PSICANÁLISE E NEUROCIÊNCIAS
Marcio Peter de Souza Leite
Resumo: O autor aborda as caracteristicas da psiquiatria atual fundamentada nas neurociências e a compara com a experiência analítica. Ressalta que alguns psicanalistas temtam articular as descobertas recentes das neurociências com a psicanálise atraves da noção de epigênese e da teoria das categorizaçoes. A esta tentativa de articulação o autor contrapõe a noção de Sujeitol usado na psicanálise, e que faltaria às neurociências . A partir dessas considerações mostra como Lacan, com a teoria do estado do espelho e da pimazia do simbolico, retira a psicanalise de uma visão dualista sem inseri-la em um continuismo psico-fisico, contrapondo-se à biologização da psicanálise e aproximando-a da ética.
1- A tendência da psiquiatria atual, apropriadamente chamada de "biológica" ( ver as razões disso em "Biological Psychiatry', de M.Trimble) (1), caracteriza-se por ter seus fundamentos determinados por contribuições de outras disciplinas científicas, principalmente a neurociências.
Este novo modelo da psiquiatria critica os anteriores em seus métodos, e os substituiu por critérios estatisticos, e desconsidera a existência de um Sujeito na causação dos transtornos mentais.
Nascido da psiquiatria universitária norte-americana, conhecida como Escola de St. Louis, o DSM-III teria por modelo a resposta padrão à administração de uma substância química específica. Este procedimento denominado de critério operacional pretenderia preencher a ausência de signos patognomônicos e de exames de laboratorio em psiquiatria, e ao medicaliza-la a retiraria de uma influência filosófica a que estaria submetida com a referência à Jasper e à fenomenologia.
O DSM-III foi consequência de uma revolução lógica ocorrida nos anos 30 , que pretendeu fundar uma ciência da mente através do formalismo lógico-matematico aplicado às ciências do cérebro, cuja proposta, atribuída a Nobert Wiener e Warren Maculloch, seria a de mecanizar o psiquico assemelhando-o a uma máquina lógica que pela naturalização da epistemologia, produziu uma filosofia da mente conhecida como cognitivismo.
Dão suporte teórico a esta posição, entre outros, A Damasio, D. Dennet (2) e J. P. Changeux (3), autores que valendo-se dos recentes avanços havidos no conhecimento do cérebro, afirmam que a conduta humana pode ser explicada totalmente em termos biológicos.
Estes autores, ao propor uma causa neurobiológica para os transtornos mentais, negam a causalidade psíquica em psicopatologia, o que fez com que a psiquiatria atual tenha encontrado nas neurociências seus fundamentos epistemológicos e metodológicos.
O principal argumento dos neurobiologistas, consiste em dizer que o homem não possui nenhum elemento químico em seu corpo que não esteja presente no animal, o que os leva a uma leitura do funcionamento do cérebro fundada numa explicação genética, evolucionista, e materialista.
Produziu-se tambem uma biologia das paixões, onde o funcionamento hormonal, oposto ao neuronal, fez considerar-se o cérebro como uma glândula neuro-endócrina.
Como consequência, diminuiu a influência da psiquiatria clássica, e os "DSM" (4) e os "CID" (5), nas suas várias versões, passaram a ser os únicos codificadores de uma nova e uniforme concepção do diagnóstico psiquiátrico, caracterizado por estar orientado pelos efeitos dos psicofármacos.
A esta psiquiatria, que valendo-se das neurociências, vê o cérebro como uma máquina manipulável quimicamente, confronta-se a experiência da psicanálise.
R. Mezan no artigo " Paradigmas e modelos da psicanálise atual", (6) cita R. Bernardi que propõe a existência de três paradigmas na psicanálise contemporânea: o freudiano caracterizado pelo paradigma pulsional, o kleiniano caracterizado pelo paradigma objetal, e o lacaniano caracterizado pelo paradigama do Sujeito.
Utilizando-se da noção de Sujeito, pode-se colocar nesta referência a causa da dificuldade na relação entre psicanálise e neurociências, pois a psicanálise demonstra a existência de um Sujeito que não pode ser reduzido ao funcionamento cerebral, mesmo entendendo o cérebro como uma "máquina semântica" como faz Denett, ou "máquina intencional" como é o cérebro para Changeux, ou fazendo-se referência a um "Eu neuronal" como propõe Damasio.
