A LIBIDO E O ÁLIBI DO PSICANALISTA

Uma Incursão pelo Diário Clínico de Ferenczi

(Publicado em Pulsional: revista de psicanálise, 168, ano XVI, abril/2003, pp.47-57)

Daniel Kupermann 

A psicanálise, para mim – se me permitem mais esta outra confidência – seria o outro nome do “sem álibi”. A admissão de um “sem álibi. Se fosse possível. 

Jacques Derrida, Estados-da-alma da psicanálise, 2001 

I. Preâmbulo

Um fato curioso referente a esse ensaio, baseado em palestra proferida em um congresso psicanalítico durante o ano de 2002, merece ser comentado. Havia recém-defendido uma tese sobre o humor e a sublimação na psicanálise, que me remetera aos primórdios da concepção da análise como “jogo” proposta por Ferenczi no final da sua obra. Desde então, pude me debruçar mais atentamente no Diário Clínico, que é uma espécie de legado derradeiro, acessível somente aos “iniciados” - e mesmo assim com ressalvas, já que é considerado por grande parte da comunidade psicanalítica um escrito da loucura… de Ferenczi. Desse modo, quando me foi solicitado, pela organização do evento, um título, estava inclinado a apresentar ou algo relacionado ao humor na clínica, ou aos questionamentos ferenczianos acerca do trabalho realizado pelo psicanalista, e acabei optando, apesar da resistência em abordar as idéias contidas no Diário Clínico junto a um público mais amplo, por partir de um tema que nele é exaustivamente tratado: a libido do psicanalista. “A libido do psicanalista”, este foi o título escolhido e devidamente comunicado.

Além de estar afinado com o tema do congresso, esse título atendia bastante bem aos meus propósitos, já que, através de um jogo com as palavras, poderia ser lido também como “álibi do psicanalista”. E, assim, de uma só tacada, abordaria o que pretendia dizer e também o seu contrário: as resistências e os álibis encontrados no campo psicanalítico para se evitar justamente a problemática, crucial para a clínica psicanalítica, das manifestações libidinais e afetivas do analista nas análises que conduz - decerto a provocação lançada por Derrida em sua conferência pronunciada nos Estados Gerais da Psicanálise em Paris, a de que a psicanálise, mais do que qualquer saber/fazer, deveria ser “sem álibi”, se ofereceu como uma espécie de espectro e de inspiração (cf. Derrida, 2001).

Mas, surpreendentemente, no programa do evento, o título da palestra apareceu transmutado em “O desejo do analista”. Inicialmente, fui assaltado pelo espanto - afinal, pretendia fazer referência ao Diário Clínico, e me imputam O Seminário 11! Logo, a elaboração que se sucedeu me fez pensar que minha resistência em tematizar a libido (e os álibis) do psicanalista junto a um público ampliado se fez escutar de alguma maneira, e ainda, que talvez não se tratasse de minha resistência apenas, mas de um fenômeno que concerne à atualidade do campo psicanalítico. Afinal, o Diário Clínico é certamente um dos escritos menos conhecidos pelos psicanalistas, o que se pode constatar pelo simples fato de que é um dos menos comentados e, decerto, o contato com as questões nele tratadas não se faz sem alguma perturbação, podendo mesmo provocar alguns lapsos - vale lembrar que, apesar de escrito em 1932, o Diário ficou décadas sob a tutela de Balint, que não viveu para vê-lo publicado pela primeira vez, em 1985, na França[1]. 

II. O Diário Clínico: contexto e situação

O Diário clínico é composto de notas e comentários escritos entre janeiro e outubro de 1932 - Ferenczi morreria em maio de 1933 – sendo, portanto, contemporâneo da conferência pronunciada por Ferenczi em Wiesbaden que deu origem ao polêmico ensaio “Confusão de língua entre os adultos e a criança”. No Diário, Ferenczi retoma algumas temáticas que já vinham sendo tratadas em sua obra, como a teoria da traumatogênese, agora ilustrada à exaustão através de exemplos clínicos, e avança nas formulações acerca do psicanalisar. Porém, por se tratar do diário de uma prática clínica, sua atenção maior recai sobre os processos psíquicos que ocorrem no psicanalista ao longo das sessões, o que havia nomeado de “higiene” ou “metapsicologia do analista” (FERENCZI, 1928). Ou seja, Ferenczi não apenas indaga como se analisa mas, sobretudo, como enfrentar as dificuldades e as resistências que se impõem ao analista no curso do seu ofício.

