FORACLUSÃO E LAÇO SOCIAL OS AVATARES DA FUNÇÃO PATERNA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
Gilsa F. Tarré de Oliveira (1)
A foraclusão do Nome-do-Pai , formalizada por Lacan como o mecanismo que condiciona a estrutura da psicose, acarreta uma profunda perturbação da relação do sujeito com o Outro, terceiro simbólico e suporte de nosso pertencimento ao mundo humano. Na psicose, o Outro perde seu lugar de alteridade extima, passando a representar uma concreta ameaça ao espaço de vida do sujeito.
O contato com o Outro torna-se, por definição, opressor e intensamente persecutório, não dando nenhuma possibilidade de que se inscreva a troca e o objeto susceptível de responder a essa troca. A psicose exibe claramente como o rigor de uma lógica bivalente comanda uma relação inteiramente fusional com o semelhante que fomenta o amoródio. Esse corpo a corpo mortal denuncia o quanto a relação topológica entre externo e interno torna-se eminentemente problemática, provocando um apagamento do lugar subjetivo pois obriga o sujeito a uma resposta no campo do real.
Uma das feições mais radicais dessa resposta é a verdadeira experiência de uma catástrofe, de uma crise no imaginário, desencadeada pelo cruzamento da fronteira que separa real e simbólico. Essa catástrofe que não permitiu nenhuma dúvida a Schreber de que, para ele, o mundo chegara ao fim, impondo-lhe a árdua tarefa de uma reconstrução, ainda que delirante. Essa crise que em Schreber se concretiza de forma singular - em seu encontro com Um Pai mestre do gozo, todo poderoso - , pode nos auxiliar e lançar alguma luz sobre problemas que hoje invadem o campo social sob as modalidades exemplares de um aumento generalizado da violência e da segregação; do fanatismo das novas seitas, da força esmagadora dos fundamentalismos religiosos e dos nacionalismos intolerantes.
Essas ocorrências nos levam a pensar sobre os efeitos da degradação, cada vez mais acentuada, que a figura paterna sofre na atualidade, quando um declínio da função paterna se faz acompanhar de uma recaída num culto religioso ao pai. Essa é a discussão que norteia este trabalho considerando que, se a clínica da paranóia leva em conta um fato de estrutura - embora esta seja a mesma que a da psicose -, parece que vai mais longe, permitindo-nos alguns ensinamentos como tentativa de decifrar a lógica inconsciente que permeia os radicalismos apontados. Sobretudo, considerando que a máxima de Lacan: "prescindir do pai com a condição de dele se servir", convoca os analistas à colocação em ato da relação da psicanálise com outros discursos, ou seja, sua extensão para a realidade social na qual estamos inseridos, avaliando seus impasses.
O que é um pai?
A pergunta "o que é um pai?" é legível desde os primeiros passos da experiência clínica de Freud, sendo sustentada até a difícil escrita do que denominou de seu "romance secreto", "Moisés e o Monoteísmo", restando tão enigmática quanto sua outra questão: "o que quer uma mulher?"
A formulação da questão acerca do que a palavra pai pode designar envolve, de saída, o passo decisivo de Freud com respeito às demais considerações centradas numa referência puramente genética, o que lhe permitiu efetuar um salto discreto do biológico à lógica do sujeito. Ou seja, transpondo o aspecto da procriação, Freud busca circunscrever algo que participaria da produção do funcionamento psíquico sobretudo no que toca à formação dos sintomas neuróticos. Seu passo significa acrescentar um algo a mais em relação às evidências não menos enigmáticas do que constituem pai e mãe em pessoa, colocando em pauta o valor irredutível de uma transmissão simbólica, diferente das necessidades biológicas que organizam a família biológica. Graças a essa orientação, Freud igualmente promove uma abertura para a exploração da cultura e da civilização.
Mater certissima. Pai incertus, lembrava Freud retomando o adágio jurídico para indicar que do pai só podem haver indícios no e pelo exercício de suas funções. Este é o ponto culminante de suas reflexões em "Moisés e o monoteísmo", onde deixa claro que o vínculo transferencial com o pai e a Lei é a condição necessária para que uma transmissão simbólica se torne possível, engendrando memória e historicidade.
Segundo a leitura proposta por Lacan, a função paterna como estruturante da possibilidade de encontro com a alteridade, é o tema recorrente das três versões do pai oferecidas por Freud através dos mitos de "Totem e Tabu", do Édipo e de "Moisés" onde toda dificuldade para definir o que seja um pai, é solidária do fato deste permanecer, para sempre, em sua irredutível alteridade como estranho no mais familiar.