O Sujeito da psicanálise não é definido como ser individual, ou sinônimo de Eu. Tampouco é o Sujeito da fenomenologia que o identifica à consciência. Freud não utilizou o termo Sujeito, mas não foi alheio à questão, e a abordou com outra terminologia, podendo-se dizer que Freud usou o termo Das Ich para se referir ao Sujeito da experiência. Segundo L.Boyer, o Sujeito em Melanie Klein pode equivaler "aos modos de atribuir significado à experiência (as posições)"
Em Lacan o termo Sujeito está presente desde seus primeiros escritos, e seu uso parece equivaler a "ser humano". Depois Lacan diferencia o Sujeito da lógica do Sujeito gramatical, assim como esses Sujeitos do definido por ser oposto ao objeto. Lacan tambem diferencia o Sujeito noético, gramatical, do Sujeito anônimo e ambos do Sujeito cuja singularidade se define por um ato de afirmação.
A este Sujeito, entendido como o que se define por um ato de afirmação, Lacan o diferencia do Eu, entendido como a sensação de um corpo unificado. Lacan no sem III, (pg.23) diz:"Aristoteles observava que não convém dizer que o homem pensa, mas que ele pensa com sua alma. Da mesma maneira, eu digo que o Sujeito se fala com o seu Eu" (7).
Em diferença do Eu, que para Lacan é construído desde a imagem do outro, o Sujeito decorre do Outro, (com maiúscula) que é referência à linguagem enquanto efeito da ordem simbólica. Por isso o Sujeito é consequencia do significante, e está regido pelas leis do simbólico. Para Lacan, portanto, a causa do Sujeito é a estrutura do significante.
Para Lacan o Sujeito não é uma sensação consciente, uma ilusão produzida pelo Eu, senão que é insconsciente, e por isso não é o agente da fala, suporte da estrutura, mas descentrado, acéfalo, dividido, evanescente.
O Sujeito na psicanálise é explicitamente diferente da consciência, portanto é um Sujeito não fenomenológico, não é uma categoria normativa, ele é uma categoria clínica, e não remete a uma totalidade.
2- As neurociências excluem a existência de um sujeito? M. Bunge (8) no livro "O problema mente-cérebro", sugere que as posições frente ao relacionamento mente-cérebro podem ser divididas em dois grupos:
Um primeiro no qual a mente é entendida como uma entidade imaterial na qual se dão todos os processos mentais, havendo uma autonomia da mente e negando-se a realidade dos corpos. Esta posição caracteriza o monismo espiritualista.
Porém, entre os que reconhecem um estado separado para a mente, há os que reconhecem a existência do corpo junto a ela, e são denominados dualistas psicofísicos e e entre eles estão o paralelismo psicofísico, o epifenomenismo, o animismo, e o interacionismo.
Um segundo no qual sustenta-se que a atividade psiquica é efeito unicamente de uma função corporal, e são os chamados monistas psicofísicos: Dentre eles destacam-se o fenomenismo, o monismo neutral, o materialismo eliminativo, o monismo fisicalista e o materialismo emergentista.
Para Bunge, Freud está incluido no categoria do dualismo tipo paralelismo psicofísico, que aponta ao cérebro e o psiquico como sincrônicos.
Alegando que as psicoterapias servem-se da noção de psicogênese, o que se sutenta somente com uma visão dualista da relação mente-corpo, A Damasio, representando o paradigma do pensamento neurobiológico, no livro "O erro de Descartes", critica e condena anoção de Sujeito, apontando-a como consequência do modelo cartesiano da relação corpo-mente.
Damasio, afirma que a noção de Sujeito decorre de um erro filosófico. Para Damasio, Descartes ao introduzir o "Penso logo existo", necessitou fundamentar a existência de duas substâncias diferentes, a "res extensa", que seria o corpo, e a "res cogitans", o pensamento, divisão que constituiu a base dualista dominante no pensamento psicológico ocidental.