A primeira questão que se pode colocar frente ao Diário clínico, portanto, é a de que tipo de testemunho se trata. Não é, percebe-se rapidamente, um mero relato de casos - apesar de incluir uma série de fragmentos clínicos -, tampouco um tratado de técnica psicanalítica. Poderia ser considerado o relato de uma análise: auto-análise - no moldes de “A interpretação de sonhos” (FREUD, 1900), sendo que, no Diário, a auto-exposição é muitíssimo maior do que no sonho da injeção de Irma, por exemplo, já que Ferenczi analisa o modo como é afetado “a quente” por seus analisandos durante e após as sessões -; ou análise-mútua, segundo as associações apresentadas por Ferenczi a alguns de seus analisandos e por eles interpretadas. Ou ainda, poder-se-ia levantar a hipótese de que o Diário é o testemunho de um “passe”, que incluiria a elaboração de restos não analisados da sua experiência de análise com Freud, a partir da exposição das próprias dificuldades encontradas por Ferenczi na condução da análise de seus analisandos. No entanto, para além de todas essas considerações, o Diário Clínico é, certamente, um dos mais importantes testemunhos encontrados ao longo da história da psicanálise, da busca e da constituição, por parte de um analista, de um espaço psicanalítico autêntico.

Ao mesmo tempo, é incontestável que o Diário clínico manifesta uma denúncia contra a prática corrente da psicanálise na época. A primeira frase nele escrita é: “A insensibilidade do analista”, seguida de comentários a respeito da postura distante e neutra adotada então pela maior parte da comunidade dos psicanalistas. Aliás, este é não apenas o primeiro, mas um dos principais temas tratados por Ferenczi: a insensibilidade do analista entendida como uma forma de hipocrisia, uma recusa, por parte do psicanalista, dos próprios afetos de amor e, sobretudo, de ódio, suscitados nas análises. Convém notar que a noção de sensibilidade, oriunda do campo da estética, é empregada por Ferenczi no seu sentido rigoroso como a capacidade de afetar e de ser afetado pelo outro, e não no sentido coloquial, que poderia nos remeter às idéias de plácida benevolência ou de compreensão ilimitada e passiva etc., que foram apressadamente associadas a sua figura. A insensibilidade ou a hipocrisia é, assim, a principal figura do álibi passível de ser empregado pelos analistas para escapar das duras conseqüências do ato analítico.

Dessa maneira, ao longo do argumento encontrado no Diário, a hipocrisia - a recusa em ser afetado e em afetar o outro - pode se manifestar seja pelo rígido apego à técnica, regulada pelo princípio de abstinência, abandonado muito cedo por Ferenczi, seja pelo rígido apego à teoria e ao intelectualismo, que resultou nas conhecidas caricaturas das “análises” que não souberam fazer mais do que reificar, através da racionalização, a miséria psíquica e erótica dos analisandos que a elas se submeteram.

Uma formulação de Ferenczi, encontrada nas notas do dia 12 de abril de 1932, e que pretende ser uma autocrítica as suas próprias limitações como analista, se impõe também no contexto do seu questionamento sobre o modo como Freud analisava e sobre o “estilo” de escuta adotado então pela comunidade psicanalítica: “Ao invés de sentir com o coração, sinto com a cabeça. A cabeça e o pensamento ocupam o lugar da libido” (FERENCZI, 1932, p.123). Ferenczi acreditava que a libido do psicanalista tinha um papel crucial na promoção do acontecimento clínico, e que o trabalho de análise só poderia ocorrer se promovesse um autêntico encontro de afetos, o que propiciaria o “diálogo de inconscientes”, para o qual o psicanalista deveria comparecer de corpo presente[2].

