Sem ou Cem?

Sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa psicanálise

Karin Slemenson

Outubro/1999

Apresentação

A Pesquisa que venho desenvolvendo versa sobre possíveis formas de incluir e manejar o dinheiro em uma psicanálise e suas conseqüências. O contexto de grande parte das questões encaminhadas nesse trabalho de pesquisa é o da prática clínica que venho desenvolvendo no âmbito do Fórum de Psicanálise.

A caracterização do Fórum de Psicanálise assumida no trabalho é menos o de uma instituição dedicada a uma "especialidade clínica" – como por exemplo tratamento infantil, droga adição, etc. – mas sim a de uma instituição marcada por uma singularidade, qual seja, a disposição de confrontar-se com particularidades e dilemas da clínica psicanalítica.

Uma destas particularidades – que necessariamente apontam para dilemas – é o fato de que a instituição tem a proposta de dirigir-se às pessoas de baixa ou mesmo de nenhuma renda. Isto posto, a questão do dinheiro – de ter ou não dinheiro – é não apenas uma questão de origem ( fundante da própria instituição), como também uma questão significativamente recorrente na experiência clínica.

A criação e a continuidade do Fórum de Psicanálise em si mesmas sinalizam para a postura que acata a pertinência da discussão do dilema dinheiro vis a vis a possibilidade analítica. Este, no entanto, não é o foco de reflexão que visei a contemplar na dissertação. O que foi privilegiado é a questão do dinheiro tal qual se manifesta no contexto do cotidiano da experiência psicanalítica abrigado por esta Instituição. Naturalmente, alguns aspectos, dados históricos, conjunturais e de funcionamento do Fórum de Psicanálise foram abordados; entretanto, isto foi empreendido exclusivamente na medida em que tais elementos ofereceram subsídios para a constituição do campo no qual tinha por objetivo transitar.

A questão fundamental do trabalho é indagar o que é o dinheiro numa Psicanálise. A falta (ou o excesso) de dinheiro pode constituir um impasse para uma análise? Do que se fala quando se fala em dinheiro numa análise? O que se paga num tratamento psicanalítico? Uma mercadoria? Uma prestação de serviço? Um saber? Qual o preço de uma análise? Qual o lugar da referência ao dinheiro numa análise: no contrato, na porta de saída no momento do pagamento ou no divã? (o dinheiro no divã?) O dinheiro tem o mesmo valor dentro e fora de uma análise? Se não, qual o enlaçamento desses valores? Pode uma análise produzir a depauperação ou o enriquecimento de um sujeito? O que pode ser o dinheiro para um sujeito? O que o dinheiro pago pelo sujeito pode ser para o analista? Quais as conseqüências disso para o sujeito em análise? Como poderia o analista não receber dinheiro por sua escuta? Movido por qual "interesse"? Se sim, há conseqüências para o tratamento?

No que tange especificamente à falta do dinheiro, pode-se inquirir sobre a possibilidade da clínica psicanalítica sem dinheiro, isto é : é possível haver uma análise sem dinheiro? Qual a relevância de pagar uma análise com dinheiro? Qual a relevância desse pagamento para que uma análise se produza? Há algo de específico sobre o dinheiro em uma análise?

A perspectiva adotada no trabalho é a de que o encaminhamento produtivo destas questões se faz possível apenas através do deslocamento do significante dinheiro da arena sócio-econômica para o domínio da economia psíquica. Neste domínio, o dinheiro – em falta ou excesso – é passível de outras tantas atribuições. Isto significa dizer que, no que mais precisamente interessa ao recorte operado no trabalho, isto é, a falta de dinheiro, é possível aventar que esta falta pode estar referida a toda e qualquer sorte de falta, mais exatamente toda e qualquer "coisa" que aponte para a falta.

– O DINHEIRO COMO SIGNIFICANTE PARA UMA PSICANÁLISE

O que pode atribuir de saída a este significante - dinheiro - um lugar especial em relação aos outros da fala do sujeito em análise, se o que se coloca como significante para um sujeito pode ser qualquer "besteira" e se portanto implica sempre a ordem do particular?

