O PAI IDEAL, O MESTRE CASTRADO , O LUGAR DO ANALISTA
Maria Teresa Martins Ramos Lamberte
APRESENTAÇÃO : Este texto foi pensado como reflexões que se poderiam fazer sobre a questão paterna na teoria psicanalítica, tomando o mito do pai presente no Édipo Freudiano, a partir da discussão que se tem com Lacan, no Seminário XVII-"O avesso da psicanálise", acerca do que possa, "Para além do Édipo...", ser articulado à castração e o lugar do analista (tema dos capítulos de referência chave para o trabalho, e que é encontrado neste Seminário já citado). À medida em que o construía, no entanto, ocorriam-me lembranças de passagens significativas de nosso contexto atual, notícias de fatos alarmantes, de debates instigantes, de novas idéias, das novas perguntas, passagens da vida mesmo, como esta tem sido inquirida, fustigada, debatida, devaneada...
Resolvi apostar na pertinência destas evocações do contemporâneo e incluí-las de certa forma na reflexão sobre o pai, o mestre e o lugar do analista, por várias razões:
-A psicanálise, como qualquer campo de saber, deve manter-se acesa e sensível às intervenções do novo;
-Por uma evidência de mudanças emergentes em nosso contemporâneo, que em sua aceleração e qualidade, podem se fazer pensar em mudanças de paradigmas acerca do que tange o campo das subjetividades;
-Por considerar, sobretudo através de uma perspectiva que leve em conta os eixos diacrônico e sincrônico, que se possa trazer, à luz de um debate atual, tentativas de leitura sobre os lugares que ressurgem do velho, na reconstrução do que temos pela frente.
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Desde Freud temos instigantes pontos levantados sobre o pai como função fundamental ao nascimento do sujeito desejante.
Em "TOTEM E TABU" lemos o assassinato do pai da horda primitiva marcando o civilizatório da condição humana. Assassinato mítico, pois que a cada um atualiza-se, verificando-se um a um esta possibilidade de passagem. Passagem que marca o encontro com o coletivo. Transcultural.
Mais que uma coleção de fenômenos, ainda que com infindáveis variáveis em seus traços de apresentação ( a ordem do fenômeno ), é no que se repete a cada um, como possibilidade coletivizante, que se poderá atribuir ao pai, uma função estrutural, mantendo como resíduo o limite do intransmissível, do desconhecido, do impossível.
Parece tratar-se de um ponto de injunção privilegiada do coletivo com o singular.
Porque o campo do pai?
Lacan mesmo retoma esta discussão no Seminário XVII- "O AVESSO DA PSICANÁLISE", reafirmando o original do sujeito do lado do campo do pai (em seu duplo sentido, originário e singular), diferente do que se poderia pensar, estar no amor primordial do campo materno. Lacan retoma Freud para reiterar o originário do humano do lado do pai. Nesta passagem ele faz lembrar a escrita de Freud dizendo que "é ao pai que se deve todo amor".
Retomo também a pergunta, até num sentido de reiteração da afirmação para o lado do pai (quanto causação do desejo): o quê do campo materno diz respeito ao pai, onde situar o pai no campo da mãe?
O pai "retira" e "resgata" o sujeito do campo da mãe, a partir da qualidade dada a este mesmo campo de acolhimento de partida, o materno. É o pai que qualifica este campo, precedendo ao pai do sujeito em questão, isto é, ao pai da geração. É antes o campo paterno dado pela condição do materno, o que marca esta mãe como mulher, e num retorno dialético, esta mulher como mãe (castrada); função de causação deste campo materno como desejante. É então o legado que se tem do pai, na via do campo materno, que se pode situar o pai primordial de cada um, sua instância mítica.
O pai contemporâneo, aquele que recebemos mais diretamente, será decorrência desta marca originária do desejo materno. A clínica psicanalítica evidencia este ponto, fazendo-me lembrar privilegiadamente da clínica com aqueles que não advém como sujeitos da palavra, do laço, enfim como desejantes, ocorrência na clínica com autistas, mas não só tomando por estes, também a escuta com neuróticos demonstra o pai como substrato da condição do lugar de objeto causa de um desejo do Outro primordial (desejo materno).
Em Lacan, com suas fundamentações a partir da psicanálise, refinadas progressivamente com a teoria do significante, os matemas, os três registros: real, simbólico e imaginário e a topologia, podemos nos recolocar a questão do pai no nascimento do sujeito desejante, voltado para a falta; se não por nada, questão para lá de atual em nosso contemporâneo.