Damasio, situa o "erro" de Descartes na divisão entre "psico" e "soma", e a moderna neurobiologia, "monista" por vocação, corrigiria este erro. Diz Damasio: "o Cogito ergo sum,...considerado literalmente, ... ilustra exatamente o oposto daquilo que creio ser verdade acerca das origens da mente e da relação da mente e o corpo. A afirmação sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros substratos do existir." (9)
A solução que Damasio propõe ao criticar uma "mente desencarnada" sugerida por Descartes, é a de um retorno a um monismo, como se deduz da proposta de que a "mente tem de passar de um cogitum não físico para o domínio do tecido biológico..."(10)
No entanto, como mostra P. L. Assoun no livro "Introdução a epistemologia freudiana" (11) Freud, ao situar a relação mente-corpo, o fez dentro de um ponto de vista "monista. Diz Assoun:"Na epistemologia freudiana, não há lugar para um dualismo... é pouco dizer que para Freud a psicanálise é uma Naturwissenschaft: na realidade não há ciência senão da natureza...Portanto vamos encontrar na base da epistemologia freudiana um monismo caracterizado e radical."(12)
A posição de Freud decorria de uma recusa ao parelelismo psico-físico tal qual proposto por Haeckel, cujo fundamento dualista era visto como traição à fundamentação da psicanálise nas ciências da natureza.
Foi dentro desta postura científica que Freud abordou os sintomas conversivos, relacionando-os à experiências traumáticas vividas, e não às lesões somáticas, o que contrariava a psiquiatria da época, que considerava que a causa dos sintomas histericos seria uma alteração orgânica, consequência de uma "degeneração nervosa". Freud, para explicar os sintomas neuróticos dentro das ciências da natureza, fez uso de um modêlo neurofisiológico organizado em torno dos conceitos de estrutura e função. Um exemplo simples de estrutura do sistema nervoso é o arco reflexo, cuja função é a de responder a um estímulo. No "Projeto para uma psicologia científica", Freud, tentou a compreensão do funcionamento mental fundamentado na existência de tipos diferentes de neurônios, que com suas vias de condução, barreiras de contato, mecanismos de facilitação e critérios de energia livre e vinculada, explicariam a causa dos sintomas.
O modelo neurofisiológico deu lugar ao "aparelho psiquico", que explicaria a causação dos sintomas, já que eles não correspondiam a uma lesão no sistema nervoso, e sim à sua representação psiquica. Em continuidade, Freud propôs o conceito de desamparo, que coresponde ao fato do bebê depender de um outro para a sua subsistência por um longo período de tempo, fato este que seria conformador da dependência do Sujeito a um outro, caracterizando seu desejo.
Este observação de Freud, teria sido confirmada pelas neurociências, com o que se chamou de "epigênese", que é o fato de, durante o desenvolvimento do cérebro antes do nascimento, haver uma proliferação dos neurônios e das sinapses, seguindo-se uma regressão e morte de grande parte destes neurônios.
Observa-se ainda, depois do nascimento, o "fenômeno de redundância difusa", momento em que os neurônios que restam ramificam-se, e enviam um número exagerado de prolongamentos ligando-se a outros neurônios com mais de uma ramificação.
Após o nascimento, seguindo-se a essa fase de "redundância sináptica", ocorre uma etapa de regressão das ramificações axiônicas e dendriticas, estimuladas pelo contato com o meio ambiente. A demonstração deste fato foi feita por G. Edelman, quem com a sua "teoria das categorizações", se refere à utilização dos circuitos neuronais em consequência da satisfação de necessidades ligadas à preservação da vida, o que introduz a constatação de que as experiências vividas pelo ser humano intervém ativamente na modelação do tecido cerebral.
Ou seja, a investigação neurobológica confirmaria a observação freudiana do desamparo, formalizando-o pelo processo de "epigenêse das redes de neurônios", e pela "teoria da categorizações" de Edelman.
Segundo A. Green a teoria proposta por Edelman, "é uma grande mutação na reflexão biológica", pois o conceito de auto-categorizações seria "indicativo de um tipo de organização não proveniente do exterior, sendo um tipo de organização que se faz no seio da própria pessoa segundo processos em que há algo como um tipo de regulação interna, feita por qualquer coisa que não pode chamar sujeito ou Eu".
