"ALIENAÇÃO TAMBÉM É CRIME"

Haroldo Pedreira

Ô ôô ô ôôô
Ôô ôôô ôô
Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil!
Um lamento triste sempre ecoou
Desde que um índio guerreiro foi pro cativeiro
E de lá cantou.
O negro entoou
um canto de revolta pelos ares
Do quilombo dos Palmares
Onde se refugiou.
Era a luta dos inconfidentes
pela quebra das correntes.
Nada adiantou!
E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo desta terra
Quando pode cantar
Canta de dor!
Ecoa noite e dia
É ensurdecedor!
Ai! Mas que agonia!
O canto do trabalhador.
Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas
Como um soluçar de dor.
Ô ôô ô ôô
Ôô ôôôô ôô

"O CANTO DAS TRÊS RAÇAS"
Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte
Lançado e cantado por Clara Nunes pela EMI-ODEON 1976

"ALIENAÇÃO TAMBÉM É CRIME"(1)
Haroldo Pedreira

Embora tenha sido Freud quem concebeu o conceito de pulsão de morte, ele na verdade não se dedicou muito a descrever detalhadamente a ação dessa pulsão, e portanto da destrutividade, e os modos de que o aparelho psíquico dispõe para lidar com ela. Por contingências, dedicou-se mais a descrever a ação da pulsão de vida, a pulsão sexual.

Já Melanie Klein deu muita atenção - no começo, talvez até excessiva - à ação da destrutividade na vida mental. De fato, ela concebeu dois modos básicos de dar significado às experiências emocionais, conforme as chamadas posições - esquizoparanóide e depressiva - com base na maneira do aparelho psíquico lidar com a pulsão de morte, portanto com a destrutividade.

De modo muito rudimentar, pode-se dizer que Melanie Klein observou que a ação da pulsão de morte no psiquismo inicial é sentida como uma ameaça terrorífica à sobrevivência da pessoa, sob a forma de uma ansiedade de aniquilamento. A maneira mais rudimentar, mais inicial, de lidar com essa ansiedade, é ignorar que ela vem de dentro, concebê-la como vindo de fora, portanto do objeto, constituindo um sentimento de perseguição, e uma ansiedade de aniquilamento. O não atendimento de uma necessidade do bebê gera um estado de frustração, desperta ódio, não reconhecido como próprio, e que é cindido da personalidade e projetado no exterior, toda a situação de desconforto sendo agora concebida como resultante da ação agressiva de um objeto perfeitamente mau.

A este modo de atribuir significado à experiência Melanie Klein chamou posição esquizoparanóide, por sua semelhança com o que costuma ocorrer na esquizofrenia paranóide. A atividade do psiquismo consiste, entre outras coisas, em manter separadas as pulsões de vida e de morte, face ao terror de que a pulsão de morte domine o psiquismo, destruindo o organismo. Por meio desse sistema, ou seja, da cisão e da projeção da pulsão de morte para o exterior, é possível conseguir uma instável separação dessas pulsões. Evidentemente, se não há reconhecimento da destrutividade como própria, não há culpa nem remorso, de modo que a ansiedade predominante, nessa posição, é de aniquilamento (medo de ser destruído).

Se, dada a dotação genética e um ambiente de razoável satisfação das necessidades, o desenvolvimento é normal, pode-se passar para um outro modo de conceber o mundo e a relação com ele, chamado por Melanie Klein - por sua semelhança com os estados de luto e de depressão - de posição depressiva. Nesta outra maneira de atribuir significado à experiência, há maior consciência da separação entre sujeito e objeto, há o reconhecimento da destrutividade como própria, e portanto dos danos dela decorrentes ao objeto, que despertam culpa e remorso, e a atitude predominante é de procurar reparar os danos causados pela destrutividade, procurando dessa maneira evitar a perda ou destruição do objeto concebido como satisfatório.

Evidentemente, este é um resumo muito rudimentar. Não há, de fato, nenhum estado plenamente esquizoparanóide, nem tampouco plenamente depressivo. Há predominâncias, e oscilações constantes de uma posição para a outra. Deve-se entender ambos os sistemas não como fases do desenvolvimento, mas como formas de entender e lidar com a experiência, atuantes durante toda a vida do sujeito.