Proponho, aqui, equacionar possibilidades de respostas a esta questão segundo os seguintes aspectos :

1) Na relação transferencial estabelecida em uma análise, o dinheiro circula no espaço entre as partes envolvidas no processo, não estando nem de um, nem do outro extremo dessa relação, mas na sua mediação. A circulação do dinheiro marca limites para o analista e para o analisante . Resta saber se este limite pode ser sustentado pela circulação de dinheiro exclusivamente na realidade do discurso em análise, ou seja, não em sua materialidade física, como seria o caso de uma análise "gratuita".

2) Aventa-se aqui, que seja possível, propor uma certa inclusão e manejo do dinheiro que o leve em conta como um dos objetos marcados pela castração e que por tanto se refere ao ponto de interseção entre necessidade (satisfação pulsional na imediaticidade do corpo), demanda (transcrição do desejo no plano da linguagem )e desejo (pressão da força gerada pela falta-a-ser).

Se for assim, a questão do dinheiro circunscreve a própria "arquitetura" e a própria "economia" do desejo do sujeito, do ciframento que permite a construção da condição de deciframento. A idéia envolvida aqui é de uma operação mais complexa do que uma simples transposição de campos, de uma "tradução", mas de estabelecer parâmetros para a construção de uma condição de possibilidade de "deciframento".

É imprescindível notar que, o que é colocado visa fundamentar uma proposta que pretende marcar um campo de escuta da questão do dinheiro em Psicanálise, sem pretender inscrever-se como uma discussão sobre a essência do dinheiro. Até porque, ao definir-se aqui por uma doutrina do significante está-se abdicando da idéia de substância em benefício da apreensão da estrutura.

Se aceitarmos estas idéias, concordaremos que, na condução de um processo analítico, não se pode reduzir o dinheiro à presença física da moeda ou às quantidades previamente definidas num contrato ou mesmo ao cumprimento pontual do pagamento. O que está em foco é o que disso é falado e que está na dependência de uma escuta diferenciada. Como o dinheiro é incluído e manejado em uma análise?

Certa vez, quando apresentava a proposta a pesquisa para o grupo de orientação, no contexto acadêmico, uma colega comentou: "Se o paciente não pode pagar e para você tudo bem não receber, então tudo bem!...qual é a questão?" . Trata-se, ao meu ver, de uma questão delicada e importante para a perspectiva que se procura apontar aqui...

O dinheiro parece ser oferecido pelo analisante como pagamento ao analista na expectativa de que este o livre de seu sofrimento.

Então, se em uma análise o dinheiro é tomado como um elemento significante da condição desejante do analisando, isto é, destituído de substância, este será oferecido segundo uma referência particular de valor e na medida em que o sujeito esteja disposto a livrar-se de seu sofrimento gerado por seu sintoma. Considerando que isto exige dele a renúncia aos ganhos secundários envolvidos no sintoma, tal disposição de pagar por uma análise envolve , do ponto de vista da economia psíquica do sujeito, perda narcísica . Então, em uma análise, paga-se para perder.

Por outro lado, este "valor" será entregue como pagamento ao analista que testemunhou um trabalho (psíquico) que o próprio analisante realizou e que certamente estava na dependência desse testemunho para realizar-se, uma vez que, como mencionado anteriormente, é um psicanalista que inaugura e dá suporte a esta nova perspectiva de relação do sujeito com sua Verdade (o inconsciente).

É possível indicar que este pagamento implique uma condição fundamental para a realização da função de psicanalista : que o interesse do analista, seja o de fazer circular seu próprio desejo no mundo e que o sofrimento do analisante não o completa. Dito de outra forma, o analista oferece sua escuta por dinheiro e não por amor, o que nas circunstâncias de uma transferência pode significar a própria função analítica, já que para tal, o analista joga a favor do Sujeito de desejo, embora este seja sempre esvanecente .

