DO KHAOS CÓSMICO AO CAOS PSÍQUICO
Ignacio Paim Filho, Giovana Borges e Luiza Luderitz Hoefel
"No Princípio Deus criou o Céu e a Terra . A Terra , porém, estava vazia e nua, e as Trevas cobriam a face do Abismo; e o Espírito de Deus era levado por cima das Águas."(Gênesis, cap.1, vers. 1 e 2 , Bíblia )
A Mitologia nos oferece a oportunidade de pensar,de forma estética, nos conflitos universais.
A franqueza e objetividade com que são tratadas as peculiaridades humanas e as vicissitudes da existência, nos confronta com questões que atravessaram a História e que continuam a despertar a curiosidade e um enorme desejo de compreensão .
Freud freqüentemente faz uso tanto da Mitologia quanto da Literatura , por reconhecer a parcialidade da Ciência e suas limitações, por um lado, e por acreditar que, tal como o psiquismo humano, a ciência possui também seu inconsciente, e que o discurso desse inconsciente é o Mito.
Os autores se propuseram a, utilizando o mito da Cosmogonia, pensar na estruturação do aparelho psíquico.
Partimos dos Deuses Primordiais Khaos, Eros, Terra e Tártaro - considerados elementos fundadores do Cosmo e fizemos uma analogia entre a Criação Mitológica e a Criação do Aparelho Psíquico, na Teoria Pulsional
Consideramos a Pulsão, como tendo na sua Mitologia, todos os enigmas do Khaos originário, comportando todos os desvios e toda a desordem. Bem como este, também a Pulsão vai buscar um objeto para poder ser significada.
NA MITOLOGIA
"Sim, bem primeiro nasceu Khaos, depois também
Terra de amplos seios, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre deuses imortais,
solta membros, dos deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade."
(Hesíodo, Teogonia,a origem dos deuses, sec. VII A C
Khaos, que significa entreabrir-se, abismo insondável, personifica o vazio primordial, anterior a tudo. É o primeiro, pré existe: existia sempre, coexiste com o mundo formal como imensa e inexaurível fonte de energia, e continuará existindo. É onde se dissolverão as formas no fim dos tempos.
Trata-se da força que preside a separação , o fender-se, o dividir-se, o procriar por cissiparidade, e que vai originar Terra, Tártaro e Eros.
O que provém diretamente de Khaos, como ele, pertence à esfera do não ser . Todos os seus descendentes são forças de negação à vida e à organização.
Khaos coexiste, envolve e como que seduz as divindades que dele se originam, para o retorno ao estado anterior Sua prole, quando age sobre a Terra e seus descendentes, tem esse objetivo.
. Tártaro, "no fundo da Terra", simétrico e negativo a ela, é lugar de queda sem fim, identifica-se mais com Khaos. É para onde são mandados todos os seres indesejados e expulsos nos diferentes momentos da Teogonia. Em algumas versões do Mito, Tártaro não tem descendência, em outras origina monstros terríveis.
Eros preside a união amorosa, domina sobre os deuses e sobre os homens. Representa o desejo de união, de acasalamento, que existe em todos os seres e, ao qual, não se pode opor resistência. É o "solta-membros".
Eros, incrível ironia, não tem descendentes.
Terra, "de todos sede irresvalável sempre", é a sagrada origem de tudo, contém todas as sementes, é a promessa de vida, segurança e firmeza.
Estabelece-se, então, uma oposição especular que representa a relação íntima, profunda e constante entre o Ser e o Não Ser.
Esta relação de convivência e coexistencia dialética, estabelece-se desde o primeiro momento, quando, por cissiparidade, Caos origina Terra, Tartaro e Eros: Eros e Terra representando o Ser e Caos e Tártaro representando o Não Ser.
Não se sugere em que circunstancias ou com qual motivação: de repente.
PRIMEIRA TENTATIVA DE COMPREENSÃO
"Chega às margens do Céu o grão cortejo,
Donde descobre o Abismo imensurável
Que, semelhante ao mar, todo se agita
Escuro, destrutivo, furibundo,
Erguendo vagas que afiguram serras
Contra o Céu dirigidas ameaçando...
...e disse- "Os teus confins, ei-los ó mundo;
Estende-te até aqui, daqui não passes."
Deus de uma vez, assim fez Céus e Terra
Contudo inda matéria inerte e informe,
Do Abismo imersa na profunda noite."
(Milton, O Paraíso Perdido, sec. XVII )
Esse primeiro momento no Mito da criação do mundo pode ser visto como uma tentativa de personificar elementos absolutamente incompreensíveis e incontroláveis do universo e do indivíduo.
É a incapacidade de entender o mistério da origem e do sentido de tudo aquilo que está além do mundo aparente, a essência misteriosa do Ser, absolutamente rebelde a qualquer tentativa de organizar e compreender, que leva o homem a criar teorias.
A angústia do desconhecido determina a absoluta necessidade de aproximar o inalcansável de algo passível de ser pensado, contado, embelezado, temido e desejado, e que comporte as características mais humanas.
E essa necessidade é por si só uma característica bem humana.
