o filme nos apresenta ficam omitidas as grandes dificuldades que, como brasileiros, vivemos na implantação de um regime fraterno de convivência um pouco mais resistente aos movimentos regressivos e mais capaz, portanto, de sustentar a justa-distância. Nem seria esta a "função" da arte e ela já nos ajuda muito se nos sensibiliza para uma questão crucial. Mas a fraternidade é sempre também um problema e nunca apenas uma solução. Contra ela trabalham insistentemente as rivalidades entre irmãos, a nostalgia e a inveja indomada da onipotência reprimida e se isso faz parte da condição humana para além de todas as singularidades históricas e sociológicas, não resta dúvida de que a tradição cultural brasileira experimenta estas dificuldades de forma muito aguda e cujo enfrentamento requer uma grande dose de perseverança. Uma perseverança, talvez, a ser exercida mais no varejo e no miúdo do cotidiano do que nas grandes ações da política, esta também tão impregnada dos mesmos traços e propensa a repetir os mesmos impasses.

Se assim for, e sem a pretensão megalômana de deter uma receita milagrosa, talvez possa nos caber, com o exercício do pensamento psicanalítico e da prática clínica da psicanálise, um modesto lugar nesta história.

NOTAS :

1) Uma versão menos desenvolvida deste trabalho foi publicada em Percurso. Revista de psicanálise com o título "Apelo ao pai e o pai como apelo". A presente versão contou com a leitura e sugestões de Janete Fröchtengarten, a quem agradeço. O presente texto será publicado pela editora Relume-Dumará como capítulo de um livro sobre a Função Fraterna que está sendo organizado por Maria Rita Khel.

2) As complexidades da fraternidade (e da paternidade) tais como contempladas pela teoria psicanalítica foram bem estudadas por Paul-Laurent Assoun nos dois tomos de Frères et Soeurs. Le lien inconscient. Paris: Antrhopos, 1998. A leitura do cenário mítico e dos cenários históricos que se segue podem ser complementadas e conferidas com as observações de Assoun, principalmente no Tomo I pp. 81-89.

3) Observe-se, porém, que esta não é uma posição estritamente freudiana. Para Freud, embora a narrativa mítica seja efetivamente uma figuração muito simplificada, não há dúvidas para ele de que tanto a horda primitiva como milhares de episódios de assassinato ocorreram como realidade histórica objetiva na constituição da humanidade (cf. Moisés y la religión monoteísta. Obras Completas, vol. XXIII)

4) As noções de "pai como alvo e emissário de um apelo", mas que se mantém à distância e imerso no anonimato, ocupando, assim, uma posição de irredutível alteridade diante dos filhos, são comuns à leitura que estou fazendo do texto freudiano e às elaborações da ética por Emmanuel Lévinas. O texto de J-L. Marion "La voix sans nom. Hommage – à partir – de Levinas" (Rue Descartes, 1998, 19, 11- 25) trata em profundidade desta relação pai-filho segundo a ótica lévinasiana.

5) É somente neste momento, aliás, que a escrevedora, agora plenamente feminilizada, pode escrever a primeira carta em nome próprio e falando de si; cremos que a discussão deste post scritum do filme daria ensejo a uma discussão interessante sobre a instituição da função paterna , a fraternidade, a sexuação e a singularização

Luiz Claudio Figueiredo
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