É preciso considerar que a possibilidade de comparecimento do Sujeito envolve seu esvanecimento. Trata-se do movimento da própria pulsação do inconsciente que constitui-se pelas Pulsões de vida e de morte. Se a via do amor (Eros) é a via da fusão com o outro, com o mundo (sentimento oceânico), esta é indissociável de Thanatos (Pulsão de Morte), que estabelece-se a partir de um limite intrinsecamente colocado a esta possibilidade de fusão; o que por sua vez – e paradoxalmente – significa a reabilitação das pulsações de vida, cujo o fim definitivo e último é a própria morte.

"Si vis vitam, para mortem". Se queres suportar a vida, organiza-te para morte" (segundo Freud - 1915) .

Seria possível reconhecer uma grande afinidade entre o recalque neurótico e a denegação da morte; e sabemos que tanto o recalque quanto a morte insistem, retornam, repetem-se...

Certamente na direção dada a cura (tratamento) analítica o que está colocado é justamente nosso encontro com o mundo como "faltoso", com a castração e como um a "analagon" com a angustia de morte (Freud,1925). "Como o além dos fenômenos de repetição podem ser considerado um bom critério para o fim de análise, temos o direito de indagar pela relação entre dois conceitos da vida – um, norteado pela inércia e a repetição, e o outro, pela morte como princípio do desejo errante, metonímico, desejo de outra coisa."(Cottet,1982,p.178)

O encontro com o mundo é faltoso e por isso inclui necessariamente um mal estar . O laço social é fundado em uma renúncia de satisfação, pois recordemos, a satisfação é primariamente incestuosa. Isto não quer dizer que o laço social anule a satisfação, mas que a regula, orientando-a em função de um pacto (Trieb-wunsh-lust- genuss).

Então, o mundo só nos cabe como suplemento, já que o objeto de desejo (incestuoso), de complementação é mítico e perdido para sempre.

O psicanalista opera a função de um limite, significante de uma falta, viabilizando para o analisante uma nova possibilidade de relação com a morte (Thanatos); o que engendra o claudicante movimento do desejo gerado entre vida e morte.

O dinheiro abordado em sua dimensão significante introduz justamente este caráter suplementar da relação de desejo e objeto, quer dizer, ocupando o lugar do objeto faltante (fálico) sem preencher a falta, a denúncia.

Pesquisando sobre o dinheiro nas produções teóricas da Psicanálise, deparei-me com uma longa discussão intitulada: "O que o dinheiro deve à morte".

Este tema ligou-se instantaneamente, embora de forma enigmática para mim, a outras idéias que vinham me atraindo, quais sejam: por um lado a de pensar a possibilidade de estabelecer alguma relação entre "dívida simbólica" e algumas circunstâncias que surgiram a partir da "dívida de dinheiro" gerada em análises que estabeleceram-se através do Fórum de Psicanálise; e por outro lado, o de problematizar algumas conseqüências das conexões entre "culpa" e "dívida" nos desenvolvimentos teóricos de Freud, estabelecidas já no fato de serem designadas por uma mesma palavra em alemão, língua original da Psicanálise (schuld).

Então proponho: morte (Pai Primevo) – dívida simbólica - culpa [– dívida – dinheiro –] vida/morte (?).

(III) Fórum de Psicanálise: Do "Trabalho de Transferência" à "Transferência de Trabalho", um compromisso com a transmissão da Psicanálise

