SUPERVISÃO
EM VARAS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE
NA PERSPECTIVA DA PSICANÁLISE*
Isabel da Silva Kahn Marin
* Versão adaptada do trabalho apresentado na Mesa Redonda "Os Diferentes enfoques sobre a Supervisão para Psicólogos do Tribunal de Justiça", no III Congresso Ibero-Americano de Psicologia Jurídica em São Paulo, agosto de 1999.
Essa apresentação reflete sobre algumas questões suscitadas pela supervisão realizada junto a psicólogos e assistentes sociais de Varas da Infância e Juventude.
Um primeiro ponto a ser considerado diz respeito ao lugar que a escuta psicológica, particularmente influenciada pela psicanálise, ocupa dentro de uma instituição jurídica onde a clientela atendida está sendo julgada. Se um dos princípios básicos do trabalho psicológico é a neutralidade e a supressão de julgamentos para permitir que a pessoa atendida possa expressar seus conflitos e encontrar formas de enfrentá-los, indaga-se como fazer isso quando já existe um submetimento a uma culpa ou uma expectativa de resolução colocada nas mãos de um poder absoluto, que o judiciário representa.
É evidente que tanto psicólogos quanto assistentes sociais não podem fugir do seu papel que é o de se responsabilizar por um parecer sobre os casos que atendem. É fundamental que encontrem os meios de restabelecer a possibilidade de que as pessoas atendidas tornem-se sujeitos de sua história. O processo judicial deve refletir a reconstrução do processo histórico da família, realizado conjuntamente com esses técnicos.
É importante considerar a especificidade do trabalho que a Vara apresenta e o imaginário que ele mobiliza. Poderíamos sintetizar a problemática básica desse serviço em dois pontos: de um lado, o confronto com o fracasso da família, o desmoronar de um mito. É a família que não dá conta de sua criança, abandonando-a, maltratando-a, não sabendo cuidar e pedindo ajuda do juiz poderoso e sábio. Nos casos de adoção, muitas vezes trata-se de famílias que não conseguem ter seus próprios filhos, o que leva a forte sentimento de impotência. Por outro lado, verifica-se a tendência de se identificar a criança como impotente, coitada, que sofre.
O perigo é, entre esses dois pólos, o profissional da Vara colocar-se em um lugar mágico, onipotente, salvador, encontrando um bode expiatório para onde a responsabilidade pelo mal poderá ser colocada. Por exemplo, pode-se apontar precipitadamente um dos cônjuges como o culpado por apresentar comportamentos prejudiciais; ou considerar a situação sócio-econômica como o único determinante; ou ainda responsabilizar o colega de equipe de trabalho pela dificuldade do encaminhamento do caso. Encontrar um lugar que não culpabilize ainda mais os pais e que não super proteja as crianças torna-se um grande desafio, pois é a única possibilidade de se poder, de fato, reintegrar a criança ao convívio familiar que é objetivo importante do trabalho da Vara da Infância, por ser direito absoluto da criança.
É importante considerar-se a ferida narcísica que sofrem as famílias atendidas nesse contexto. É não encarar essa ferida que leva, muitas vezes, à prática do abandono ou de maus tratos, como forma de afastar a angústia que a demanda da criança traz. O profissional depara-se, portanto, com a necessidade de rever a questão dos mitos familiares. De um lado todos vivem a ilusão do "casar e viver feliz para sempre" e com a concepção de família associada à idéia de refúgio, referência, segurança, proteção, união e amor. Por outro lado, é só lembrar o que apontam os mitos clássicos de nossa cultura para constatarmos como a família contém sentimentos de rivalidade, ódio, ciúmes, cabendo o fratricídio, o parricidas ou filicídio. O conceito de mito familiar, fundado por A. J. Ferreira e adotado por estudiosos e terapeutas familiares, propõe "um sistema de crenças compartilhado por todos os membros da família a respeito de seus papéis mútuos e a natureza de sua relação" (1974, p 156). Esse sistema tem provavelmente origem num episódio real, difícil de ser assumido pela família, como rivalidade, morte, estupro, assassinato etc. em torno do qual constróem-se fantasias que podem reafirmar o sentido de união, amor e proteção daquele grupo. Pincus e Dare (1981) afirmam que segredos e mitos se fundamentam sempre no poder e na dependência, no amor e no ódio, no desejo de tomar conta e no desejo de ferir, emoções que estão inevitavelmente ligadas ao sexo, nascimento e morte. Se existe um forte é para ajudar um fraco, se há o mal aluno há também o bom para garantir aos pais que eles não erraram, e assim sucessivamente, através das gerações. Há na família, portanto, uma dinâmica que pretende dar conta de toda a angústia que pode ser e é suscitada no processo de socialização de qualquer ser humano. Por isso é um sistema tão poderoso e difícil de ser desmistificado.