Lacan relê o Édipo a partir de Moisés, de onde retira os fundamentos para uma formalização da função paterna do ponto de vista do sujeito do significante, ordenando uma série de elementos estreitamente articulados: o Nome-do-Pai como significante que nomeia a lei do desejo enquanto desejo sexual; a metáfora paterna, que permite ao sujeito interpretar esse desejo; e a significação fálica, submetendo, no campo da linguagem, esse desejo à castração.
Infelizmente, as propostas apresentadas por Freud através das três versões do pai que são retomadas por Lacan, não receberam a mesma atenção por parte dos psicanalistas que se limitaram a realizar uma leitura genética e até mesmo ideológica da psicanálise que minimiza a função paterna e sua junção com a escrita do inconsciente. Em Freud, trata-se de um deslocamento ético inseparável do tratamento dispensado à questão do pai, considerado por Lacan como o significante mestre do discurso psicanalítico. A função do pai na psicanálise é a de propiciar um tratamento efetivo do gozo que humaniza o desejo e assegura sua singularidade. Lacan nos faz ver que em "Moisés", no ponto culminante de suas reflexões, Freud opera uma redução do papel do pai que vai contra toda forma de ideal, de delírio e mesmo de idolatria, distinguindo a propósito do Nome-do-Pai o lugar de um vazio que é sua essência, um Nome que serve para encarnar a Lei no desejo.
Desse modo, o amor pelo pai, e seu papel na normalização do desejo, só conduzem a efeitos favoráveis na medida em que tudo está em ordem do lado do Nome-do-Pai, do lado do pai simbólico, onde o Outro, lugar da palavra, advém como o nome do lugar do pai enquanto simbólico, na estrutura subjetiva. No que concerne à psicose, a foraclusão do significante paterno desencadeia uma inclusão do gozo na linguagem. O que justamente deveria se manter como exterior ao campo da linguagem faz irrupção no interior deste campo, e o que provoca essa inclusão do gozo é precisamente o fato de que, em certas circunstâncias, é feito um apelo a esse significante que simplesmente não existe para o sujeito psicótico.
Nestes termos, o acidente desencadeador da psicose concerne a essa fronteira do lugar do significante, já que o pai como uma construção da linguagem, de modo mítico, é o que dá conta da castração. Não exatamente enquanto o que a causa, mas como sua consequência, pois a causa mesmo da castração é o significante, a linguagem. Isso nos faz ver que a interdição do gozo vem apenas mascarar um impossível a gozar; desse modo, o pai, como o agente da castração, não existe senão como um representante, um semblante.
Com efeito, devemos ter em mente no que consiste, mais precisamente, a castração simbólica, pois, de fato, um pai só exerce sua autoridade na medida em que se coloca como a encarnação de um agente que aceita o fato de que não é ele que fala, mas o Outro que fala através dele, com suas palavras, interditando uma reapropriação do gozo. Um modo de se pensar naquilo que Freud introduz de radicalmente novo no problema da ética: o gozo permanece proibido mesmo estando Deus, morto. Ou seja, que Deus esteja morto, isso não nos garante a liberdade absolutamente.
Muito pelo contrário, a morte de Deus derruba a ilusão de um livre arbítrio, impondo ao sujeito a tarefa de dar um destino a esse dano causado por seu traumático encontro com o Outro e com um gozo inassimilável no universo simbólico. Esse trauma condiciona uma tensão interna na relação entre o desejo e a lei, constituindo o cerne da ética da psicanálise.
O pai, a lei obscena e a subversão de Schreber
A pessoa empírica do pai nunca está à altura de seu Nome, de seu mandato simbólico. Ele seria, como diz Lacan em seu Seminário RSI., "o justo semi-Deus", e nada poderia ser pior do que um pai que profere a lei sobre tudo: " nada de pai educador! Melhor aposentado de qualquer magistério", prossegue Lacan.
Nesse sentido, as Memórias de Daniel Paul Schreber valem como uma ilustração da monstruosa elaboração do projeto médico-pedagógico de seu pai, Daniel Gottlib Moritz Schreber, cujas propostas valiam como verdadeiras regras de vida fundadas numa disciplina impecável. Encarnando a figura do mestre do saber, Moritz Schreber, tornou-se o missionário de almas que deveriam ser salvas. Entretanto, sua missão fracassa no seio mesmo de sua família. Seu filho mais velho, Gustav, suicida-se logo após a nomeação como juiz de apelação da Corte Distrital de Bautzen; Daniel Paul sobrevive graças à sua tentativa desesperada de reconstrução do mundo através de uma relação sexualizada com Deus, mundo atingido pelo desmoronamento da autoridade simbólica que regula a Lei e garante as fronteiras individuais.