"Os sofrimentos da neurose e da psicose são, para nós, a escola das paixões da alma, assim como o fiel da balança psicanalítica, quando calculamos a inclinação de sua ameaça em comunidades inteiras, dá-nos o índice do amortecimento das paixões da "pólis". Nesse ponto da junção da natureza com a cultura, que a antropologia de nossa época perscruta obstinadamente, apenas a psicanálise reconhece esse nó de servidão imaginária que o amor sempre tem que redesfazer ou deslindar. Para tal tarefa, não há no sentimento altruísta nenhuma promessa para nós, que expomos à luz a agressividade subjacente à ação do filantropo, do idealista, do pedagogo ou do reformador. No recurso que preservamos do sujeito ao sujeito, a psicanálise pode acompanhar o paciente até o limite do "Tu és isto" em que se revela, para ele, a cifra de seu destino mortal, mas não está só em nosso poder de praticantes levá-lo a esse momento em que começa a verdadeira viagem." J.Lacan – 1949

Certamente reconhecer na proposta do FP uma instância de transmissão da Psicanálise, recoloca-a numa nova dimensão, a saber, em sua dimensão política. Tal proposição só pode ser admitida se a submetermos ao exame mais detido de algumas particularidades da Psicanálise, sobretudo no que diz respeito a relação mantida entre esta, seus praticantes e seus psicanalisandos na construção de um produto a ser confiado à comunidade. Este constitui-se num certo discurso. Resta saber em que medida tal produto/discurso destina-se à comunidade analítica e à comunidade em geral.

Trata-se de uma questão delicada, já que esta destin-ação implica a própria transmissão do legado analítico e o compromisso que "Isso" avance. Visto em sua dimensão mais radical, este compromisso refere-se a uma ação de ensinança, mas é preciso lembrar, de uma ensinança que se encontra na dependência da passagem por um Trabalho de Transferência, da experiência de uma psicanálise, da própria , sem a qual nenhum analista se produz.

É neste ponto que podemos encontrar a especificidade da idéia de transmissão da Psicanálise do FP, já que esta propõe-se num determinado momento desta ação e produção discursiva dirigida à comunidade, o de fomentar o estabelecimento do Trabalho de Transferência, que permite a passagem para um depois, no qual, como vimos na citação acima, "começa a verdadeira viagem" ...Dito de outra forma, é para além da dimensão terapêutica de um tratamento psicanalítico que a questão da formação pode ser relançada.

É num só depois que pode colocar-se a iminência de reconhecer-se embaraçado com as questões sobre a formação do analista. Trata-se de um momento de viragem do amor ao saber para o desejo de saber, cujo produto é o estabelecimento de uma Transferência de Trabalho, que lança o sujeito em análise em uma nova forma de ligação social, caracterizada numa dimensão de discurso, mais precisamente pelo Discurso de Analista.

Para esta tarefa, a da ensinança, o FP reconhece as diversas Instituições Psicanalíticas de Formação, em relação as quais cada analista mantém uma posição ou crítica particular. O FP toma como encargo próprio a transmissão da Peste, no momento da contaminação da Pólis.

A idéia proposta aqui, para pensarmos é a de indicar esse momento, o da contaminação, como sendo do âmbito da Transmissão e não da Difusão da Psicanálise; ou seja, como uma operação que dá voz ao Inconsciente Freudiano e não ao silenciamento do mesmo, pela via de sua redução a um repertório teórico passado a diante, que subjuga sua dimensão trágica à banalidade do já conhecido e portanto dominado ou ao dogmatismo.

A partir deste encaminhamento, é possível inferir uma dupla - e indissociável-extensão política na Transmissão da Psicanálise. Por um lado, a envolvida na direção dada a uma praxis e por outro, a da produção de um novo laço social proposto por um certo Discurso.

O FP inscreve-se em ambas de forma particular.

Em sua praxis, por circunscrever um determinado momento, um momento de contaminação da peste promovido por um apelo gerado no fervor do sofrimento humano, ou se preferirmos como citado acima, ... "Nesse ponto da junção da natureza com a cultura, que a antropologia de nossa época perscruta obstinadamente, apenas a psicanálise reconhece esse nó de servidão imaginária que o amor sempre tem que redesfazer ou deslindar."