Por outro lado, a família que procura ou é chamada pela justiça vive um momento de quebra desses mitos tanto o de seu próprio quanto o do imaginário social. Como nos aponta a teoria do mito familiar, esse sistema tende a se reorganizar rapidamente e a procurar um bode expiatório que responda por toda a culpa pelos problemas. É muito perigoso que o técnico do judiciário também caia nessa tentação. É fundamental relembrarmos que todos os membros da família estão envolvidos nessa trama e respondem por parte da violência em questão. Os sentimentos hostis e a fragilidade são sentimentos humanos e tendem a ser negados e projetados em outros. De um lado, as crianças sem dúvida frágeis, dependem da proteção do adulto, mas são, por outro, e como nos revela a psicanálise, pequenos tiranos que conseguem mobilizar o sentimento de impotência dos pais, sem falar no seu poder de sedução - o pequeno perverso polimorfo (Freud, 1905). Sabe-se também o quanto, muitas vezes, as mulheres (mães) são omissas frente a violência ou abuso sexual de seus maridos sobre seus filhos, revelando assim, sua fragilidade ou necessidade de prazer e proteção, o que nos leva a refletir sobre o mito do amor materno. Torna-se fundamental, portanto, que o psicólogo possa ter uma escuta que contemple todas essas subjetividades, reconhecendo as necessidades de cada um, entendendo a dinâmica daquele grupo, ajudando todos a reconhecerem suas fraquezas, impotências e procurando resgatar formas mais aceitáveis de satisfação de seus desejos. A partir daí, espera-se que cada um possa reassumir sua força, descobrir seus direitos e responsabilizar-se pelos seus atos. Por vezes é necessário procurar soluções que passem por alternativas fora da família. Pode acontecer a separação de casais que vinham mantendo relações destrutivas ou de cumplicidade perversa em prejuízo dos filhos. Em outros casos é fundamental que os técnicos, depois de terem sido feitas todas as tentativas de encontrar os recursos tanto emocionais quanto materiais para que a família reintegre sua criança, assumam a responsabilidade de separar o filho de seus pais. Esta decisão mobiliza em todos um forte sentimento de desamparo, inerente a todo ser humano, quando ele se percebe desprotegido frente às suas necessidades pulsionais , principalmente pela possibilidade da perda de seus entes queridos, associados "naturalmente" aos pais. Assim, deve-se ter a coragem de ouvir a família que fracassa, permitindo a reconstrução de sua história, pontuando os ódios, os medos, as tentativas de negação. Submeter essa família aos equipamentos sociais de apoio e referência se faz necessário. É preciso também responsabilizar a família de seus atos, oferecendo alternativas de encaminhamento. Se ela se mostrar de fato incompetente, existem alternativas para seus integrantes. Pais podem refazer suas vidas, reestruturarem-se. Crianças podem ser abrigadas, guardadas ou adotadas. O abrigamento é a alternativa menos apreciada, mas seria evitada se assumíssemos a possibilidade de desconstrução do mito familiar: ouvir uma mãe que sofre sem julgá-la, oferecendo-lhe alternativas às vezes até afastando seu filho temporariamente para que ela se reorganize, garantindo creches que não julguem pais que trabalhem e querem se divertir, com vagas para todos; permitir que as crianças abrigadas não sejam vistas como seres estranhos, sem história e sem direito a futuro, já que privadas do convívio familiar; valorizar a relação com o educador que mesmo sem ser pai biológico pode ser uma figura referencial significativa e mesmo afetiva que dá condições para que a criança acredite no relacionamento humano e queira investir afetivamente em alguém. Neste aspecto, quero reafirmar a importância da equipe técnica do judiciário comprometer-se com o acompanhamento das instituições de abrigo, exigindo que elas cumpram eficaz e dignamente seu trabalho. É fundamental, também, que os psicólogos ajudem as famílias de apoio, guarda e adoção a assumirem de fato este projeto, podendo lidar com suas ambivalências e não superestimando "amor entre pais e filhos". As situações de ambivalência negada, tão freqüentemente observadas nesses casos, têm levado à histórias muito mal sucedidas para algumas crianças.