Moritz Schreber encarnou um excedente de poder, influência e autoridade paternos, excedente esse determinante na concretização da crise do imaginário que eclode em Daniel Paul. Suas Memórias, que tanto interesse despertaram em Freud, são uma verdadeira enciclopédia dos motivos paranóicos. Nelas encontramos a descrição detalhada de suas alucinações psicóticas de estar sendo perseguido sexualmente por um Deus obsceno; a ligação explícita entre o assassinato da alma e a imperícia de Fleschsig, seu primeiro psiquiatra e o instigador de todos os atos de perseguição ao longo de sua doença; o tema da catástrofe do fim do mundo, com a subsequente reconstrução; e seu contato privilegiado com Deus, que lhe enviava mensagens codificadas nos raios solares, etc.
Inúmeros são os autores que se interessaram pelas "Memórias", além de Freud. Vários desses comentadores encaram as "Memórias" ora como um texto proto-fascista, no qual podem ser identificadas as obsessões que motivaram a catástrofe do regime nazista de Hitler, em seu intento de reconstruir uma nova ordem mundial baseada na pureza racial; ora percebendo as Memórias como um texto proto-feminista, onde a rejeição da identificação fálica estaria presente. Não resta dúvida de que a oscilação entre esses extremos é um sintoma que vale a pena ser interpretado.
No entanto, optamos por nos deter na brilhante leitura realizada por Eric Santner, que, em seu livro "A Alemanha de Schreber" defende a tese de que a crise paranóica de Schreber é uma "crise de investidura", idéia teórica que lhe permite passar do campo privado dos distúrbios psicóticos para o campo público da gênese ideológica e política do nazismo. Essa crise ocorre no momento em que Daniel Paul está prestes a assumir um cargo de extrema autoridade simbólica, como Senatspräsident da Suprema Corte da Saxônia, ou seja, uma posição no poder judiciário-político.
As crises que levaram ao colapso de Schreber e suas tentativas reiteradas de cura através de construções delirantes - sua "Alemanha particular", como se refere Santner -, foram basicamente as mesmas crises da modernidade que levaram os nazistas a elaborarem suas soluções "finais". O interesse por Schreber surge por ocasião de sua pesquisa voltada para a história do nacional-socialismo, cujo status era de uma religião ou uma ideologia quase oficial de Estado. A hipótese de Santner nesta pesquisa era a de que a mobilização da população e o sucesso dos nazistas só poderiam ser esclarecidos uma vez apreendidas a natureza e a estrutura dos mecanismos paranóicos, além do modo como funcionam no plano individual e coletivo.
Vários outros autores, como foi o caso de Canetti, puderam apontar para as ligações profundas entre o material das Memórias e as fantasias políticas que atuaram no nazismo. Canetti lê o caso Schreber como um texto proto-fascista, e seu sistema delirante como uma prefiguração da solução totalitária. Considera que tanto o paranóico como o ditador sofrem de uma "doença do poder", uma vontade soberana de sobrevivência exclusiva ainda que ao custo de sacrificar o resto do mundo. Em contraste com Canetti, a grande contribuição e a própria originalidade do livro de Santner, resultam de sua tentativa de responder à solução dada por Schreber, para evitar a tentação totalitária.
Por que Schreber caiu num delírio psicótico no momento de assumir sua posição de juiz? A crise de Schreber é localizada pela "crise de investidura" do final do século XIX e a surpresa trazida pela análise da paranóia é que essa crise, segundo Santner, não tem apenas o potencial de gerar sentimentos de alienação ou anomia, ambos associados à ausência. A lição essencial a ser extraída de Schreber é que o fracasso do poder e da autoridade simbólicos, pode ser vivenciado "como o colapso do espaço social e dos ritos da instituição no núcleo mais íntimo do sujeito" (4).
Desse modo, as angústias geradas, antes de estar referidas a sentimentos de perda ou ausência, denunciam a certeza de um excesso de proximidade da obscenidade que fazia parte, de modo integral, do funcionamento da autoridade simbólica. A "crise de investidura" surge dessa proximidade demasiadamente próxima, e seria o caso de dizer, de um pai em excesso, que afeta o sujeito traumaticamente e se torna um obstáculo ao funcionamento "normal" da Lei. As regras obscenas, não escritas, permanecem como a condição de possibilidade do exercício do Poder como uma ordem invisível, porém superpotente e conspiratória.