Dentro da mesma linha de raciocínio, C. Persio, em uma reportagem publicada na revista Palavra, ano I, numero 6, com o título "A grandeza da simplicidade", referindo-se ao artigo "Divisão e suicídio celular podem ser a chave do câncer", de autoria de P.Brown, da revista inglesa "New Scientist", pretende que o conceito de "apoptose" celular, ou suicídio celular, que é o fato de que celulas normais, recebendo concomitantemente um comando para se multiplicarem e um comando para morrerem, podem se inclinar para este último, seria a demonstração biológica da tese freudiana da pulsão de morte. Diz Persio:" Fazendo um cotejamento entre os dois achados, um do campo psicanalítico e o outro do campo biológico, pretende-se sensibilizar particularmente os profissionais das áreas da psiquiatria e da psicanálise, mormente aqueles de formação médica, por duas grandes motivações. Primeiramente ressaltar a importância de a complexa tese freudiana, datada de 1920, ter sido, em sua essência, comprovada por pesquisa biológica de ponta, em 1994. Além disso, pelo fato de até a data do presente artigo não se ter lido, ouvido e visto a conexão acima apontada, conclui-se pela necessidade de publicá-la, como prova do desquite existente entre os campos psiquiáticos e psicanalíticos e entre a biogenética e a psicogenética".
Embora Freud tenho posto esperança na biologia, Lacan, retomando a psicanálise desde o ponto de vista do Sujeito entendido como decorrente de sua alienação ao simbólico, aponta que a biologia freudiana não é biologia senso estrito e por isto a morte que se trata na pulsão de morte não é a morte biológica, não é o retorno do corpo ao inanimado, é uma morte que aponta a uma além da vida que é aberto ao ser falante pela linguagem.
Porém contrastando com a teoria da epigênese, muito antes da sua dscoberta, Lacan já havia apontado as consequências na constituição do psíquico de uma condição neurológica, própria ao ser humano, chamada de neotenia, ou heterocronia, ou fetalizaçào, ou ainda sindrome de Bolk, e que se refere a prematuração especifica do bebê, que ao nascer, por não ter a bainha dos neurônios da córtex cerebral mielinizadas, não tem a possibilidade de ter coordenação motora.
Para Lacan, o fato do bebê não poder ter uma unidade corporal mostraria a impossibilidade de existir um Eu fundado pelas funções biológicas. Lacan retirou de Wallon a evidência de que antes que a coordenação motora seja neurológicamente possível, a criança já se reconhece no espelho, o que demonstraria a existência de um Eu, entendido como corpo unificado.
Por isso, o estádio do espelho mostra que há uma antecipação das funções psicológicas em relação às biológicas, o que contraria a hipótese da existencia de um Eu sustentado somente por atividades cerebrais. Em 1936 Lacan teorizou o Eu como efeito da captação imaginária do corpo. O estádio do espelho situava o corpo em relação ao psíquico, colocando a identificação à gestalt do corpo do outro como conformadora da função do Eu.
Posteriormente, em 1953, com a introdução da ordem simbólica na teorização da psicanálise, Lacan reformulou o lugar do corpo em relação ao psíquico modificando uma experiência usada em óptica física, conhecida como experiência de Bouasse, que é a demonstração de que um vaso invertido, onde há flôres colocadas fora dele, frente a um espelho côncavo, dependendo do lugar do observador, representado pelo
olho que equivale ao Sujeito, produz uma ilusão, devida ao espelho côncavo, de se ver o vaso com as flôres dentro. O corpo (C), em tanto real, é como o vaso de flôres refletido no espelho, quer dizer, ele é inacessível ao olhar, e o Sujeito (determinado pela ordem simbólica) nunca terá mais que uma apreensão imaginária do corpo.
O lugar do corpo foi retomado por Lacan ainda mais uma vez a partir da noção de gozo, noção que articula o significante com o corpo. Daí as últimas elaborações de Lacan se referirem aos tipos diferentes de gozo decorrentes da interrelação dos registros entre si, ou seja, às maneiras diferentes do significante marcar o corpo, mantendo-se Lacan sempre contrário à existência de um continuismo psico-físico, impossibilitando a articulação das descobertas da psicanálise com a neurobologia.
Esta posição de Lacan tenta solucionar os efeitos do dualismo napsicopatologia, que teve como consequenciai a divisão da causação dos transtornos mentais em causas orgânicas e psíquicas. Estas duas possibilidades foram apresentadas como complementares, ou opostas.
A hipótese de uma causação orgânica para os transtornos mentais, chamada de organogênese, na psiquiatria alemã da época de Freud, foi sugerida por Kraepelin como oposta e excludente a uma causação psíquica para estes transtornos, que foi chamada de psicogênese.