A partir dessas considerações, penso que o lugar da supervisão para os profissionais da vara da Infância e da Juventude seria justamente o de poder garantir um espaço de "suspensão de julgamento" onde se pudesse fazer circular novamente todos os elementos constitutivos das tragédias familiares que ali se apresentam: poder deixar que os personagens falem , atuem e construam seus dramas pessoais. Quem faz falar seus personagens são os técnicos que buscam essa supervisão. O que se espera deles é a solução mágica, o restabelecimento da ordem que é nada mais do que o restabelecimento do mito familiar. Como procurei apontar é preciso desconstruir esses mitos e permitir que surjam os espaços de dúvida para que se encontre o sentido do fracasso de cada uma das famílias e que as crianças e jovens possam encontrar o seu lugar de cidadão de direitos como lhe garantem a lei.
Penso ter demonstrado que esse trabalho suscita forte sentimento de desamparo por colocar em questão os mitos que nos constituem a todos. Uma possível saída frente a esta impotência é assumir uma postura onipotente e usar o poder da lei não para organizar mas para dar um veredicto que rapidamente encontra o culpado. Não se trata, evidentemente, de desresponsabilizar os sujeitos pelos seus atos mas, até mesmo para que possam admiti-los, trata-se de encorajá-los a encarar sentimentos habitualmente renegados pela cultura. Reconhecer , portanto, a possibilidade de existir sentimentos de raiva e inveja entre pais e filhos é importante, tendo claro que isto não significa espancamento, violência e abandono.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERREIRA, A. J. "Mitos familiares" in Interaccion Familiar.Org. Carlos Sluzki, Tiempo Contemporaneo, Buenos Aires, 1974
FREUD, S. "Três ensaios para uma teoria da Sexualidade (1905) Edição Standart Brasileira das Obras completas, vol. VII, RJ, Imago,1963
SUPERVISÃO EM VARAS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE NA PERSPECTIVA DA PSICANÁLISE
Isabel da Silva Kahn Marin
RESUMO
Esta a apresentação reflete sobre questões suscitadas pela supervisão realizada junto a psicólogos e assistentes sociais de Varas da Infância e Juventude, pontuando o lugar que a escuta psicológica, particularmente influenciada pela psicanálise, ocupa dentro de uma instituição jurídica onde a clientela atendida está sendo julgada. Se um dos princípios básicos do trabalho psicológico é a neutralidade e a supressão de julgamentos para permitir que a pessoa atendida possa expressar seus conflitos e encontrar formas de enfrentá-los, como fazer isto quando já existe um submetimento a uma culpa ou uma expectativa de resolução colocada nas mãos do poder do judiciário?
Destaco a especificidade do trabalho das Varas da Infância e Juventude em dois aspectos: (i) confrontar-se com o fracasso da família que não dá conta de sua criança e (ii) identificar a criança, como impotente, coitada, que sofre. Esse trabalho é difícil pois mobiliza em todos um sentimento muito forte de desamparo que é inerente a todo ser humano. Refiro-me ao indivíduo desprotegido frente a suas necessidades pulsionais , principalmente pela possibilidade da perda de seus entes queridos, associados "naturalmente", em nossa cultura, aos pais. O desafio é encontrar um lugar que não culpabilize ainda mais os pais, que não super proteja as crianças ou que até que abra espaço para questionar a infalibilidade da família. Temos então um novo problema relativo à urgência imposta para salvar uma criança: de um lado esse é o objetivo fim da própria instituição, e de outro pode ser uma forma de resolver a angústia do profissional suscitada pelo sentimento de desamparo. Corre-se aí o risco da emissão de pareceres precipitados, preconceituosos ou que elegem bodes expiatórios.
Isabel da Silva Kahn Marin
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