UMA COMPREENSÃO PSICANALÍTICA
"Antes de haver o mar e as terras, e o céu que cobre tudo, a natureza inteira tinha a mesma aparência, chamada Caos; massa bruta e informe, que não passava de um peso inerte, conjunto confuso de sementes das coisas.(...) A terra, o mar e o ar se confundiam, a terra era instável e os mares inavegáveis, o ar carecia de luz: coisa alguma ostentava a sua própria forma, umas coisas se opunham às outras, eis que, em um só corpo, o frio lutava com o calor, a umidade com a secura, o que era macio com o que era rígido, o que não tinha peso com o pesado."
(Ovídio: As Metamorfoses, sec. I )
Em uma aproximação psicanalítica podemos compreender esse primeiro momento, como de organização primária: o Caos representando o reservatório, fonte de energia, pré existente, desorganizado, violento. Tendência dialética que comporta a semente do Ser - Terra , Eros- e do Não Ser Caos, Tártaro-, de onde tudo provém : o reservatório Pulsional.
Do Caos se origina a Terra, sobre a qual age, a qual envolve e seduz. Poderia representar o início daquilo sobre o que vivemos, elemento que permite as primeiras relações, o pensar, o tornar-se humano.
Ao mesmo tempo que origina Terra, origina também Tártaro, continuador de Caos e seus descendentes, representantes da destruição, do ódio, do que vem primeiro, ou seja, a Pulsão de Morte.
E também Eros, que representa seu oposto: união, amor, síntese, construção, acasalamento. A energia libidinal que impele a existência a se realizar na ação: a busca do objeto. Provoca a junção dos elementos primários essenciais que permitem, que geram a vida, que poderá acontecer ou não.
A Pulsão de Vida coexiste com a Pulsão de Morte, em luta interna, permanente, entre o Ser e o Não Ser, o nascer e o não nascer psiquicamente, ou seja sobre a Terra.
O Caos pulsional Khaos, Tartaro opondo-se à ordem Eros no aparelho psíquico Terra.
Da mesma forma que Khaos e Eros pareiam a Terra com seus desígnios de desunião, separação , cissiparidade, por um lado e de união erótica, junção pelo outro, assim também as pulsões de Morte Caos e de Vida Eros sobre o aparelho psíquico.
Freud concebeu o conceito de pulsão como algo que tem como fonte o corpo, os órgãos. A diversidade das fontes não confere diferenças qualitativas às pulsões, que embora quantitativamente múltiplas, são qualitativamente idênticas, da mesma índole.
Em si, a pulsão não possui ordem alguma. A pulsão é vazia, pura e simplesmente.
Apesar de considerar da mesma índole, Freud sempre se preocupou em distinguir grupos pulsionais dialeticamente orientados.
Em 1930, Freud vai afirmar a absoluta autonomia da Pulsão de Morte, como pulsão de destruição, sendo a destruição considerada "disposição pulsional autônoma, originária do ser humano" tão autônoma quanto a Pulsão Sexual.
A Pulsão de Morte, invisível e silenciosa, está além da representação coisa e da representação palavra, fora do aparelho psíquico e de suas determinações. A Pulsão de Morte está além do Princípio do Prazer, além do próprio aparelho psíquico, além da ordem, é pura dispersão, pura potência dispersa. É a Pulsão por excelencia. Potência destruidora que, assustadoramente, visa o retorno ao inanimado, à morte.
Enquanto a Pulsão Sexual se situa sob a égide do Princípio do Prazer, é referida ao aparelho psíquico e inerente ao espaço representacional
A única organização imposta às pulsões é a que decorre da estrutura de significantes e que vai originar, num segundo momento, as grandes necessidades. Essas dizem respeito não à natureza sexual das pulsões, mas à exigencia de satisfação, só possível se mediada pelo objeto.
O dualismo, então, não é de natureza mas de modo da pulsão: modo de presentificação no aparelho psíquico. Podemos conceber dois modos: conjuntivo e disjuntivo. Se se presentifica cindindo, fendendo, separando é a Pulsão de Morte- Caos. Se se presentifica juntando, unindo, é a Pulsão de Vida Eros.
Mas, como nos diz Freud, a Pulsão de Vida está de acordo com a cultura e visa, desmanchando as diferenças e singularidades, aproximar os indivíduos na totalidade da humanidade, uma indiferenciação final.
Enquanto a Pulsão de Morte, potência disjuntiva, impede a repetição "do mesmo", se interpõe frente a permanência das totalidades e provoca o surgimento do novo.
Assim sendo, Khaos, a Pulsão de Morte é na verdade a potência criadora enquanto Eros, Pulsão de Vida tem uma função conservadora, repetidora.
Eros é o que presentifica a letalidade e a destruição.
O mesmo Eros que representa o Ser, traz em sua essência o Não Ser.
Não existe, pois, uma verdade absoluta.
Na manifestação das pulsões estão presentes o Ser e o Não Ser, a verdade e o engano.
Da mesma forma que do "abismo imensurável...escuro, destrutivo, furibundo "- Khaos se origina o Ser e a Ordem, do "mais belo entre os deuses imortais, solta membros dos deuses todos e dos homens todos "se origina a igualdade, a indiferenciação e a destruição.
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