Esta dicotomia foi retomada por K. Jaspers com as noções de processo e desenvolvimento. Em Jaspers o conceito de processo psíquico se opõe diretamente ao conceito de desenvolvimento da personalidade, que diferente da noção de processo, poderia ser expresso sempre através das relações de compreensão. Segundo Lacan a noção de compreensão é um mobil da qual Jaspers fez o pivô de toda sua psicopatologia: (Lacan sem.III, pg 15) "A compreensão só é evocada como uma relação sempre no limite. Desde que dela nos aproximamos, ela é a rigor, inapreensivel... Acaba-se por conceber que a psicogênese se identifica com a reintrodução, relativamente ao objeto psiquiátrico, dessa famosa relação." (13)
Criticando a noção de compreensão, consequentemente a noção de psicogênese, Lacan, colocando-se tambem numa posição monista, assim como Freud, afirmou:"há muito tempo que eu não fazia diferença entre a psicologia e a fisiologia"( Lacan sem.III, pg. 24.). Como consequênciadesta posição, para Lacan, "o segrêdo da psicanálise é que não há psicogêne" (Lacan, sem. III, pg. 16), e aponta que seria um erro confundir sentido e compreensão.
Para Lacan não há nem psicogênese nem organogênese, há uma causação do sujeito, que se dá a partir da atualização de marcas materiais ( letra enquanto suporte material do significante) que condicionam a articulação significante, através da qual o sujeito busca sua satisfação.
Porém, atualmente não basta dizer que a psicanálise é monista, pois existem vários tipos diferentes de monismo como aponta Searles, (14) ao indicar o behaviorismo lógico, a teoria da identidade tipo, a teoria da identidade ocorrencia, o funcionalismo caixa-preta, a IA forte (funcionalismo máquima de Turing), o materialismo eliminativo e a naturalização da intencionalidade.
A neurobologia se sustenta num monismo fisicalista, que pode ser entendido como a expressão moderna do materialismo. Andrè Comte-Sponville no livro La sagesse des Modernes:Dix questions pour notre temps, perguntando-se sobre o que é o materialismo, dá dois sentidos a ele: o trivial e o filosófico. "No sentido filosófico o materialismo seria uma ontologia, uma teoria do ser, ou uma concepção do mundo". Segundo Comte-Sponville o materialismo "é a doutrina em que só há seres materiais: O materialismo seria um monismo fisico. Em tais condições, o materialismo se define sobre todo pelo que exclui: ser materialista é pensar que não existe um Deus trascendente nem alma material...E este ponto é onde se encontram o materialismo conteporâneo e a biologia, e especialmente a neurobiologia. Ser materialista, para os modernos, é em primeiro lugar reconhecer que é o cérebro o que pensa, e extrair as consequencias" (15).
Cabe acrescentar a crítica que este filósofo faz a este monismo físico, apontando que este materialismo é um fisicismo, e por isto seria indiscernivel de um naturalismo, ou um fisicismo ontológico.
A questão portanto não estaria em acusar a psicanálise de dualista, como sugerem os representantes da neurobiologia, pois a psicanálise tambem é monista. A questão estaria em contrapor o monismo próprio à psicanálise ao monismo da psiquiatria estabelecido desde os parâmetros de um monismo fisicalista.
Diferenciando-se as formulações de monismo que ambas sustentam, deve-se refletir-se ainda sobre as consequências disto na clínica, assim como deve-se formalizar a causa material de um Sujeito sustentado num monismo não fisicalista.
Outra questão, é a que introduz a noção de Eu, que tanto na psicanálise como na psiquiatria refere-se à necessidade de nomear-se um lugar centralizador para as decisões que determinam as condutas de um Sujeito.
Este Eu, que na visão da psiquiatria, seria o "Homem neuronal" de J.P. Changeux, ou segundo A. Damasio, seria um "Eu neuronal", ambos dependendo unicamente do funcionamento cerebral, na psicanálise foi formalizado, tanto por Freud como por Lacan, a partir do conceito de Narcisismo, e aponta a um corpo libidinal diferente do organismo.
Com isso, Lacan, assim como Freud havia feito antes com a investigação da conversão histerica, demonstrou a existência de um corpo que não se reduz ao orgânico, e ampliou com a teoria do estádio do espelho, a conceitualizaçào do que Freud havia antes chamado de corpo erógeno.
Desta maneira, tanto Lacan como Freud, discordam de Descartes, na medida que introduzem a idéia de que o pensamento está encarnado em um corpo. Para a psicanálise há um corpo que não se reduz ao organismo, chamado de corpo narcísico, que é um corpo de gozo, como ensinam os sintomas da histeria, e os fenômenos psicossomáticos.