Idéia delicada e arriscada: analisar com o “coração” - a libido - e não com a “cabeça” - retroalimentada pela razão teórica! Mas antes de rechaçá-la, seria preciso acompanhar o questionamento decisivo promovido por Ferenczi acerca do saber - freqüentemente excessivo - do psicanalista. É no sentido de um questionamento do saber que compete ao psicanalista que se pode postular que, em Ferenczi, a libido do psicanalista está efetivamente implicada no processo analítico, sem álibis. 

III. A “contratransferência real”

A problemática da libido do psicanalista remete diretamente ao problema da transferência e da chamada contratransferências. Na tradição psicanalítica, a transferência é concebida, grosso modo, como um fenômeno que se instaurara “espontaneamente” no setting, ou seja, como uma produção exclusiva do psiquismo do analisando, sem que se considere suficientemente o modo como ela é efetivamente produzida pela própria oferta de uma modalidade bastante específica de escuta. A contratransferência seria a reação “humana” (e indesejada) ao impacto sofrido pelo analista frente ao afetos do analisando. É o que se encontra em Freud, nas “Observações sobre o amor transferencial” (1913), quando discute o que fazer com o apaixonamento de uma analisanda:

“(...) a experiência de se deixar levar um pouco por sentimentos ternos em relação à paciente não é inteiramente sem perigo. Nosso controle sobre nós mesmos não é tão completo que não possamos subitamente, um dia, ir mais além do que havíamos pretendido. Em minha opinião, portanto, não devemos abandonar a neutralidade para com a paciente, que adquirimos por manter controlada a contratransferência (…) O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência” (FREUD, 1913, p.214, grifo nosso). 

Os termos escolhidos são contundentes - neutralidade, controle, abstinência – e vêm indicar que, no que concerne ao par transferência/contratransferência, o problema privilegiado por Freud é o dos limites a serem dados à experiência. De fato, até onde ir? Qual o limite de uma análise, ou para uma análise?

Uma análise só avança até onde pôde ir a análise do psicanalista; essa é talvez a consideração mais instigante de Freud (1910), e é justamente essa compreensão que fez Ferenczi conceber a mutualidade, na qual o problema passa a ser menos o dos “sentimentos ternos” que poderiam causar um súbito incêndio no vínculo transferencial, do que o dos sentimentos hostis experimentados pelo analista.

No que se refere às ameaças da contratransferência, logo o campo psicanalítico saberia absorver parte da concepção de contratransferência como algo inevitável, não mais como “falha humana” (FREUD, 1913), mas agora sob um novo álibi. A contratransferência deixaria de ser indesejada para se tornar parte integrante do tratamento, uma espécie de bússola afetiva através da qual o analista poderia tecer suas interpretações com precisão científica (cf. HEIMANN, 1950). Assim, a contratransferência passaria a ser concebida, grosso modo, como a reação afetiva do psicanalista aos afetos experimentados pelo analisando na situação transferencial, como se o analista funcionasse efetivamente tal qual uma tábula rasa, cuja neutralidade permitiria transformar, imediatamente, o modo como é afetado em saber sobre o funcionamento psíquico do analisando[3].

A concepção encontrada no Diário não é nem a de falha humana, nem a de bússola norteadora. Em Ferenczi, a transferência é, em primeiro lugar, produzida no encontro entre analista e analisando. O analista está, portanto, diretamente implicado na maior parte das manifestações transferenciais dos seus analisandos - e isso diz respeito à experiência de análise de Ferenczi com Freud, da qual Ferenczi se queixava de que Freud produzira uma intensa idealização, ao impossibilitar o trabalho de luto por parte do analisando, pela desconsideração da transferência negativa, no caso, a do próprio Ferenczi (cf. SABOURIN, p.183).

Nesse sentido, Ferenczi não considera que a contratransferência seja a mera reação afetiva, no analista neutro, das manifestações afetivas do analisando, que poderiam assim ser apropriadas “objetivamente” como guia para a interpretação; tampouco apenas a reação humana indesejada que vem comprometer o bom andamento das análises e que, por isso, deveria ser evitada a todo custo. A contratransferência abrangeria tanto a expressão dos afetos oriundos dos próprios investimentos transferenciais do psicanalista, quanto as resistências e os pontos cegos nele suscitados pelo impacto dos afetos a ele endereçados; mas, além disso, abrangeria também a expressão de afetos inéditos suscitados no encontro analítico, precisando, como um último recurso em muitos casos, ser desvelada, isto é, ser “confessada”[4] ao analisando, para que o tratamento pudesse prosseguir. É a essa concepção, em toda a sua amplitude e complexidade, que Ferenczi se refere como a contratransferência real, para além da profissional (FERENCZI, 1932, p.42), a contratransferência “profissional” sendo a ilusão de reapropriação da experiência afetiva do analista por uma pseudo objetividade científica, através da qual a dimensão do acaso e da incerteza próprias da concepção de análise como jogo de forças é esmaecida por uma suposta garantia atribuída à “boa análise” do analista.