De qualquer modo, o que se espera, em termos de desenvolvimento, é que o sujeito se desenvolva de modo a entender a experiência predominantemente à maneira da posição depressiva.

Hanna Segal, reconhecida autora kleiniana, usando estes conhecimentos, escreveu dois artigos exemplares (2) , nos quais elaborou uma teoria do comportamento humano na situação de guerra, equiparando esse comportamento ao modo de funcionamento característico do esquizofrênico, ou seja, à posição esquizoparanóide. Destaquei estes artigos por sua indiscutível qualidade na discussão da questão da guerra, mas também pelo fato de refletirem uma teoria psicanalítica capaz de compreender a violência de modo geral.

Ela mostra muito claramente, nesses artigos, que, durante a Guerra Fria, "tivemos sorte". Documentos hoje disponíveis e testemunhos de altos escalões da administração da Guerra mostram com muita clareza que a sobrevivência do planeta esteve várias vezes em risco, durante esse período, risco esse ainda não afastado.

A propósito, ela cita a declaração estarrecedora de Robert McNamara, ex-Secretário de Defesa dos Estados Unidos, sobre a política "de defesa" dos Estados Unidos nos anos 60:

"Leia-se novamente o memorando do Presidente Kennedy. Hoje, fico apavorado só de ler essa coisa maldita. Significa que a Força Aérea favoreceu o desenvolvimento das forças americanas a um nível tão exagerado que, no caso de um primeiro ataque, destruiria uma parcela tão grande da força nuclear soviética que não sobraria nada para nos causar preocupação, caso atirassem contra nós. Meu Deus! Se os soviéticos soubessem que este era nosso objetivo, como vocês esperariam que reagissem? Reagiriam expandindo substancialmente seu programa de armamentos nucleares estratégicos."

De outro lado, confirmando as opiniões de Hanna Segal nesses artigos, o brigadeiro George Lee Butler, do alto comando militar norte-americano, um dos chamados ‘falcões’, com acesso direto ao botão deflagrador da guerra atômica, ‘responsável pelos planos de guerra com mais de 12 mil alvos, muitos deles a serem atingidos por repetidos golpes nucleares’, declara hoje à Folha de São Paulo, coisas como:

- foi "envolvido na ‘guerra santa’, confiando nas asserções do sacerdócio nuclear".
- descobriu no Pentágono que muitas das controvérsias em torno das armas nucleares e das ameaças da URSS estavam radicadas na política burocrática dos EUA e numa intensa disputa por algumas armas.
- (...) descobriu que "lidara com uma caricatura" durante os anos de guerra fria e, hoje, defende abertamente o fim do armamento nuclear, afirmando que ele não dá segurança aos americanos nem a ninguém. Para o brigadeiro Butler, a tese da dissuasão nuclear, além de cara, é perigosa.
- os constantes exercícios com armas nucleares criavam um risco rotineiro de sérios acidentes. Butler foi testemunha da queda de um B-52 quando treinava uma decolagem precipitada na Califórnia. Os dez tripulantes morreram.
- tripulações de bombardeiros saltaram para dentro dos aviões e ligaram as turbinas; equipes de lançamento de mísseis receberam ordens de se preparar para os códigos de disparo, e o então assessor de Segurança Nacional Zbignew Brzezinski, foi aconselhado a acordar o presidente Jimmy Carter com a notícia de que o país seria destruído em breve - tudo por causa de uma falha num chip de computador, de US$ 0,64, no centro militar de advertência de Colorado Springs.
- "Finalmente comecei a compreender com quem estávamos tratando: com um país do Terceiro Mundo, que se media usando o ‘metro militar’. Se eu estava enganado a esse respeito, sobre o que mais não poderia estar enganado?"
- Para Butler, está fora de moda a idéia de que, em algum lugar da Terra, poderia haver um problema militar - até um ataque com armas químicas ou biológicas - cuja resposta adequada fosse uma solução nuclear. Para Butler, a retaliação convencional seria menos prejudicial aos Estados vizinhos e menos horrorosa para os civis inocentes. "Não existem nações canalhas, mas apenas líderes canalhas".
- "Podemos fazer algo melhor do que justificar um mundo em que as armas nucleares são aceitas como um lugar comum". Considerar o poder apocalíptico dessas armas o árbitro definitivo de um conflito "codifica os mais assassinos instintos da humanidade como uma base legítima da guerra". (grifos meus)