Vale dizer que se do lado do psicanalisando o que subjaz a este momento da transmissão refere-se a sua finalidade terapêutica, do lado do psicanalista envolvido no trabalho, é possível e até imprescindível admitir que seu compromisso [do analista] com a concepção de finalidade e fim de análise encontrem-se lá desde o início, ou seja, a disposição do analista para levar a análise ao seu termo, para além da terapêutica, marca a posição em que este se introduz no jogo analítico, por seu ato inaugural e na direção do tratamento. Se levamos a sério Lacan, trata-se do efeito de sua convocação de "trabalhadores decididos" para a tarefa de fazer seguir uma psicanálise e a Psicanálise.

Então, em sua produção discursiva, verificamos que a resposta para a pergunta sobre o que move um psicanalista para a ação, tal como proposta pelos analistas do FP, encontra sua legitimidade na a perspectiva que a excede, ou seja, o de sua produção do Discurso do Psicanalista .

Retomemos a metáfora freudiana de "Sobre o início do tratamento" (1913):

"O poder do analista sobre o sintoma é, de algum modo, comparável à potência sexual...capaz de criar uma criança completa, não poderia produzir no organismo feminino apenas uma cabeça, um braço ou uma perna. Só pode desencadear um processo complexo, determinado por uma série de fenômenos, e que culmina com a separação entre a mãe e a criança."

É nesse âmbito, o do elo social que reúne psicanalistas no FP, que está fundamentado a circunscrição de um campo de transmissão, inclusive em seu propósito de admitir para tal a possibilidade de análises sem pagamento com dinheiro em certos casos, fato que, ao meu ver, só pode ser sustentado por uma Transferência de Trabalho com a Psicanálise. Por uma Transferência de Trabalho que visa fazer progredir ademais do sujeito em uma psicanálise, a própria Psicanálise.

Se assim for, faz-se do "valor" entregue pelo analisante um pagamento à Psicanálise.

Nesse recorte, cabe discernirmos uma tripla realização, no que tange o que se realiza como pagamento em uma análise: a) O que o psicanalisando paga nos diferentes momentos de sua análise; b) O que o psicanalista paga na direção de uma análise; e c) O que o psicanalisando paga através do psicanalista em uma análise.

Esta é uma discussão que virá no capítulo seguinte.

Mas voltando ao que tange a possibilidade de gratuidade de algumas análises, é possível, então, pensar que é na esfera da Transferência de Trabalho que cabe demarcar uma função analítica para a própria Instituição Psicanalítica, como o é o FP, a saber, a de implicar, para o analista ligado a esta, um limite à sua condição, de um lado, não receber dinheiro por vir a desempenhar a função de analista e, por outro lado, a de arcar com um custo pago à Psicanálise.

Constituir-se numa reunião de psicanalistas, faz das questões concernentes à formação "pauta do dia", sobretudo considerando-se que a posição e crítica que cada analista ligado ao FP mantém em relação à concepção de formação e em relação à sua própria formação é implicada nesse momento da transmissão marcado por um laço institucional que pretende dar voz a uma outra particularidade da Psicanálise, a de que cada analista responsabiliza-se por seu Desejo de Analista .

O Desejo do Analista circunscreve uma prática cuja origem é reconhecível em um ato analítico do próprio Freud: "fale tudo". Como nos diz Serge Cottet (1989):

"O laço com Freud, para um analista, é tão includível que nada, nenhuma garantia, nenhum terceiro pode endossar a cientificidade da experiência. A tal título continua sendo não inefável, mas inverificável."

É importante mencionar que o propósito de uma oferta de análise dirigida a ampla população excluída do acesso a esta experiência, se levada a sério, deve ser considerada segundo as condições que lhe são próprias. Isto é dizer: a expectativa da existência de uma "massa" que abraçaria com entusiasmo essa causa, a da Psicanálise, está fadada à frustração.