Nesse sentido, o Diário Clínico poderia ser considerado o adendo de Ferenczi às “Observações sobre o amor transferencial” de Freud, agora com o enfoque sobre a metapsicologia do analista; uma espécie de “Observações sobre o amor (e o ódio) contratransferenciais”[5]

IV. Quem seduz quem?

Como vimos acima, Freud advertira, nas suas “Observações sobre o amor transferencial” que, ao expressar-se afetivamente, o psicanalista poderia ir mais além do que havia pretendido, suscitando assim a questão dos limites de e para uma análise. O caso Clara Thompson – a analisanda à qual Ferenczi se refere como Dm. no Diário Clínico - pode contribuir para essa reflexão.

Clara Thompson, uma psicanalista norte-americana em análise didática com Ferenczi, aproveitava das liberdades concedidas para beijá-lo. Em certa ocasião, ela comenta com outros analistas em formação com outros didatas: “Quanto a mim, posso beijar papai Ferenczi quantas vezes quiser” (FERENCZI, 1932, p.33), o que logo chegou ao conhecimento de Freud, obviamente como denúncia aos métodos pouco ortodoxos de Ferenczi. Estava armado o circo na comunidade psicanalítica, e Freud escreve uma carta a Ferenczi, datada de 13/12/1931, censurando a sua “técnica do beijo” e advertindo-o ironicamente para as conseqüências da sua difusão (idem).

O que nos importa, nesse episódio, é a leitura efetuada por Ferenczi do modo como esse material foi trabalhado na respectiva análise. Em um primeiro momento, tratara o constrangimento que se seguiu “com uma total ausência de afeto” (idem), ou seja, de modo neutro, como mandava o figurino. O resultado foi o recrudescimento das atuações da analisanda, que “começou a ridicularizar-se”, relata Ferenczi (ibid., p.34), “de um modo por assim dizer ostentatório, em seu comportamento sexual (nas reuniões mundanas, ao dançar)”. Apenas quando Ferenczi pôde expressar o modo como fora afetado pelo episódio, abandonando a “falta de naturalidade da sua passividade” - e podemos imaginar o quanto lhe custou essa “indiscrição” de Dm. -, a atuação cedeu, dando lugar à compreensão de que se tratava aqui de uma “repetição da situação pai-filha”, na qual o pai sedutor invertera a situação caluniando a filha (idem). Desse modo, os afetos não recusados do analista, expressos na análise, permitiram transformar uma atuação em uma repetição diferencial, possibilitando o trabalho de elaboração da analisanda.

De fato, ao invés de considerar tratar-se apenas de uma provocação ou sedução histérica, através da qual a analisanda colocava seu analista - e a si mesma - em situação pública constrangedora, Ferenczi pôde acolher a cena criada por Dm. e se perguntar qual a sua implicação nessa atuação; em última instância, quem seduz quem? O que pretendia “papai Ferenczi” com a sua postura de relaxamento e de laissez-faire radical? 

V. Quem analisa quem? O nascimento da análise mútua

A experiência da análise mútua também tem a sua “Anna O.”: a analisanda apelidada de R.N. no Diário. No dia 5 de maio de 1932, Ferenczi relata uma situação que pode ser considerada o nascimento da análise mútua. O processo analítico encontrava-se estagnado, e R.N. demandava cada vez mais de Ferenczi, o que o conduzira a uma “superperformance” - aumento do número de sessões semanais, levar a analisanda nas suas viagens de férias, sessões aos domingos... Essa atitude teria favorecido o surgimento de material referente à história infantil, mas chegara a um ponto em que a cada final de sessão a analisanda, em crise, o segurava por quase uma hora mais.