Tanto a nomeação de Schreber para o cargo de Senatspräsident como seu processo de emasculação condicionaram uma mudança de status simbólico, e ambas constituem toda a extensão do que Santner caracteriza como sua "crise de investidura". A segunda nomeação revela o segredo da primeira, ou seja, que a autoridade institucional por trás dela encontra-se em crise e em desacordo com a "Ordem do Mundo", termo schreberiano para o preceito legal cósmico e a regulação das fronteiras individuais. A ligação entre essas duas mudanças simbólicas se deve a um ato de denominação ou nomeação - um enunciado performativo que no caso de Schreber é de um tipo bem especial, pois trata-se de um insulto:
...tudo parecia premeditado para me instilar medo e terror, e ouviu-se várias vezes a palavra ordinário ou burro [Luder] - uma expressão muito comum na língua fundamenteal, para denotar uma pessoa fadada a ser destruída por Deus e a sentir o poder e a ira divinos (5).
Citando Certau, Santner sublinha que a palavra Luder impõe a Schreber, a certeza de que "ele possui essas qualidades e ao mesmo tempo indicam que ele deve portar-se de acordo com a essência social que com isso lhe é conferida" (6). O Poder passa a contar com um suplemento: a feroz, violenta e obscura lei do supereu. Em seu imperativo que exige o gozo, essa Lei passa necessariamente a acompanhar a Lei pública.
Isso significa que as regras obscenas - o que há de podre na lei - sustentam o Poder enquanto permanecem nas sombras pois, no momento em que passam a ser publicamente reconhecidas, o edifício do Poder se transforma em desordem (7). Por essa razão, muito embora a fantasia paranóica de Schreber contenha os elementos de um mito fascista, ele não é totalitário, mas subversivo, colocando publicamente em cena toda a inconsistência do sintoma do Poder.
Ao deparar-se com esse excesso paterno, Schreber se descobre submetido a um processo milagroso de emasculação: após uma revolução, Deus assume o poder e exige sua transformação em mulher. O surgimento da metáfora delirante "mulher de Deus", lhe oferece a saída de procriar uma nova raça de homens. Nisso reside a verdadeira subversão de Schreber, o que esclarece o modo pelo qual consegue escapar à tentação totalitária, já que a mudança de seu status simbólico, ao transformar-se num sujeito feminizado que copula com Deus, é o justo oposto do ideal Ariano da pura masculinidade.
No anti-semitismo virulento e racial que predominou na Europa do final do século passado, a homossexualidade era vista como doença associada aos judeus. Santner considera como um sintoma o fato de Freud não levantar a "questão judaica" em sua análise do caso Schreber, deixando de mencionar a dimensão judaica de seus delírios, conforme consta das Memórias:
...a destruição do gênero humano poderia ocorrer espontaneamente(através de epidemias devastadoras etc.), ou então, por decisão de Deus, através de terremotos, inundações, etc.(...) Nesse caso, para preservar a espécie, um único homem seria poupado - talvez o que fosse relativamente mais virtuoso em termos morais -, chamado "Judeu Errante" pelas vozes que falavam comigo.(8)
Para o aprofundamento da dimensão judaica presente na "Alemanha particular" de Schreber, Santner se vale das pesquisas de Sander Gilman (9) que situa no centro de sua leitura do caso de Daniel Paul, o elo entre o judaísmo e seu processo de feminização. Guilman entende que as alusões de Schreber às pestes e às várias formas de lepra, incluindo a Lepra hebraica, podem ser interpretadas como ramificações de sua identificação com a imagem do judeu doente, mal-cheiroso e feminizado. Sobretudo em seus delírios associados ao corpo, Schreber exibe sua identificação com o corpo adoecido e feminizado do judeu, de acordo com o discurso médico e a literatura anti-semita do século XIX, segundo o qual os judeus encarnavam um estado de degenerescência e abjeção efeminadas.