Ao contrário, o próprio fundador do campo analítico, Freud, sempre incluiu em suas considerações os vários níveis de resistência à Psicanálise e no final de sua vida teria declarado à Binswanger que "não há coisa alguma para a qual o homem, por sua organização, seria menos apto do que para a Psicanálise". (S.Cottet,1989)

Se por um lado o momento da transmissão aqui recortado pode ser pensado como o de contaminação da polis, por outro é também o de "despertar" , sobretudo se considerarmos que o propósito de promover uma análise frente aos pedidos de ajuda dirigidos a um "profissional psi", geram um campo que não pretende ser de utilidade pública, nem se quer de utilidade do indivíduo, uma vez que, o indivíduo, implica um sujeito alienado em seu gozo (genuss), mas de um Sujeito desejante.

Sobre a inaptidão para uma análise, podemos acrescentar que a condição de desejo que depreende-se da demanda gerada pela oferta de um analista significa uma perda da possibilidade do Sujeito manter-se como Indivíduo. Ademais, a transferência analítica provocada por este ato de escuta que dá "voz" ao Inconsciente, faz obstáculo à intersubjetividade, empurrando o Sujeito para uma divisão que o separa de seu gozo. Inspirar esse duro desejo de despertar, no qual é condição perder parar ganhar e menos...

Sobre o significante "despertar", que já circulava na obra freudiana sobre os sonhos ("pai não vês que estou queimando?" ), relida por Lacan , há um seminário de J. A . Miller (1991), no qual ele chega a aventar a possibilidade [muito interessante] de que toda a história do movimento psicanalítico pudesse ser revisto sob a luta do "adormecimento" e do "despertar".

Mas do adormecimento despertar para quê? Não para a realidade, mas para o Nada do desejo (wunsh), para a abertura do Inconsciente, para o impossível encontro com o Real ?

Se a Psicanálise nos ensina que há no sintoma um certo adormecimento, e neste um decorrente prazer (lust/genuss)) implicado, nos indica também que é através do despertar gerado pelo desprazer (unlust) envolvido no sintoma que dá-se a iminência do impossível encontro com o Real, o que, embora sem considerar-lhe condições de possibilidade , não impede que se faça deste encontro um fim; dito de outra forma, se o sintoma não cessa de inscrever-se e o Real não cessa de NÃO se inscrever, temos na injunção dessas insistências a possibilidade da realização do trabalho analítico.

A realização primária de todo discurso é de adormecer, uma vez que o Significante Mestre traz esta virtude. Fala-se o tempo todo do que se quer ignorar: a castração. Encontramos na teoria lacaniana uma formulação na qual esta realização primária é elevada a um estatuto discursivo: o do Discurso Capitalista. Resta saber que laço social se faz possível a partir desse discurso.

Não é menos instigante para o tema pesquisado aqui a proposição de um discurso nomeado como "capitalista", que evoca tão prontamente o significante dinheiro.

Pois bem, no Discurso Capitalista temos um sujeito instrumentalizado, que "não tem nada com que fazer laço social", [assim como não tem "dinheiro" para fazer uma análise...]. Em "Televisão" (1979) Lacan aponta como saída do Discurso Capitalista o Discurso do analista.

Então é possível considerar que tais questões, a da Transferência de Trabalho com a Psicanálise e a do desejo do Analista, sejam de extrema relevânica para admitir a idéia da oferta de análise gratuitas; e esta oferta, por sua vez, relevante para considerarmos o dinheiro como significante para uma psicanálise, o que implica a particularidade com que este deve ser incluído e manejado para e no Trabalho de Transferência.

Ao situarmos a ação proposta pelo FP em determinado momento da transmissão, estamos evocando um novo fator, a saber, um fator tempo, mais precisamente um tempo ao contexto da Psicanálise, o instituído pela transferência. Nesse contexto se "tempo não é dinheiro", "dinheiro pode ser tempo".