Tudo isto está em estreita consonância com o que foi analisado por Hanna Segal, muitos anos antes, nos artigos citados e em outros anteriores, o que falaria a favor da correção de sua análise psicanalítica das guerras e da ‘Guerra Fria’. Para fazer essa análise, ela lançou mão de escritos anteriores de Freud, Glover e Bion, entre outros, e, claro, da teoria kleiniana. Isto significa que é possível uma aplicação de conceitos psicanalíticos à análise de situações sócio-políticas, e que pode servir de base para a análise da questão da violência. A propósito, ela faz uma análise interessante, também, da questão da neutralidade psicanalítica e da omissão dos analistas, sendo bastante crítica quanto ao silêncio das Sociedades de Psicanálise quanto a questões sociais importantes, como por exemplo o Nazismo, terminando por dizer, parafraseando N. Mandelstan - e esse é o título de um dos artigos que citei - que "O silêncio é o verdadeiro crime" contra a humanidade.

Para pensar a questão tão atual da violência, quero lançar mão, como apoio, dos dois artigos citados de Hanna Segal, e do livro "O povo brasileiro", de Darcy Ribeiro (3) , acreditando que cada um deles contenha o que de melhor foi produzido: no caso dela, em matéria de instrumentos interpretativos dos psicanalistas, e no caso dele, em matéria de instrumentos descritivos e interpretativos dos nossos sociólogos, antropólogos, historiadores e outros.

Hanna Segal disserta sobre a questão das guerras e da Guerra Fria, e mostra como uma nação, dominada num determinado momento histórico pelo que chamamos instinto de morte - que se exprimiria por uma busca de onipotência, de poder, e de submetimento de outros, portanto por impulsos destrutivos - nega a presença de tais impulsos em si, e os projeta num "inimigo externo", que aos poucos passa a ser encarado como o Império do Mal, justificando dessa maneira que, contra esse inimigo, se possam cometer quaisquer espécies de atrocidades, sem culpa nem remorso.

Lendo aqueles artigos, pensei que nós, brasileiros, não temos uma história muito significativa de guerras. De fato, afora as copas do mundo de futebol e outros eventos esportivos de menor repercussão, não temos outros enfrentamentos "aglutinadores da nacionalidade" que possam nos dar um sentimento de "união nacional", talvez o único resultado positivo de uma guerra. Mas isso não quer dizer que não tenhamos ‘guerras’. Minha idéia foi de que a história desses parcos 500 anos depois da invasão chamada ‘descobrimento’, é hoje a de uma guerra interna, de classes, ainda mais acirrada, de modo muito mais inconsciente que consciente. E hoje, talvez, muito agravada pelo que se convencionou chamar globalização.

Resumindo de forma evidentemente muito rudimentar a dissertação de Darcy Ribeiro, nossa história se compõe, depois das relações iniciais do descobrimento, de uns poucos surtos de desenvolvimento, baseados numa mentalidade predominantemente escravocrata. Assim é que, mercê do fato de os portugueses vindos para o Brasil serem quase todos homens, e do costume indígena do que se chamou ‘cunhadismo’- que consistia em ofertar aos estranhos suas mulheres, adquirindo por essa via ‘cunhados’, e aumentando, através da adoção do cunhado, o poder do grupamento - se operou inicialmente, e também depois, uma miscigenação branco-índio muito grande, cada branco engravidando diversas mulheres, e procurando colocar os índios homens a seu serviço. Barrigas indígenas reproduziam mestiços com brancos, e mais tarde com negros, o pai não assumindo responsabilidades com relação aos filhos.