O fantasma social que alimentava esse discurso e tornava difícil a própria questão da condição judaica de Freud em relação à sua revolucionária descoberta científica naquele exato momento, podem ter contribuído para a ausência de um maior aprofundamento da questão judaica nas fantasias paranóicas de Schreber. Entretanto, a ligação consistente que Guilman destaca entre circuncisão, feminização e anti-semitismo, no imaginário europeu do século XIX, foi algo que não passou absolutamente desapercebido para Freud que, em sua análise do Pequeno Hans, aborda o complexo de castração como "a raiz mais profunda do anti-semitismo".. Freud menciona neste momento, o livro de Otto Weininger, Geschlecht und Charakter, onde os judeus e as mulheres são tratados com a mesma hostilidade. Dominado por seus "complexos infantis", Weininger, segundo Freud, interpreta que o há de comum entre os judeus e as mulheres se relaciona com o complexo de castração.
A violência como impasse simbólico
É justamente pela castração simbólica que se efetiva uma separação, um corte, o qual impede que o gozo do Outro, mortífero, assuma um controle que impede qualquer escanção entre o sujeito e o Outro. Conforme analisamos, é somente através de sua "Alemanha particular", que Schreber encontra a resolução para esse gozo do Outro que o violenta. Sem nada que pudesse se sustentar como um ponto cego, enigmático, no campo do gozo, Schreber se torna "mulher de Deus", uma espécie de salvaguarda da "intenção performativa" (11) de um obscuro Poder que lhe destinava o lugar de permanecer como um homem cretinizado.
A paranóia de Schreber nos esclarece quanto ao que preside a verdadeira violência: a incidência de Um Pai, que obstrui qualquer possibilidade de escanção e separação entre o sujeito e o Outro. Basta que lembremos do efeito sobre Schreber, do enunciado Luder, de uma colagem absoluta de identificação ao supereu obsceno do Outro. Impondo a crença e a certeza, o caráter performativo deste enunciado realiza a colagem entre ato e objeto, traduzida num rompimento da hiância que separa o instante de escutar, o tempo de compreender e o momento de concluir. Um tempo, enfim, transformado em simultaneidade absoluta (12).
Esse pai é o justo reverso do Nome-do-Pai como portador da Lei simbólica, trata-se do "pai anal" como a encarnação mais clara do fenômeno do sinistro - Unheimliche - um pai morto-vivo, incastrável, um duplo do sujeito cujo espectro dá corpo a um excesso que "no sujeito é mais que o sujeito mesmo" (13). Esse excesso comanda toda a estrutura de uma posição sacrificial e evidencia a verdadeira significação dessa posição. Conforme propõe Lacan, "o sacrifício significa que, no objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo desse Outro", que Lacan designa como o Deus obscuro (14).
A suprema violência consiste em legitimar uma violência constitutivamente performativa, "fazendo da ordem uma fatalidade" (15). Os atos mais terríveis podem ser praticados em nome da ordem, suficientes o bastante para transformar o algoz em vítima inocente, o que o livra de qualquer responsabilidade. Em suma, a verdadeira violência é condicionada por um impasse simbólico, uma espécie de passagem ao ato que se realiza pela foraclusão da ficção simbólica que garante o laço social. Num nível mais radical, trata-se de uma tentativa de dar um destino, por vezes catastrófico, ao excesso insuportável do gozo atrelado ao Outro.
Um retorno ao pai primordial
No nível político, hoje, o declínio da autoridade simbólica tradicional engendra a ameaça constante de um retorno ao pai primordial, aquele que estabelece a ordem encarnando a obscena figura do supereu em seu imperativo Goza! Proliferam-se "pais primordiais" nos movimentos políticos totalitários (ainda que numa versão pós-moderna de totalitarismo), tanto quanto nas seitas New Age.
Nossa era globalizada introduz novas formas de segregação do Outro. Basta pensar no desenvolvimento da xenofobia, do racismo e da purificação étnica como ocorrências nas quais o particularismo identitário luta contra a referência ao universal. Ao mesmo tempo, como alerta Zizek (16), vivemos um novo tipo de racismo, um racismo pós-moderno, um "meta-racismo", que pode perfeitamente assumir a forma de um combate contra o racismo. Essa resistência cínica pode ser encarada como uma das vicissitudes da atual abertura proposta pelo liberalismo e seu projeto de re-invenção da democracia e do discurso dos direitos humanos.
Entretanto, conforme argumenta Zizek (17), a diferença entre o meta-racismo e o racismo tradicional, direto e declarado, é absolutamente nula, uma vez que não existe metalinguagem. Talvez, exatamente por isso, a postura cínica do meta-racismo se torne mais ameaçadora, pois toda sua ambiguidade e seu enquadramento no politicamente correto baseado na ideologia que apregoa o direito à diferença, no fundo se apresentam como limites intransponíveis ao pensamento.