O contemporâneo convoca também e sobretudo aos analistas, para refletirem este ponto causal acerca da função do pai, um dia formulado por Freud, como irredutível da condição desejante, por sua aparência hoje (novamente a via dos fenômenos) de uma "certa" derrisão da função paterna.
Já em 1969, Lacan, com respeito ao pai real, cogitara este poder ser localizado no irredutível do espermatozóide (no discurso da ciência). Pareceu-me espantoso o quanto Lacan fora até premonitório, se pensarmos um pouquinho que seja, sobre os fenômenos atuais em nossa cultura. Só que, ao mesmo tempo em que a imagem paterna vai se desdobrando, parecem haver sinais, pistas de sua demolição /extinção. Ainda que possa estar havendo uma demolição de seus simulacros, e isso não traria particularidade, estruturalmente falando, a esta época atual, existe ao menos um estremecimento de suas balizas. Explico. Passado o "boom" do caso Dolly, ninguém mais tocou no assunto, ao menos no que tange a grande mídia, mas talvez tenha algo sido enunciado, e em seguida "esquecido". Refiro-me a um certo movimento de morte ao pai, do coletivo, levado pelo contexto dos nossos campos de supremacia atual: Em era de globalização e um certo "progresso" do capitalismo (faço questão de ironizar, pois, como Marx já previra ele iria ruir de seu próprio êxito, pelos males de suas próprias raízes), o que vemos predominar é a ideologia do mercado e o discurso da ciência, muitas vezes a seu serviço, montando o jogo da era cínica em que vivemos.
Tudo pode! As interdições são questionáveis, pois o que se busca é ultrapassar os limites, na via do poder de consumo, e saber/ poder sobre o bem estar, bem como a briga com a doença e com a morte- maravilha!- apenas que, o muitas vezes "chato" do discurso da psicanálise é fazer lembrar um "certo" rechaço do saber sobre o gozo, sobre o mal estar.
Certamente já não estamos nos idos do existencialismo sartreano, ou em busca do saber do desejo do homem anunciado pela descoberta psicanalítica.
O que se entreabriu para esta perspectiva que se monta em nosso cenário atual, e que o caso Dolly poderá ter sido apenas uma primeira chamada, é a possibilidade do sujeito clonado, gerações de "partenogênese", zangões extintos ou feminilizados em busca também de olhar e amor.
Era homossexuada- só mulheres carentes e poderosas, fálicas e musculosas, tenham ou não pênis nos genitais, que afinal, diferenças anatômicas sexuais serão "bobagens" do biológico, se a satisfação pulsional e o alívio das tensões buscará o outro como objeto da pulsão e não mais o outro do sexo ( o Outro que coloca a diferença, não anatômica, mas presentifica a falta, o enigma do desejo na alteridade, o desejo como desejo do Outro" substrato do amor, tomar o outro da busca como desejante. Este Outro em maiúscula porque refere-se ao simbólico, código lacaniano para marcar a diferença da restrição e risco de entendimento reducionista do encontro no laço ser apenas com o outro imaginário , o outro semelhante). O filme Kids demonstra primorosamente esta cisão entre as tensões pulsionais em busca de satisfação e alívio imediato e a via do desejo.
Lembro me também de uma matéria recente de Contardo Calligaris, muito interessante sobre a nova face da virilidade masculina. "Virilidade em crise", é o nome do artigo, apontando justamente o que para além do fenômeno dos tenros bíceps, há uma feminilização fetichizada, escamoteando a crise do viril, que sempre foi tomado como tipo, marca imaginária do registro masculino.
No que a função paterna põe em jôgo a falta e opera, na via do pai real, a castração?
Na via de possibilitar uma porta para além do campo materno, uma falta intrínseca que garanta no entanto a trilha para o sujeito, para além do complemento do narcisismo materno, ou da recusa fundamental.
Ao seguirmos a psicanálise podemos perseverar no entendimento da função do pai e buscar localizá-la nos interstícios dos fenômenos atuais.
Para a construção deste trabalho tomo reflexões a partir da psicanálise, em Freud e Lacan, buscando contemporizar em nossa atualidade.
Em Freud temos a ordem do mítico e o parricídio, o assassinato do pai da horda primitiva.