3- A psiquiatria, coerente com a hipótese dos sintomas serem condicionados somente pelas alterações dos neurotransmissores, indica, como único tratamento, uma ação neles.
Para a psicanálise o Sujeito é constituido em relação a um outro, de quem depende para sua subsistência, dependência esta mediada pela linguagem, o que determina que o Sujeito, na busca de sua satisfação, reatualize os registros que anteriormente tornaram a satisfação possível, mesmo que sejam irrecuperáveis.
Seriam as neurociências e a psicanálise, inconciliáveis?
Há entre os psicanalistas aqueles que apontam a posssibilidade desta interlocução fazendo conexões entre os recentes avanços das neurociências, e as evidências demonstradas pela psicanálise.
Y. Soussumi no artigo "A psicanálise hoje e freudiana? A psicanálise e algumas idéias neurobilógicas e imunoendócrinas", publicado no livro "Corpo-mente, uma fronteira móvel" (16), desenvolvendo o conceito de "epigênese", cita a "teoria das categorizações" de Edelman, como uma forma possível de se estabelecer a ponte das neurociências e a psicanálise.
Segundo Soussumi, Edelman ao investigar os fenômenos cerebrais à luz da teoria do "Darwinismo neuronal", aponta que as experiências vividas pelo ser humano ao nascer, nos momentos precoces de sua relação com o meio ambiente, vão ativar seletivamente os circuitos neuronais programados geneticamente. À utilização destes circuitos, Edelman deu o nome de "Categorizações", e se refere a satisfação ou não de necessidades instintivas ligadas à preservação da vida.
Este paralelismo possível entre as neurociências e a psicanálise é levado ao extremo quando Saussumi faz a seguinte comparação: "Talvez o modelo mais próximo da consciência primária seja aquele que possui o cérebro direito de alguns individuos com o cérebro esquerdo dominante em situação de splitting cirúrgico." (17)
Outra pesquisadora da possível relação da psicanálise com a neurociência, Susan Vaughan, no livro " The talking cure- The cience behind psychoterapy", (18) publicado 1997 em Nova York, chega a defender que há uma função cerebral a que ela chama de "sintetizador de histórias" que estaria alojada na córtex cerebral.
Esta autora chega a propor "que as conexões biológicas entre os neurônios que constituem o sintetizador de histórias são literalmente fortalecidas, moldadas, enfraquecidas ou destruidas- em última análise refeitas- ao longo do processo de psicoterapia."
Mesmo entendendo o que a autora chama como sintetizador de histórias, como uma metáfora para Sujeito, a demonstração das alterações celulares causada por efeito de psicoterapia ainda estaria para ser feita.
Assim como tambem, o paralelo feito por Soussumi da noção de "epigênese", e da "teoria das categorizações" de Edelman, nunca poderiam explicar o Édipo ou a Castração, sem cair em uma analogia biológica imprópria. O mesmo vale para o paralelo feito C.Pérsio no artigo "A grandeza da simplicidade", onde propõe um paralelo da "apoptose" celular com a pulsão de morte.
O psicanálise, tomada pelo paradigma do Sujeito, vê no outro, tanto na sua dimensão imaginária de semelhante, como na sua dimensão simbólica de Outro, e mesmo na dimensào real de "Das Ding", a causa do sujeito. Este fato aponta à uma alienação originária na constituição do Sujeito, e faz com que, para ele, o saber esteja sempre no outro, o que faz diferença com as ciências cognitivas, que coloca o funcionamento cerebral na origem do saber.
Daí a psicanálise incluir a presença do outro, através da pessoa do analista, como condição do tratamento, e com isso, reproduz na transferência a estrutura onde o Sujeito demanda a um outro uma resposta sobre o que lhe falta. Ou seja, o analisante, ao associar, o faz para alguém: o analista fica assim colocado como um ouvinte privilegiado dessa busca do analisando da verdade sobre ele mesmo.
O analisante busca essa verdade oculta, nos limites das suas palavras. Limite que é posto no analista, não como qualquer ouvinte, mas um ouvinte especial, um ouvinte que decide da verdadeira significação dessas suas palavras. Por isso para Lacan então, existe abertura para a transferência, pelo simples fato de que o paciente se coloque em associação livre.