Nossa era é, também, a das imagens e a de um mundo instantâneo e sem memória. Em detrimento da ordem da palavra prevalece o imediatismo da imagem. Este último parece coisificar o sujeito, as relações que se estabelecem, o tempo e, enfim, o desejo. De acordo com os caminhos que se delineiam, o que fazer com o desejo quando o imediato ocupa seu lugar? Na medida também que o ideal do bem-estar transforma-se em unidade de medida privilegiada, o virtual, o descartável, o consumível organizam e ditam os caminhos a seguir. Nesse contexto, não causa admiração as múltiplas figuras que podem servir para encarnar a função de bode expiatório cuja eliminação permitiria garantir a ordem.
Esse movimento é congruente com o declínio da função paterna na atualidade, ensejando o dito de Lacan "prescindir do pai com a condição de dele servir". Essa máxima carreia todo o problema da identificação aos ideais, o que se institui como um dos pilares da servidão voluntária e dos vínculos passionais que alimentam o amor ao líder conforme a análise de Freud em "Psicologia da Massas".
Este trabalho introduz elementos fundamentais que distanciam a abordagem psicanalítica da perspectiva sociológica para pensar as relações sociais. A bipartição entre individual e coletivo é problematizada em termos da relação topológica entre ambos. A diferença entre a abordagem psicanalítica e a sociológica aparece ainda mais claramente em "Mal-Estar na Civilização", quando Freud aproxima os parodoxos da montagem coletiva da montagem amorosa, concluindo que o amor coletivo não consegue manter e sustentar o universal, pois sempre restará um resíduo inassimilável. Com isso, Freud denuncia algo que, no social, faz buraco e retira a possibilidade de uma pretensa unidade do Outro. Como exemplo, ressalta que todos os massacres de judeus na Idade Média, não bastaram para tornar mais pacífico e mais seguro este período para seus semelhantes cristãos.
A aguçada análise empreendida por Freud tanto em "Psicologia das Massas", como em "Mal-Estar na Civilização", levanta a questão relativa ao comprometimento político da psicanálise, com a ressalva do que isto possa significar, uma vez que não cabe à psicanálise interferir diretamente no que tradicionalmente se entende por questões políticas.
O comprometimento político da psicanálise envolve a dimensão amorosa dos vínculos humanos, estabelecendo um registro do amor e do laço social advertido da inconsistência do Outro e sua radical alteridade. Essencialmente, trata-se de uma política de resistência aos ideais que fabricam a tirania amorosa em suas mais diversas roupagens.
O desmantelamento de uma referência terceira serve de alimento à esperança de uma perfeita harmonia da relação sexual, justo o avesso do discurso psicanalítico e do impossível que se apresenta ao sujeito diante do duplo enigma: do pai e do feminino. Do ponto de vista psicanalítico, "prescindir do pai" não está à serviço de nenhum ideal de autonomia. Muito pelo contrário, a máxima de Lacan, "prescindir do pai", implica numa condição: a de dele se servir. Esta perspectiva de fazer um bom uso do pai, visa estabelecer um registro do amor e do laço social que reconhece o respeito ao pai como aquele que se defronta com a causa de seu desejo (isto é, assume a castração) e suporta o feminino.
No "Seminário RSI (19), uma de suas últimas elaborações acerca da função do pai, Lacan insiste em trabalhar de modo a tornar mais precisa essa questão de se fazer um bom uso do pai, trazendo novas referências teórico-clínicas. Utilizando-se dos nós borromeanos, Lacan introduz uma clínica ternária, isto é, uma clínica diferente da parte anterior de sua obra, quando o significante ocupava o lugar de destaque e a foraclusão do Nome-do-Pai indicava a distinção, mais simples naquela etapa de trabalho, entre neurose ou psicose. Segundo a nova abordagem teórico-clínica a partir dos nós, o gozo ocupará um lugar predominante, tornando claro que fazer um bom uso do pai é o único modo de nos livrarmos do excesso de gozo. Contudo, para chegar a essa formulação, fez-se necessária uma pluralização do Nome-do-Pai , fazendo deste um significante entre outros.