Lacan relendo esta passagem ao tratar no seminário XVII, da transmissão dos matemas dos quatro discursos, coloca toda uma discussão acerca do pai, o pai no mito do Édipo freudiano e para além deste, o seu resíduo na estrutura, localizando o pai real como agente da castração. Um operador lógico, para além dos ideais de pai, do mito paterno, operador que abre a condição da falta em seu momento mais inaugural, não o pai que interdita, proíbe ou protege e promete (o pai simbólico, dos ideais), ou castiga censura, do imperativo (o superego, sanção de gozo e mantenedor do pai imaginário do sofrimento do neurótico).
Sobre o pai real é difícil dizer, não tem cara, imagem ou palavra fácil, quase resíduo perdido, quase mesmo irresgatável desde as origens, está mais ligado ao recalque originário. Substrato do traço unário, construção de uma análise, neste seminário Lacan o situa no significante inaugural-S1-.
É chamado de significante mestre por ser inaugural de um campo discursivo e referir-se enfim ao tão caro "objeto causa do desejo materno" da teoria lacaniana.
Neste trabalho Lacan percorre do mito à estrutura, ou seja, do pai simbólico no mito paterno em Freud, ao pai real como operador da castração, defrontamento com a falta, como causa do desejo, na estrutura. E articula com esta passagem o discurso do analista.
Dedica especialmente um capítulo " O MESTRE CASTRADO" para articular um esvaziamento estrutural ao desejo do analista, que faça suporte à questão do desejo, deste outro que busca a escuta, o encontro com o analista. Retoma o caso Dora, em Freud, e através da busca ao mestre, do sujeito suposto saber, procura demonstrar, à luz desta famosa passagem clínica, o giro que pode haver do discurso da histérica ao discurso analítico. Lacan situa justamente onde, a partir desta busca de um saber sobre o gozo, no Outro da transferência, tomado em sua potência/impotência (o pai da histérica, seu mestre), esvaziar este lugar de referência paterna, ao desejo da histérica, pondo em ato o vazio da palavra, da mestria, da impossibilidade de saber sobre este "resíduozinho mortífero" do limite da significação, que fixa o sujeito em seu ponto de sofrimento. A possibilidade de ocupação neste lugar poderá se dar, como um operador, a partir de uma castração que se atualize, em ato, pelo não preenchimento radical desta potência paterna demandada pela histérica.
É importante lembrar, junto a esta passagem clínica inclusive, que tanto ensina, o quanto o sujeito não busca o que traz como apelo, endereçado na demanda. O desejo, para aquém e além da palavra contida na demanda, talvez possamos dizer que seja precisamente o movimento que cada um faz em torno de seu nada e, embora aí invente, esperneie, devaneie, faça da vida uma ficção para tentar se esquecer, é o que mais busca, o que mais teme, espera, o umbigo dos pesadelos, seu fio terra, "empuxo à inércia", sua inscrição fundamental. A este ponto problemático é que parece estar relacionado esta invenção lacaniana do pai real, as incidências do pai no real.
Com a teoria dos discursos, de Lacan, vários embricamentos são possíveis, é importante que se os tome com cautela, afim de fazer um uso melhor possível, extraindo o quanto se possa desta riqueza, em proveito de dialetizá-la em nosso tempo, ao mesmo tempo que se a verifica, sem no entanto desnaturá-la, banalizá-la. Neste sentido este trabalho lança a questão em seus aspectos ainda preliminares, sem intenção de esgotá-la.
O ponto buscado então dentro destes princípios e tomada esta perspectiva de contemporização, ou seja, do que possa esta complexa teoria que temos com os ensinamentos de Freud e sua releitura criacionista de Lacan, apropriarmos, não só como instrumento de leitura do nosso contemporâneo, como sobretudo para manter atual a pergunta que Freud sustentou ao longo de sua obra: qual o lugar da psicanálise na cultura, o que cura numa análise; e em sua versão lacaniana, qual o lugar do analista?
É muito difícil o desafio em que me coloco de fazer uma articulação da teoria analítica e os fenômenos atuais em nossa cultura, e de fim de século, para ser modal. Mas a provocação contida no desafio advém, ao menos em parte, do grande arrojo que marca esta formulação de Lacan, dos quatro discursos.
Nesta Lacan escreve e inscreve o analítico num sítio discursivo, ou seja, na cultura, no coletivo, como um dos discursos possíveis ao ser no laço.