A propósito da idéia "dinheiro como tempo", remeto a uma ocorrência da clínica que realizo ligada ao FP. Uma ocorrência em quatro episódios, que eu decido, então, introduzir aqui, pois a meu ver articula os pontos indicados sobre a gratuidade de uma análise, mesmo numa circunstância em que circula. O reverso da moeda. O que segue, então, contribui para minha aposta de que propor-se a pensar a gratuidade, o manejo de dinheiro na clínica, é propor uma questão para a Psicanálise :

Recebo um encaminhamento de uma candidata à análise. Marcamos uma primeira entrevista. Nessa, escuto essa moça que fala de tudo que acredita ser...Acredita estar "atrasada" em sua vida amorosa. Estava também sempre "atrasada", quando chegava em casa e seu pai a esperava...mas agora que morava sozinha, achava gostoso estar num ônibus indo para casa e resolver no meio do percurso ir ao cinema ou tomar uma sopa no inverno, e simplesmente fazê-lo... Pergunta sobre o preço da "consulta"...proponho-lhe que faça suas contas e fale disso numa próxima entrevista.

Chegada a ocasião, introduz rapidamente o assunto. Havia pensado, mas se dera conta que havia chegado a um "valor" por mês e achava que deveria ser por "consulta"....Pergunto que "valor"...Dez reais por mês...Pergunto: Como foi o cálculo que você fez? ..."viu suas despesas" ...Quanto você ganha pelo seu trabalho? ...

R$ 1.000,00...O que você paga com este dinheiro? ... "Ah!, Muita coisa"... O apartamento que mora foi o pai que comprou, mas paga condomínio...Então, conta que está fazendo tratamento dentário, que "lhe custa uma fortuna", também seu cabelo não é liso como parece e que portanto "tem que" fazer escova semanalmente, mais as saídas, cartão de crédito, etc. ... Pergunto: quanto você paga de condomínio? R$120,00...E pelo tratamento dentário?...R$250 por mês... Quanto custa fazer escova?.......E sigo a investigação, sobre quanto ela paga pelo cinema, pela sopa, ao cartão de crédito, o que ela compra com cartão de crédito... O ritmo do diálogo estabelecido era de fluência e entremeados por incursões de vários personagens e histórias... Em certo momento, propus que marcássemos uma próxima entrevista... Algo parecia primeiro surpreendê-la e depois incomodá-la ... mas , então, quanto vai pagar? Digo: Você fala disso na próxima...na porta , ouço um sussurro: "Na próxima vou deitar lá!" e aponta o divã que há na sala...

Ao telefone, anuncia que esteve pensando e que acha melhor deixar para vir a partir de "junho"...quer "acertar" as vezes que havia vindo para entrevistas. Proponho que venha falar sobre isso...concordamos em manter o dia e horário previamente marcado..

Na terceira entrevista retoma o que havia falado ao telefone...explica que não é rica e que as pessoas pensam que é rica porque o pai lhe dera um apartamento ou porque ela trabalha na empresa "X"... mas ninguém "vê" que seu pai trabalhou muito para juntar o dinheiro do apartamento e que ela não vai deixar de pagar a luz para fazer análise...afirma que certamente ela pode viver sem análise mas não pode viver sem dente...que o cinema ou o barzinho são fundamentais para haver uma quebra na sua rotina de trabalho...e depois, diz ela: "o que eu disse aqui, sobre quanto eu ganho, o que eu faço com o que eu ganho eu nunca falei com ninguém, nem com meu pai"...segue, explicando que se tivesse dinheiro não teria procurado uma terapia que cobrassem mais barato, teria procurado um ‘bam-bam-bam’ que cobra R$200,00 a hora...

Falo: UM BAM-BAM-BAM ?... então preocupa-se em estar me "ofendendo" e confunde-se...comenta que "não dá para falar nada que você já fica pensando..." Digo: Mas o que você está falando é sobre mim? Quem pode dizer o que está disposta a investir nisso?... Porque é preciso investir nisso...

Paga, então, três sessões, R$30,00 ...[sendo fevereiro...] assim já chegamos em "junho"? Se há uma " atrasada", o é em relação a que?

Karin Slemenson
Telefax : 881-7739
e-mail:
psa@pabloslemenson.arq.br


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