Quando da importação de escravos, fenômeno semelhante se deu. Já que o objetivo da importação de escravos era lhes impor o trabalho pesado, também esse contingente era predominantemente masculino, e novas formas de mestiçagem se deram, o branco se servindo das poucas mulheres negras trazidas, mais para uso mesmo dos brancos, braçal e sexual, resultando em que os negros homens passam a cruzar com índias e com as negras já "usadas" pelo branco. A consequência, em termos de família, é a mesma que com as índias, ou seja, predomínio de famílias sem pai, barrigas agora índias e negras, crianças de diversos pais, de diferentes cores ou raças.

Tal relação, dos brancos com os índios, mediada pelo cunhadismo, convinha aos portugueses pela evidente razão de uma vida de ‘amor livre’, mas principalmente porque, sendo ‘cunhados’, essa relação de parentesco também facilitava colocar os índios homens a seu serviço. De qualquer modo, nossa história é uma história de escravidão forçada, tanto de índios e de negros, quanto posteriormente de ‘brancos’ e mestiços pobres. As conhecidas e reverenciadas "Entradas e Bandeiras" eram, na verdade, grupamentos que caçavam, matavam e submetiam índios e negros fugidos, cometendo contra eles as maiores atrocidades. Da parte destes, uma resistência a essa subjugação, tanto de índios, que chegavam a morrer de tristeza, quanto de negros, sempre existiu, em forma mais frequentemente incipiente.

A dominação e os maus tratos a que eram submetidos nunca foram suficientemente poderosos como para aculturá-los verdadeiramente. Por traz ou por baixo da adoção dos costumes dos brancos, e de uma certa adaptação, a cultura original era sempre preservada. Já os filhos resultantes dessa miscigenação vão aos poucos constituindo um povo novo, que não se identifica com índios, nem com negros, nem com brancos, e são uma mistura destes. Assim sendo, nativos, negros importados, e os filhos destes e de sua mistura com brancos, são mantidos durante toda a história do Brasil em regime maior ou menor de escravidão, a serviço daqueles que estão mais próximos da Coroa e do mercado externo.

A organização econômica é sempre uma função do mercado externo, passando pela Coroa, e estudos populacionais e relatos históricos mostram que um verdadeiro genocídio foi praticado, tanto de negros quanto de índios, seja pelo assassinato puro e simples, quanto pela contaminação, no caso dos índios, por doenças às quais eram sensíveis, bem como por condições de trabalho desumanas. Evidentemente, como naqueles artigos Hanna Segal vai demonstrar, o genocídio não pode ser executado assim, simplesmente, sem culpa e remorso, se não estiver estribado numa operação defensiva que consiste em retirar daqueles que serão dizimados e subjugados, sua condição de humano, de igual. Este componente racionalizador - no sentido psicanalítico - e não querendo reduzir a isto o papel da Igreja no Brasil - foi dado, muitas vezes, pela "não tão Santa" Igreja Católica.

Minha idéia, evidentemente formada a partir da opinião de outros, é que, ainda que a escravidão tenha sido legalmente abolida, a situação não mudou. Continuamos hoje numa situação em que uma minoria muito pequena, muito predominantemente branca, mantém uma enorme massa de "mestiços" em condições subumanas de vida, a seu serviço, sendo bastante dizimada pela fome, pela doença e pela ignorância. Essa minoria predominantemente branca não se identifica com a maioria mestiça, não a considera como "seu povo", nem adota sua cultura. Não está mais identificada com "a Coroa", mas com o que hoje se chama "Primeiro Mundo", de modo que temos duas culturas, uma branca, de "Primeiro Mundo", e outra mestiça, da maioria da população. Esta situação vem desde sempre, e se agravou por demais em anos mais recentes, com o surgimento do desemprego, e se exprime atualmente nos crescentes apelos da minoria branca - ameaçada pela crescente violência dessa população mestiça contra ela - por segurança.

Nos últimos 20 anos, mais, ou menos, estamos passando, a minoria branca, por um processo de desumanização, ao mesmo tempo em que se instala em nós também um processo de desumanização "do outro", ou seja, dos mestiços, que aos poucos, como descreveu Hanna Segal, vai sendo considerado por nós como não humanos e como "o Império do Mal".