A situação tornou-se insustentável, e Ferenczi relata que se viu obrigado a “bater em retirada”, o que teve importantes conseqüências no desenrolar do tratamento. Convém acompanha-lo:

“Eu pretendia, duro como ferro, que ela devia odiar-me por causa da minha maldade a seu respeito, o que ela negava resolutamente, mas por vezes, negava-o com tanta irritação que os sentimentos de ódio acabavam sempre por transparecer. Ela, pelo contrário, pretendia perceber em mim sentimentos de ódio e começava a afirmar que a análise não progrediria nunca se eu não me decidisse a deixar que ela analisasse os sentimentos escondidos em mim. Resisti durante cerca de um ano e depois resolvi fazer o sacrifício” (FERENCZI, 1932, p.136). 

O que se segue são algumas associações de Ferenczi à respeito da sua relação com a mulheres e, como era de se esperar, uma revisão da sua relação com a própria mãe. Conclusão:

“As exigências da paciente de ser amada correspondiam a exigências análogas que me eram feitas por minha mãe.; concretamente, em meu foro íntimo, eu detestava portanto a paciente, apesar de toda a gentileza aparente; eis o que ela sentia e ao que reagia, com a mesma inacessibilidade que tinha também, por fim, foçado o pai criminoso a soltá-la.

A análise mútua fornece aparentemente a solução. Deu-me a ocasião para dar livre curso à minha antipatia. A conseqüência disso foi, curiosamente, que a paciente apaziguou-se, sentido-se justificada (...)” (ibid., p.137). 

Finalmente, ao avaliar a quem caberia o mérito pela experiência inédita, Ferenczi considera que caberia

“(...) antes de tudo à paciente que, em sua situação precária de paciente, não se cansou de lutar pelo seu legítimo direito; entretanto, isso de nada teria servido se eu próprio não tivesse me submetido ao sacrifício inabitual de correr o risco de, enquanto médico, aceitar a experiência de me confiar a uma doente certamente perigosa” (ibid., p.138). 

No seu conhecido ensaio “O ódio na contratransferência”, Winnicott (1947, p.277) afirma que “a análise de pacientes psicóticos revela-se impossível a não ser que o ódio do próprio analista esteja muitíssimo discernível e consciente”. Como o analisando psicótico viveria um estado de amor e ódio coincidentes, em certos momentos do processo analítico buscaria manifestações de ódio “legítimo” por parte do analista como única maneira de poder também se sentir amado.

O que está dessa maneira presente em Winnicott, na trilha aberta por Ferenczi, é que a experiência transferencial cria um espaço intermediário[6] que possibilita o encontro afetivo entre os parceiros da análise, e é apenas o autêntico encontro de afetos que pode propiciar a criação de novos sentidos, sobretudo para o psiquismo do analisando, paralisado pelo sintoma e pela repetição[7]

VI. Uma figura privilegiada do “sem álibi”: “análise de duas crianças”

Um último problema que não poderia deixar de ser abordado, ao se tratar do Diário clínico, é o da importância dada por Ferenczi à análise do analista. Ferenczi (1928) chegara a formular que a análise do analista é a “segunda regra fundamental” da psicanálise, em reciprocidade à regra da associação livre imposta ao analisando. As anotações do dia 3 de junho de 1932, que ganharam como título “nada de didática especial!”, são bastante reveladoras:

“1)Os analistas deveriam ser melhor analisados que os pacientes e não pior.

2)Atualmente, eles são pior analisados.

a)Limite de tempo

b)Nenhum relaxamento (segundo a opinião dos pacientes)

(...) 5)Análise mútua: somente um recurso usado na falta de coisa melhor. Seria preferível uma análise autêntica por um estranho qualquer, sem nenhuma obrigação.

6)O melhor analista é um paciente curado (...)

7)Questionamento das análises de controle (supervisões): últimos recursos: reconhecimento e confissão de suas próprias dificuldades e fraquezas. Controle severo pelos pacientes! Não se defender” (FERENCZI, 1932, p.154). 