Freud havia colocado como lugares instituintes da possibilidade no coletivo, o impossível daquele que ensina, do que governa e daquele que faz amar, onde Lacan acrescenta, daquele que analisa.
Embora não seja exclusividade deste seminário, é nele que temos privilegiadamente o convite a articulação do âmbito intrínseco ao analítico, ou seja, o sujeito numa análise e o sujeito no coletivo. Lacan é claro quando coloca que os discursos mantém uma relação de interdependência, cada um deles não existindo e perdurando isoladamente, o que faz deduzir que o giro, ou os giros entre eles, contenham um valor operatório fundamental nesta dialética.
Através da lógica significante, e a combinação construída nestes matemas, conceitos nascidos da fundamentação freudiana, como o mito do pai, a castração, podem ser lidos como operadores lógicos no campo discursivo, no que diz respeito ao ser no laço. Neste sentido, refina-se a concomitância dos eixos sincrônico e diacrônico situando a temporalidade lógica para as questões da subjetividade, ou seja do sujeito do inconsciente, como desgarrado do tempo cronológico, linear, do desenvolvimento, da evolução.
O desafio é tentar um cotejamento deste saber apontado pela clínica, experiência e teoria analíticas, com as produções de subjetividades e valores de cultura que se insinuam como ondas, a partir dos fenômenos, do circuito dos significantes, engendrando novos significantes mestres (S1), e refletir sobre os efeitos que daí possam advir para o sujeito em sua relaçao com a falta, com o desejo.
O lugar do analista desde Freud, e depois reconstituído em Lacan com o discurso do analista, parece apontar para um lugar que faça suporte à questão do desejo, atualizando a castração em jogo, o saber/como lidar com a falta, para além do sintoma, substituto que advém do recalque, e assim reconstruir, abrir valas rumo ao caminho das pedras de sua causação, poderíamos até pensar no assassinato dos ideais nesta travessia.
O trabalho pretende pensar, a partir destes elementos, o lugar do analista, contemporizando estas reflexões com o momento atual na via da questão que coloca o campo paterno.
Pretende-se aqui trazer estas tão caras fundamentações nas obras de Freud e Lacan sobre o pai, à luz do contemporâneo, tomando o que se tem de partida: no primeiro o assassinato necessário do pai para "virar gente", civilizar, abrir as portas ao desejo; no segundo, através dos matemas dos discursos, articular o pai real, agente da castração, com o matema do discurso do analista, em sua dialética aos demais, mas sobretudo ao discurso da histérica, que põe em causa a pergunta do que quer uma mulher, endereçada ao mestre, seu giro, o encontro com o mestre castrado, queda dos ideais, o mestre não é impotente pois que mito, é um impossível, o pai real, o discurso analítico.
Ao trazer esta discussão bastante teórica e densa para perto dos fenômenos contemporâneos, sobre o quê cura numa análise, qual o lugar do analista, como quem sustenta a posta, senão em cena, em ato, do defrontar-se com a falta, o pai real, agente da castração, que causa o desejo; o nó que se deflagra aí abre-se em dois polos: de um lado pensar o contemporâneo como formador e renovador das buscas desejantes (contemplando a pergunta sobre o quê cura numa análise, quais os novos sintomas, as novas doenças); e de outro, esta posição de "cara de borracha", para não dizer cara de nada, ou que se presta de semblante para o suporte "do objeto causa do desejo" daquele que se escuta numa análise, isto é, a mais que plástica posição castrada do analista; como estas se constroem, ou se ressignificam (atualizam) em nosso contemporâneo?
Algumas considerações sobre o momento, alguns aspectos relevantes no quadro das novidades:
Assistimos com a globalização, economia do neo-liberalismo e tentando uma leitura distanciada, sem paixões nostálgicas por "equilíbrios antigos" , que seria conservadorismo romântico (e a ingenuidade nos torna míopes), podemos perceber uma acelerada mudança de paradigmas em razões de essência da vida (o sexo, a morte, o destino), através dos fenômenos atuais deste final de século.