Desde este prisma, a transferência é, em primeiro lugar, relação com o saber. Este saber porém é, na situação analítica, atribuído ao ouvinte, "lugar' do analista, e não necessariamente à sua pessoa. Se do que se trata na transferência é do amor, o marcante é que se trata de amor, a qualquer um, na posição de analista. Este "qualquer um", peculiar da situação analítica é o conceito de Outro. Por isso a clínica lacaniana é a clínica do Outro, ou clínica da transferência. A relação de um sujeito com o outro se transforma quando se introduz a linguagem. A linguagem é um terceiro, um nem um, nem outro, que se constitui numa referência comum para os dois.
Este terceiro é este Outro, um Outro que não é semelhante. Assim quando se fala dirige-se sempre a esse Outro.
A invenção de Freud foi a invenção do analista como representando esse Outro. 0 analisante, pelo simples fato de aceitar a regra fundamental, que o coloca na posição de não saber o que diz, cai na dependência desse Outro. No entanto, não se trata de uma dependência real. Trata-se da dependência da relação desse sujeito com o saber (saber este que é o que esse sujeito procura numa psicanálise).
0 amor de transferência, ao colocar em evidência a função Outro, evidencia que o que se ama numa outra pessoa é sempre um significante. Assim se ama na outra pessoa aquilo (significante) que nos falta e a outra pessoa tem (pois o Outro, não o semelhante, é supostamente completo).
Neste sentido a experiência psicanalitica desautoriza qualquer paralelo entre neurociência e psicanálise, pois elas tem uma posição antagônica quanto à causa e funcionamento do Sujeito.
Como explicar a transferência pela neuroquímica? O que dar ao outro para completar o que lhe falta? Remédios ou o acesso a uma verdade, causa de seu sofrimento?
Pergunta que aponta a uma ética, porém não uma ética dos filósofos, mas uma ética da psicanálise. Esta ética foi sugerida por Lacan como: "uma ética se anuncia, convertida ao silêncio pelo advento não do pavor, mas do desejo" (19)
Neste sentido, a ética da psicanálise, em primeiro lugar, diz respeito à interpretação do desejo inconsciente que implica o Sujeito na responsabilidade de uma escolha, evitada para não produzir angustia.
O limite disto, está na incompatilidade do desejo com a palavra, o que esboça a virtude alusiva da interpretação, que vai da interpretação definida como tomar o desejo à letra, até a interpretação enquanto incidindo sobre a causa do desejo.
A ética do analisando pode ser formulada como Wo Es war soll Ich werden: aí onde Isso era, deve advir Eu. Isto quer dizer há ética onde há escolha, decisão, o que se manifesta de maneira exemplar na analogia feita por Lacan da depressão com a covardia moral.
À ética da psicanalise pode-se acrescentar uma ética do desejo, que não é uma ética da liberação do desejo, mas de sua resolução, o que, devido a incompatibilidade do desejo e da palavra, coloca o problema do "bem-dizer".
A definição de Lacan da tristeza como falta moral, reúne o afeto triste com a culpa. E o sentimento de culpa marca a posição do Sujeito diante do desejo, o que coloca a questão de saber o que um fenômeno, como a depressão, deve à época. Aponta a isso expressões como spleen, ou blue, que se referem a posições do Sujeito frente ao espírito da época.
Alguns analistas, fazendo uma leitura da situação atual que vive a psicanálise, apontam um declínio da psicanálise que, segundo eles, teria por causa a dificuldade de analisibilidade que o Sujeito pós-moderno apresentaria. O Sujeito pós-moderno é apresentado como vítima do anonimato do modo de vida atual, vivendo em uma civilização condicionada pelo discurso da ciência e pela globalização do capitalismo, marcado pela ausência de ideais, e pela falta de crenças que caracteriza o fim de século.
O Sujeito, pelo fato de constuir-se a partir do Outro, depende do saber que o Outro tem, fato que a tranferência demonstra. Se o saber muda, como acontece numa pós-modernidade cacacterizada pela ausência de paradigmas, pode-se supor que o Sujeito tambem mude, porque ele é constituido a partir do saber, como mostram as figuras do sujeito definido historicamente.
Uma tentativa de articular a historicidade da noção de Sujeito foi feita por Drawin (22), que refere-se a figuras ideo-históricas da subjetividade, apontando, a partir do paradigma cosmocentrico a figura de um Sujeito noético, contraposto a um paradigma antropocêntico, que teria como representante a figura do Sujeito epistemico-reflexivo, que é a solução do racionalismo Cartesiano. Ainda se poderia falar na contribuição kantiana com a introduçào do Sujeito autonômico-transcendental etc.