Nós nos acostumamos, há mais tempo do que esses vinte anos, mas mais aceleradamente dentro desse tempo, com uma desumana distribuição de renda, que hoje atinge as raias do absurdo, alguns sendo extremamente ricos, enquanto outros são extremamente pobres, mas mais gravemente nos acostumamos com uma massa enorme de mendigos, de pessoas que vivem muito abaixo da chamada "linha da pobreza".

Nós nos acostumamos, de início com estranheza, a que deficientes, e depois mulheres, pedissem esmolas nos faróis. Acostumamo-nos, depois, de início com estranheza, a que essas mulheres portassem uma criança no colo, ao sol, nos mesmo faróis. Depois, ao fato de que tais mulheres ficassem ao longe, sentadas, enquanto suas crianças fossem diretamente os pedidores de esmolas. Ao mesmo tempo, talvez depois, acostumamo-nos que homens mais velhos o fizessem, e mais recentemente homens mais novos, desempregados, e mesmo muitos e muitos jovens no pleno vigor, que esmolam, tomam conta de automóveis, são "flanelinhas". E uma massa enorme de gente trabalha fora das condições legais, o que muitas vezes é até visto com bons olhos, como uma solução "criativa", a chamada "economia informal".

Paralelamente, adotamos medidas de proteção contra "o perigo que vem de lá". De início, os guardas particulares de quarteirão, à pé, depois de bicicleta, depois de moto. Depois, a guarita, para que o guarda tome conta de apenas uma quadra. Alguma casas têm sua guarita particular, para a guarda apenas daquela casa.

O "perigo que vem de lá" não é constituído apenas de bandidos e assaltantes, traficantes, e outros. Há uma parte organizada, legal, constituída pelos sindicatos, pelos movimentos preservacionaistas, pelo MST. Nós fechamos os olhos aos muitos líderes dessas organizações que vêm sendo assassinados no correr dos anos.

E vamos nos sentindo cada vez mais acuados, aprisionados em residências-fortalezas, em carros blindados, vigiados por seguranças. Talvez gastemos mais em segurança "extra" do que gastaríamos em distribuir melhor a renda, não incentivando dessa maneira as "soluções alternativas", das quais a criminalidade é uma.

Neste mesmo momento, a Rádio Jovem Pan faz uma campanha "Já fui assaltado - Diga não à violência", e muito frequentemente entrevista pessoas sobre a campanha. Muitas delas reforçam e defendem a necessidade de segurança, e consideram que a criminalidade exacerbada de nossos dias se deve à "impunidade". Ou seja, a solução é "punir", aumentar a atitude bélica, ignorando de certa maneira a quantidade enorme de pessoas que são mortas todos os dias em São Paulo por grupos de extermínio. Não se ouve falar, nessas entrevistas, da miséria e do desemprego como fatores de incentivo à violência.

Tendemos a acreditar, como mostra a teoria kleiniana e o trabalho de Hanna Segal, que não temos qualquer responsabilidade pela violência em curso, seja da minoria branca contra seu povo, não reconhecido como tal, seja - e principalmente - da maioria mestiça contra nós. Ou seja, como Hanna Segal tão bem mostra, paranóicamente negamos nossa própria violência, representada pela busca de bens, de poder, de submetimento do outro, projetando-a nele, de quem passamos a nos diferenciar, e a nos defender, autorizando que contra ele sejam cometidas "as maiores atrocidades".

A alternativa, depressiva, não nos convém. Não convém porque implica no reconhecimento de nossa própria violência, na assunção da culpa e do remorso, e, mais do que tudo, na conseqüente necessidade de reparação.