Os Nomes-do-Pai, no plural, implica que cada um tenha seu significante do pai, e até mesmo que possam existir vários significantes do pai para um mesmo sujeito. Trata-se, pois, de que alguns significantes conferem ao sujeito seu modo de inscrição no Outro. Esta inscrição não é apenas significante, mas também indica as marcas de um modo particular de gozo. O Nome-do-Pai é um modo de enodamento dos três registros: real, simbólico e imaginário, inscrevendo a mesma função que o sintoma. Portanto, Nome-do-Pai ou sintoma se configuram como um quarto termo idêntico aos outros, exceto por nomear o registro que enoda. O sintoma é, ao mesmo tempo, o traço particular do sujeito, onde encontramos a marca do pai, e o traço do gozo singular que escreve o objeto a, mais-de gozar.
Como um sintoma, o Nome-do-Pai não deixa de ser um sintoma muito particular, na medida em que é um quarto nó que suporta o simbólico e a ele se acha acoplado de modo privilegiado. Desse modo, o conjunto das teorizações propostas por Lacan acerca do pai e sua função, torna-se uma ferramenta de trabalho da maior importância para que os analistas possam articular problemas relativos às novas formas de sintomas como as toxicomanias, depressões e algumas psicoses. Cada uma delas parece apontar para diferentes modalidades possíveis de prescindir do pai e, certamente, este quadro amplia as dificuldades a serem enfrentadas pela psicanálise, diante dos desafios face às atuais demandas do mercado da saúde individual e social.
O reforço do declínio da função paterna
Mais acima tratamos do modo pelo qual a foraclusão do Nome-do-Pai impôs a Schreber uma resposta no campo do real. Seu deus não lhe impôs um sacrifício qualquer, demandando o sacrifício de sua virilidade. No real, lhe surge um gozo separado do sentido, e todo o esforço de Schreber para dar um sentido a esse gozo se deve ao terrível sofrimento que o invade em função da excessiva, e demasiadamente próxima, figura paterna. O exame da psicose de Schreber, a partir da relação entre sua "Alemanha particular" e a Alemanha nazista, pode evidenciar as condições particulares de sua tentativa de cura e estabilização delirante.
Contudo, para nos situarmos quanto a atualidade dos traços socias do sintoma e à degradação do laço social, encontramos na pluralização do Nome-do-Pai, proposta por Lacan, elementos que devem ser examinados em concomitância com o atual período de nossa história, no qual a hegemonia do discurso da ciência incrementa e reforça o declínio da função paterna. É suficiente lembrar as modernas técnicas de inseminação artificial, os fantasmas das clonagens e outros progressos dessa ordem que inflamam as discussões em torno das questões éticas em jogo.
Vivemos hoje, numa sociedade pluralista submetida a novos contratos que nem sempre podem ser claramente identificados. A mutação da organização social atual se deve em grande parte à migração do discurso da religião para o discurso da ciência o qual, gradativamente passou a agenciar o laço social na modernidade. O século XX pode, certamente, ser celebrado como o século do triunfo tecnológico. No entanto, está sendo também o da descoberta da fragilidade e do desamparo, impossíveis de suportar, que forçam suplências e mecanismos compensatórios, ensejando, de múltiplas formas, manifestações segregativas. O Outro hoje não garante nada e os não tolos sabem que o Outro (tal como o pai) não é senão, um semblante. Na era da errância, os sujeitos saem em busca do mais-de-gozar.
A realidade virtual acena com a possibilidade de se preencherem as lacunas, infiltrando no laço social uma temporalidade de tipo operatório que muitas vezes substitui uma temporalidade histórica e descontínua. Como efeito, emerge um conjunto de funcionamentos que incide sobre as referências simbólicas do sujeito. O simbólico contemporâneo encontra-se escravizado ao imaginário, sem brechas.
O apagamento dessa hiância produz também uma supervalorização da eficácia, ordenando imperativamente que tudo ande e funcione. A fim de satisfazer esse comando, os sujeitos sacrificam suas escolhas para não arriscar a cometer o crime de pensar. Dois exemplos marcantes desse quadro: o sexo virtual e as drogas da felicidade. Via ciberespaço, a proteção contra a mais difícil das questões humanas, o amor e a não complementariedade entre os sexos. No campo da saúde, os lançamentos da indústria química para sanar os males das depressões, várias inibições como a impotência sexual.
Além do avanço acelerado da medicina cosmética e das neurociências, estamos rodeados ainda pelas terapias alternativas, pela farta literatura de auto-ajuda, e, como se não bastasse, o aumento considerável de novas seitas religiosas anuncia o retorno de um culto religioso ao pai. Esse contexto coloca para a psicanálise o grande desafio de se manter no amanhã, o que não diz respeito apenas às suas possibilidades de eficácia terapêutica.