Talvez seja só mais um momento de concluir e aglutinador das muitas mudanças sucessivas que houve ao longo das épocas, ou mesmo mais privilegiadamente neste século (exemplos: a revolução sexual dos anos cinquenta- sessenta, o declínio das ditaduras, a queda do muro de Berlim e finalmente a queda das ideologias; a era mercadológica, o apogeu da ciência, a discussão trazida pelas possiblidades da engenharia genética, o mais triste até então capítulo da novela sobre a história da riqueza do homem: os milhares de miseráveis excluídos junto a alguns impérios dominantes, o desvio da guerra nuclear e da chamada guerra fria - a era atômica já não situa o ponto de conflito da comunidade humana- para elementos mais modernos, tais como o "boom" da informática, precioso instrumento da globalização...),enfim, talvez nem isso, apenas mudanças e aberturas ao novo como existentes em qualquer época, e o espanto tão esperado para qualquer subversão, rupturas com modalidades discursivas e padrões culturais que em qualquer época possa haver...Então, parafraseando o ditado, cada época com as rupturas e subversões que merecem...Quais as nossas?
Para o homem moderno, o tabu do sexo. Para o homem contemporâneo este tabu deve estar se deslocando. Época das obscenidades, quase tornando piegas um Nelson Rodrigues, se atentarmos aos efeitos gerados a partir do "furor" científico, junto à era do mercado, no advento de "novas formas de amar", de "procriar".
O debate atual que se tem nos Estados Unidos é sobre o mercado de óvulos, para as mulheres estéreis adquirirem ou realizarem seu direito e desejo de serem mães (é evidente a confusão e cinismo generalizados, a partir de quais princípios éticos é regido o poder da ciência em possibilitar o que é de "direito"?- pensando na massa de excluídos e vítimas da violência excluídos sobretudo do direito da cidadania-; e no que tange a "desejo", este ser curto-cicuitado pelo massacre de ofertas, claro, a serviço das vendas! (e vejam que interessante , um "quase" despercebimento em relação aos espermatozóides, talvez chegue um dia em que sejam prescindíveis para a reprodução, e neste dia a colocação de Lacan terá sido desatualizada, mas isso são congecturas...).
Recentemente o debate "Dolly", que foi até rapidamente solucionado, primeiramente, com a voz de um superego coletivo através da mídia, portando os posicionamentos dos comitês de ética : "Podem ficar tranquilos, a clonagem de humanos não será permitida!"; depois um certo apagamento da possibilidade, por atribuições suspeitadas de fraude no caso Dolly, e não terá passado de mais um truque para vender jornais...Fiquemos tranqüilos.
No cenário nacional, em sintonia com uma tendência mais ampla, as produções independentes, adolescentes com seus carrinhos com bebês- de verdade-, nas escolas (bem, isto dentre as que vão à escola!), tendo ídolos femininos marcados de quase uma totipotência, gerando crianças num movimento de evidente vanglorio narcisista, gerando "falozinhos ambulantes", crianças fetichizadas, a seviço deste deleite narcísico.
A obscenidade se apresenta por uma abertura das vidas privadas, no que antes seria de fórum íntimo, e o cinismo é por tudo parecer não surpreender mais. Quem se arrisca a uma crítica, também a partir do personalismo, acaba cotracenando no drama de confronto entre irmãos, onde o trágico (escamoteado) é a busca do pai ( como o recente episódio de um certo ministro em público com uma certa personagem do cenário nacional e é claro quem seria ele para criticar certas condutas, um moralista, hipócrita, demagogo, político..., inadvertido, o senhor ministro levou a pior...).
Mundo contraditório, nossas balizas se desfazem e se renovam em ritmo acelerado, velhas máximas voltam a servir "telhados de vidro", "atire a primeira pedra", porque o campo das éticas, os censores da cultura (talvez a função paterna em seu registro simbólico, que marca os valores privilegiados da cultura), vive uma crise de balizamentos.
Se hoje com a ciência- maravilha!- ( não vai aqui nenhum argumento anti-científico, mas não podemos nos furtar de perguntar sobre as perspectivas de seus movimentos e seus efeitos na cultura) tenta elevar a longevidade para duzentos anos, como ficaria nesta situação a relação entre as gerações?...
Há um prenúncio ou anúncio de mudanças de paradigmas do qual não se pode evitar refletir.