A concepção da análise do analista como segunda regra fundamental aparece pela primeira vez em “A elasticidade da técnica”, de 1928, ensaio que pode ser considerado o marco, no campo psicanalítico, da problematização da dimensão estética da clínica. A partir de então, Sándor Ferenczi não se pergunta mais o que fazer na clínica, mas como fazer no aqui e agora das sessões. “Convém conceber a análise como um processo evolutivo que se desenrola sob os nosso olhos”, escreve Ferenczi (1928, p.28), “e não como o trabalho de um arquiteto que procura realizar um plano preconcebido”. Para isso, porém, seria preciso criar uma nova sensibilidade clínica, o que, em contrapartida, passaria a exigir uma crescente disponibilidade do psicanalista. Daí a importância e o privilégio conferidos por Ferenczi a uma experiência de análise “autêntica” - distinta da “didática” - para o analista (a problematização da análise do analista efetuada por Ferenczi configura uma crítica explícita ao modelo de formação psicanalítica e, sobretudo, à análise didática, ainda incipiente nos anos 20).

Revendo de maneira bastante breve o percurso clínico de Ferenczi, é interessante notar que o abandono das técnicas rumo a uma estética da clínica coincide com o abandono da busca da definição de um “lugar” que pudesse ser ocupado pelo psicanalista junto ao psiquismo do analisando. De outra maneira, Ferenczi vai sendo levado a abandonar a concepção de uma tópica que seria ocupada pelo analista como objeto de investimento do analisando na transferência, em direção a uma tentativa de definição do trabalho do analista segundo uma concepção econômica, referente ao encontro afetivo que tem vez nas análises.

Vejamos: Ferenczi ficou (injustamente) conhecido pela aplicação da chamada “técnica ativa”, no início dos anos 20 (cf. FERENCZI, 1919; 1921). A idéia era, através de proibições e injunções formuladas ao analisando, levar ao extremo o princípio de abstinência ou de frustração proposto por Freud de modo a incrementar sua angústia, obrigando assim a retomada do fluxo associativo nas análises estagnadas, fixadas no gozo do amor de transferência. Nesse momento, o “lugar” do analista era identificado, como pretendia Freud (1937), com o de um “substituto paterno” cuja função principal seria a de representante da Lei inexorável da castração. O resultado foi o de que as análises tendiam a se tornar práticas pedagógicas, ou seja, ao invés das esperadas manifestações de ódio por parte dos analisandos já siderados e da conseqüente interpretação da transferência, a técnica ativa terminou por produzir uma submissão cada vez maior (cf. FERENCZI, 1926).

Isso o levou a abandona-la, e a formular o “princípio do relaxamento”, ou “laissez-faire”, ao lado do princípio de abstinência freudiano. Claro que a idéia de “liberdade” (laissez-faire) já se encontrava na origem da regra da associação livre, mas, na percepção de Ferenczi (1928; 1930), as análises careciam desse relaxamento. Justamente desse período data o resgate da noção de “tato” e a formulação das noções de “empatia”, “acolhimento”, “benevolência” e “benevolência materna” para definir a postura clínica do psicanalista, e o “lugar” do analista foi identificado ao de uma mãe amorosa e complacente, exageradamente passiva frente aos movimentos afetivos – amor ou ódio – dos analisandos, sempre pronta a atender as suas demandas amorosas infantis.

Mas o princípio de relaxamento só encontrou a sua verdadeira vocação a partir da concepção de “análise pelo jogo”, formulada em “Análise de crianças com adultos”, de 1931. Se no período de experimentação da técnica ativa o analista pecava pelo excesso de intervenção, durante o período no qual vigorou o princípio de relaxamento, a passividade exagerada e a falta de reação do analista terminou sendo percebida pelos analisandos como distanciamento, ausência e falta de implicação. A novidade, então, foi a tentativa de dialogar com a criança que comparece nas análises, mesmo nas de adultos, ao invés de interpreta-la, falando sobre ela (FERENCZI, 1931).