O maior desafio para o futuro da psicanálise está em se sustentar na contracorrente de uma realidade virtual globalizada, coalhada de promessas de felicidade puramente ilusórias. Desafio que nenhum analista deveria ignorar, o de preservar a descoberta freudiana como um artefato ético político e como um dos raros espaços para falar de vida e história.
Em seu romance "1984", Orwell, já se antecipara em descrever a utopia última de um mundo onde o simbólico não fosse mais capaz de perfurar o imaginário. Ele nos fala da criação de uma língua nova, em que as palavras se desembaraçavam de toda ambiguidade, nuances e expressões não ortodoxas, cujo objetivo final seria a repetição do mesmo e uma restrição do pensar. Uma linguagem, enfim, perfeita, coerente com uma linguagem psicótica, sem subjetivação, uma linguagem que permite falar, mas não permite dizer.
Este quadro, que Orwell institui como um dos pilares do totalitarismo e sua ideologia universalizante, de certo modo nos ajuda a pensar nos processos de segregação, atualizados em termos de uma supervalorização da eficácia da resposta certa, a qual, além de não admitir lugar para o fracasso, influencia na fixação de identidades.
A identidade consiste na ilusão de atravessar qualquer operação, qualquer transformação, e se reencontrar, exatamente o mesmo depois dela, permanecendo na exterioridade da experiência sem se envolver, e muito menos implicar-se neste processo. Com efeito, é a preservação desta ilusão que evita os riscos e a responsabilidade de sustentar uma diferença alteritária simbólica e não apenas reduzida à dimensão imaginária. Segundo a lógica da exclusão, que preside a possibilidade de sustentar uma diferença puramente imaginária, só é possível se servir do pai como ideal, reforçando as manifestações segregativas.
A impossibilidade de operar a separação desse registro nostálgico e imaginário do pai só serve para alimentar a gula do supereu e fomentar uma política da culpa. Conforme lembra Laurent (21), esta política consiste em tratar de obter de um agente ou um discurso, uma declaração de arrependimento e o pedido de perdão. A igreja pede perdão aos judeus pela omissão, Clinton pela vergonha da escravidão, a França por Vichy, entre tantos outros olhares de contrição sobre o passado. Mas sabemos que o perdão não assegura que, necessariamente, uma mudança possa ter sido operada.
Numa de suas crônicas, sob o título "Contrição", Veríssimo comenta que o que talvez pudesse salvar a humanidade, seria o "arrependimento preventivo". Mas este, de fato, é tão impossível, quanto qualquer pretensão de salvar a humanidade dos antagonismos inerentes à estrutura da realidade social, marcada por uma irredutível violência. Entretanto, o reconhecimento dessa irredutibilidade já seria um grande passo, este sim, de um verdadeiro progresso que não foraclui o sujeito.
NOTAS
(1) Gilsa F. Tarré de
Oliveira, Psicanalista
e Prof. Assistente da UERJ. Doutoranda em
Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
E-mail: gtarre@infolink.com.br
LACAN, J. O Seminário R.S.I.(1974/1975), Cópia impressa.
SANTNER, E.L. A Alemanha de Schreber: uma história secreta da modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
Op. cit.: p.11.
Op. cit.: p.56.
Op. cit.: p.58.
ZIZEK, S. The metastases of enjoyment. Six essays on woman and causality. New York: Verso, 1995.
SANTNER, E. L. op. cit.:p.127.
op. cit.: p.129.
op.cit.: p132.
SANTNER, E. L. op. cit.: p.57.
JERUSALINSKY, A "A superpotência". In: Psicanálise e ilusões contemporâneas. Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n.10, Porto Alegre: Artes e ofícios, 1994.
ZIZEK, S. Goza tu síntoma. Jacques Lacan dentro e fuera de Hollywood. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión SAIC, 1994, p.155.
LACAN, J. O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979, p. 259.
CANETTI, E. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
ZIZEK, S. L intraitable. Psychanalyse, politique et culture de masse. Paris: Antropos, 1993, p.180.
17. Op. cit.
LACAN, J. O Seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. O Seminário S.R.I. (1974/1975). Cópia
LAURENT, E. "La ética del psicoanálisis hoy". In: Freudiana n.23. Escuela Europea de Psicoanálisis de Catalunya. Barcelona: Ediciones Paidós, 1998.
Op. cit.
VERÍSSIMO, L.F. "Constrição". In: Jornal do Brasil, 1998.
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