Tomando o pai real como relacionado à pulsão de morte, uma vez que esteja ligado ao ponto limite da inscrição pulsional, localizado no limite do civilizatório, seu resíduo é o do inumano, que em Lacan é o resíduo inassimilável pelo simbólico, o mais de gozar. Ora, o tratamento deste resíduo inassimilável de gozo, que advém a cada um como resposta à condição humanizante, o preço que se paga, o ônus da partida; embora seja a marca radical de cada um frente ao desejo, diz respeito sim, também, aos modos de gozo da cultura. Acredito que a cultura intervenha no mítico individual, à medida de sua ordem simbólica, relaciona-se, é claro, ao real do sujeito em seu êxtimo. Isto é demonstrável ao colocarmos na topologia do nó borromeano.
Voltando à pulsão de morte, buscaria pensar hoje a possibilidade do lugar do analista entre aqueles campos dos quais podem se abrir fendas para a dialetização, ou melhor o movimento da pulsão de morte para a evocativa (uma das pulsões acrescentadas por Lacan às pulsões formuladas por Freud. Lacan acrescenta às pulsões oral , anal e à significação fálica, dada em Freud como pulsão sexual, as pulsões: escópica e evocativa, respectivamente do olhar e da voz, como predomínio simbólico de abertura do campo desejante).
O encontro com o analítico, que pode advir de um encontro mesmo com quem opere o ato analítico, mas não tomando a psicanálise como a panacéia para os nossos males, cotejaria seus efeitos com a saída pela arte, a literatura, a possibilidade de uma escrita enfim, uma marca que se possa deixar ao mundo além do legado do pai (a partir das desconstruções do pai simbólico, dos ideais do Eu, chegar a produzir sobre o vazio do pai real, ou melhor, uma construção a partir das incidências do pai no real). Por isso a pulsão evocativa, a possibilidade de inscrever a partir do nauseante encontro com o pai real, este que não zela por nós, não nos protege ou promete, nem tão pouco censura ou castiga, o pai do desamparo.
Em um trabalho ainda inédito, sobre a condição subjetiva na adolescência, coloco esta etapa como um momento estrutural de concluir sobre o sexo e fixação de gozo frente ao desejo, como um momento prínceps da abertura da pulsão evocativa, no momento que marca a descoberta da vocação.
Reafirmo hoje que, se estruturalmente isso possa se dar na adolescência, no confronto com o real do sexo, a ressignificação com o Outro do desejo, isso não é exclusivo deste momento. Abrindo-se contingencialmente na vida, a partir da adolescência, o encontro com o pai real pode se dar ao tropeço com o analista, ou com a arte, como vias possíveis para o suporte à travessia e o reviramento da causa de nossos males, nesta condição de insustentável leveza do existir (situação de desamparo estrutural), para além do que possam todos os prozacs, viagras, bancos de óvulos garantir.
RERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Textos citados:
CALLIGARIS C. , "Virilidade em crise", texto publicado no jornal Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, 28/10/1999.
FREUD S. , "Totem e Tabu" (1913), Obras Completas , Edição Standart Brasileira, vol. XIII, Rio de Janeiro, Imago, 1969, p. 17.
FREUD S. , "Psicologia das massas e análise do eu" (1921), Obras Completas, Edição Standart Brasileira, vol. XVIII, Rio de Janeiro, 1969, p. 91.
LACAN J. , O Seminário - Livro 17 " O avesso da psicanálise"( 1969), Rio de Janeiro, Zahar, 1991.
Lamberte M. , "Condição subjetiva da adolescência", texto inédito, em vias de publicação, 1998.
.Textos aludidos, ou que contribuíram indiretamente para a construção do trabalho:
- FREUD S., "Moisés e o monoteísmo" (1939), "Analíse terminável e interminável" (1937), " "Construções em análise" (1937), Obras Completas, Edição Standart Brasileira, vol. XXIII, R Rio de Janeiro, 1969.
LACAN J. , O Seminário Livro 4 "A relação de objeto" (1956/1957), Rio de Janeiro, Zahar, 1995.
LACAN J. , O Seminário "Angústia"(1962/1963), não publicado.
LACAN J. , O Seminário Livro 11 "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise"(1964), Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
LACAN J. , O Seminário "RSI", 1975/1976, não publicado.
LACAN J. , O Seminário Livro 20 "mais, ainda"(1972/1973), segunda edição brasileira, Rio de Janeiro, Zahar, 1985.
LACAN J. , "O mito individual do neurótico"(1978) , Lisboa, Assírio & Alvim, Segunda edição, 1987.
MILNER J. , "A obra clara", Rio de Janeiro, Zahar, 1996.
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http://www.oocities.org/HotSprings/Villa/3170/EG.htm |