Para isso, no entanto, seria preciso que o analista pudesse utilizar uma linguagem apropriada para o diálogo com o infantil, a chamada “linguagem da ternura” (FERENCZI, 1933), em oposição à “linguagem da paixão” do adulto submetido à lucidez unidimensional, cuja característica era a univocidade dos enunciados, presente também na prática interpretativa da psicanálise tradicional. Desse modo, a cena analítica passaria a ser verdadeiramente ocupada por um teatro lúdico, no qual analista se encontraria intimamente implicado e incluído, o que permitiria promover a “neocatarse” - uma referência de Ferenczi ao fato de que, com a análise pelo jogo, a “outra cena” atuada pelas histéricas nos primórdios da psicanálise, quando da utilização do método catártico, havia sido reconstituída, ganhando novos sentidos.

Assim, não se tratava mais, para o analista, de se posicionar nem como substituto paterno, nem como substituto materno, mas de favorecer a emergência, no setting analítico, da palavra-ato, da palavra acompanhada da carga afetiva que lhe permite ressignificar a existência do sujeito em análise; ou seja, de mais uma vez “soltar as línguas” – é essa a expressão utilizada por Ferenczi (1933) - na experiência psicanalítica, criando modos de subjetivação inéditos.

Finalmente, na anotação do dia 13 de março de 1932, Ferenczi extrai a conclusão radical da sua concepção de “análise pelo jogo”, proposta no ano anterior em “Análise de crianças com adultos”. O título é “Análise de duas crianças”:

“Certas fases da análise mútua representam, de uma parte e de outra, a renúncia completa a todo constrangimento e a toda autoridade; a impressão que se tem é a de duas crianças igualmente assustadas que trocam suas experiências, que em conseqüência de um mesmo destino se compreendem e buscam instintivamente tranqüilizar-se (...) as crianças ligam-se entre si e estabelecem vínculos de amizade. (Deve a análise acabar sob o signo de uma tal amizade?)” (FERENCZI, 1932, p.91). 

Não estaria nessa formulação de Ferenczi a indicação bastante atual de uma psicanálise efetivamente sem álibis e sem tantos semblantes? Em um contexto cultural no qual Deus - ou o Pai - está efetivamente morto, e não por acaso o paradigma da ciência positivista se encontra em crise, não seria a figura de um analista criança, órfão de certezas e de garantias prévias -  e capaz de brincar, criar, entristecer-se e rir junto daquele de quem se dispôs a tratar - bastante adequada para os desafios encontrados pela psicanálise na contemporaneidade? 

Bibliografia

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--------------------------. (1932) Diário Clínico, São Paulo, Martins Fontes, 1990.

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SABOURIN, Pierre. Ferenczi - paladino e grão-vizir secreto, São Paulo, Martins Fontes, 1988.

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DANIEL KUPERMANN é psicanalista, membro fundador da Formação Freudiana, doutor em teoria psicanalítica (UFRJ), coordenador da pós-graduação em teoria psicanalítica do IBMR e autor de Transferências Cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições (Ed. Revan).

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NOTAS


[1] Antes de seguir adiante, no entanto, convém ressaltar que os problemas suscitados por Lacan (1964) através da noção de “desejo do analista” não são estranhos aos problemas tratados por Ferenczi em seu Diário clínico.

[2] Idéia sugerida por Ferenczi e adotada por Freud (1912) nas suas “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”.

[3] Para um aprofundamento das vicissitudes do entendimento da contratransferência ao longo da história da psicanálise, ver Figueira (1994).

[4] A idéia de que os afetos experimentados pelo psicanalista no curso de algumas análises deveria ser “confessada” ao analisando aparece do início ao fim do Diário Clínico. Veremos abaixo o sentido dessa “confissão” ao tratarmos do caso R.N. e do nascimento da análise mútua.

[5] Foi efetivamente D. W. Winnicott (1947) quem soube extrair dessas reflexões o que elas tem de mais precioso.

[6] A noção de espaço intermediário (Zwischending) entre sujeito e objeto aparece em Ferenczi (1928a, p.7) quando relaciona o interesse da criança por seus excrementos com a capacidade infantil de estabelecer relações simbólicas entre seu corpo e os objetos do mundo.

[7] Para uma demonstração rigorosa, seria preciso um longo desvio pela descrição dos processos introjetivo e de simbolização em Ferenczi, que o leitor pode encontrar em “Humor e sublimação na psicanálise” (KUPERMANN, 2002, cap.2.4).

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