Do ponto de vista histórico, o Sujeito evidenciado pela psicanálise, segundo Lacan, é o Sujeito da ciência. Para Lacan existiu uma mudança decisiva que fundou a ciência moderna. Moderna no sentido de não se inscrever em continuidade com os saberes que a precederam.
Para Lacan, a emergência da ciência moderna deveu-se a uma modificação da posição do Sujeito que seria consequencia da sua relação com o saber. Este acontecimento seria datado a partir do Cogito Cartesiano, o que teria produzido uma separação radical entre Sujeito e saber.
O Sujeito, visto pela psicanálise, tem portanto uma historicidade, chegando Lacan a usar o expressão "um certo momento do Sujeito", ou "momento historicamente inaugural do Sujeito", referindo-se tambem a um "Sujeito novo", ou a uma "modernidade do Sujeito".
Ou seja, o Sujeito moderno seria o Sujeito decorrente do desprendimento do Sujeito da ciência, o que ocorreu como efeito da operação do Cogito. A partir dai a ciência passou a ser um saber novo que recusa o Sujeito. A ciência moderna seria uma modalidade de saber liberada do vínculo com qualquer subjetividade, seria uma ideologia da supressão do Sujeito.
Para Lacan a psicanálise está em correlação com este momento da ciência, sendo o Sujeito da ciência a condição para a existência do discurso analitico. Para a psicanálise o Sujeito não é uma substância, não é uma "res cogitans" como diz Descartes. O Sujeito para a psicanálise não é a consciência, não é a experiência, não é a fonte do sentido, ele está constituido por uma verdade.
Como o inconsciente evolui, o analista, definido por Lacan como uma consequência do conceito de inconsciente, tambem deve mudar para poder abordar as novas manifestações subjetivas.
Ou cabe ao Sujeito renunciar à sua responsabildade e, como única saida, medicar-se, perpetuando sua alienação num efeito quimico determinante de sua felicidade, por mais ôca que seja esta palavra?
Na leitura de Lacan, o Sujeito decorre do significante. Por outro lado, o significante articula-se ao corpo pelo gozo, portanto o gozo supõe um corpo que o suporta.
A articulação entre corpo e psíquico foi proposta por Lacan, abandonando as categorias do dualismo cartesiano de substância pensante e material, com o que ele chamou de substância gozante. (substância usada aqui na referência de Aristóteles a Ousia). O Sujeito em contrapartida é um upokeimenon , ele é pura suposição significante e não é substancial.
Lacan não foi positivista, mas materialista, no sentido da referência material da idade média, que atualmente se chama de formal. O ponto que une esta posições é a efetividade. Dai Lacan ler o uso que Freud faz da noção de "marcas", não com "engrama", mas como corte, e é isto que Lacan chamou de moterialisme24 , que é um neologismo que condensa mot, palavra em francês , com materialisme. Ou seja a psicanálise usando a palavra, o significante, atinge o corpo, pela via do gozo.
Por isto Lacan, ao tratar a teoria dos afetos em Freud, não recorreu à psicofisiologia. O afeto para Lacan pertence ao Sujeito, e implica em que o Sujeito está afetado em suas relações com o Outro.
A orientação lacaniana implica portanto distinguir as emoções, que são de registro animal, vital, dos afetos, que petencentem ao Sujeito. Para Lacan a angústia é um afeto, não uma emoção, e para se compreender a teoria dos afetos é necessário passar-se da psicofisiologia à ética.
É no Sujeito causado pelo significante, que marca o corpo pelo gozo, e não no Eu, que a psicanálise atua. Daí Lacan ter afirmado: "Somos sempre responsáveis da nossa posição de Sujeito. Que isto se chame, onde quiserem, terrorismo..."25. Afirmação que aproxima a clínica analitica da ética e a afasta da neurociência.
Marcio Peter de Souza
Leite, Médico, psiquiatra,
psicanalista. Diretor-Geral da Escola Brasileira de Paicanálise.
Membro da Associação Mundial de Psicanálise. Professor no
Instituto de Pesquisa em Picanálise-SP. Autor de O Deus
odioso o Diabo amoroso, Ed. Escuta, Psicanálise Lacaniana,
Ed. Iluminuras, e co-autor de Jacques Lacan uma biografia
intelectual , Ed. Iluminuras.
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