Cláudio, que assassinou o irmão, então Rei, e se casou com a viúva, tornando-se dessa maneira Rei, na famosa peça "Hamlet", de Shakespeare, ilustra muito bem, num momento de consciência "quase depressiva", as dificuldades da posição depressiva:

"Minha falta é podre. Recende aos céus. Carrego a mais antiga maldição: o assassinato de um irmão. Não posso rezar, embora a vontade seja imensa, pois a culpa, mais forte, derrota a intenção. E, dividido entre as duas tarefas, sem saber por onde começar, negligencio a ambas. E, se esta maldita mão estiver manchada de sangue fraterno? Haverá chuva do céu, suficiente para lavá-la? De que serve a piedade, senão para enfrentar o mal? E o que há, na prece, senão esta força que nos impede de cair, ou que nos perdoa quando caímos? Olharei para cima: minha culpa passará! Mas que forma de oração pode me servir?: "Perdoa meu vil assassinato?" Não pode ser, pois ainda possuo os bens pelos quais matei: minha coroa, minha ambição, minha rainha. Pode-se ser perdoado, e conservar a ofensa? Neste mundo corrupto, a mão criminosa comanda a justiça, e amiúde o produto do mal suborna a lei. Não é assim no céu. Lá, não há truques. Lá, a ação jaz em sua natureza real, e somos impelidos pela culpa a exibir as evidências. E, então, o que resta? Tentar o arrependimento, que tudo pode? Mas, e se alguém não puder se arrepender? Oh! estado miserável. Oh! peito negro, alma enlameada, que, tentando se libertar, mais presa fica. Ajudai-me, anjos. Tentai! Dobrai-vos, joelhos teimosos! Coração de aço, amolece como tendões de recém-nascido, e tudo ficará bem!"

Mas ele não se arrepende, e continua, racionalizando, seu trajeto criminoso.

Nessa encruzilhada, estamos também nós.

Que fazer? Reconhecer a "nossa falta", e reparar o dano, melhorando as condições do povo e resgatando-o dessa condição de miséria? Ou seguir o mesmo trajeto anterior, racionalizando, e nos convencendo que o mal "está lá", fora de nós?

Encerrando, gostaria de dizer que o bloqueio do desenvolvimento individual, que acaba por ser o uso, por parte do indivíduo, de repetidas situações de cisão e de projeção, conforme anteriormente exposto, resulta em que partes da personalidade da pessoa, e partes de sua história pessoal são projetadas, deixando de fazer parte da personalidade. Ainda que geralmente aquilo que é expelido, projetado, sejam as partes geralmente rejeitadas da personalidade, o que acaba ocorrendo, por força desse processo, é um empobrecimento gradativo do self. O processo analítico individual, portanto, visa restabelecer essas cisões, permitindo a recuperação das partes perdidas do self, colaborando para restabelecer também a história individual do sujeito, com o consequente enriquecimento da pessoa.

Acredito que o mesmo se dê em termos coletivos, isto é, também a consciência de nossa história coletiva é muito cindida. A história que é divulgada, a nosso respeito, enquanto coletividade, é muito cheia de lacunas e de estórias mentirosas ou parciais. Da mesma maneira que uma pessoa individual não pode se tornar forte e desenvolvida se sua história pessoal está cheia de lacunas e de estórias mal contadas, eu acredito que enquanto nação não podemos nos tornar fortes e desenvolvidos enquanto não nos apossarmos de nossa verdadeira história, o que implicaria, de certa maneira, em estarmos mais identificados e integrados enquanto povo.

A recuperação da história individual é possível no processo de análise individual. A recuperação da história coletiva é possível, creio, no processo político.

NOTAS

1 - Este título é alusivo ao título do artigo "O silêncio é o verdadeiro crime", de Hanna Segal, que, por sua vez, o extraiu de N. Mandelstam, Esperança contra Esperança (1971)

2 - "O silêncio é o verdadeiro crime"(1985), de "De Hiroshima à Guerra do Golfo e depois: expressões geopolíticas de ambivalência"(1995), que constituem respectivamente os capítulos 13 e 14 de "Psicanálise, Literatura e Guerra"(1998), Ed. Imago, Rio de Janeiro - RJ

3 - RIBEIRO, Darcy - (1995) "O povo brasileiro", Companhia da Letras, Ed. Schwarz Lt. São Paulo, SP.

Haroldo Pedreira
F-813-5161
haroldop@uol.com.br


Clique aqui para voltar à página dos Estadps Gerais da Psicanálise de São Paulo
  http://www.oocities.org/HotSprings/Villa/3170/EG.htm