REFLEXOS DE ESPELHOS

Machado de Assis e Guimarães Rosa: um estudo comparativo de dois contos

Maria Lucia Homem

 

Ambos os escritores, Machado de Assis e Guimarães Rosa, escreveram, com quase um século de diferença, um conto de título idêntico: "O Espelho" (1). Embora a narrativa e a abordagem de cada conto sejam distintas, podemos dizer que o tema em questão focaliza a mesma problemática e seus avatares: o sujeito dividido em busca de uma identidade, identidade que se encarna como "totalizante" e unificadora.

Enfocaremos o desenrolar dessa questão e o tratamento dado a ela por cada um dos autores. Quer essa identidade se encontre momentaneamente obliterada - e a estratégia utilizada pela personagem seja a de se apoiar na imagem produzida pelo espelho - como em Machado de Assis; quer se trate de um questionamento radical dessa mesma identidade do sujeito - e a própria imagem seja colocada em suspenso - como em Guimarães Rosa.

O espelho, aparato que obedece às leis físicas, vem embasar essa busca, a mais essencial do sujeito, que poderíamos sintetizar com a questão: quem sou? Além da aparência, a busca da essência. Por detrás da imagem objetivamente produzida pelo espelho, alinha-se a busca incessante da verdadeira identidade do ser.

Estamos no reino da metafísica e da transcendência - o início dos dois contos o confirma. No enredo de Machado de Assis, cinco "investigadores de coisas metafísicas" (MA, p. 71) discutem ao longo da noite: trata-se de um debate de "questões de alta transcendência" (MA, p. 71). Inclusive o subtítulo do conto o reitera: "Esboço de uma nova teoria da alma humana". Vemos em Guimarães Rosa, também no primeiro parágrafo, a delimitação desse campo do oculto e do transcendente. O mesmo significante utilizado por Machado se repete: "Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério" (GR, p. 61). Assim, para ele, o conceito de transcendência toma uma vasta amplitude: mesmo o real, o concreto do fato - e até sua ausência - é englobado no domínio do misterioso: "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo" (GR, p. 61).

Primeiramente, seguiremos com mais detalhe o conto de Machado de Assis, para depois nos aprofundarmos no "outro espelho", de G. Rosa.

Machado situa seus "investigadores das questões metafísicas" discutindo em torno "dos mais árduos problemas do universo" (MA, p. 71), entre eles a questão da natureza da alma. E é justamente Jacobina, aquele que menos falava e abstinha-se dos debates, dada a multiplicidade ou inconsistência das questões, que relata aos demais uma história, um caso de sua vida.

Jacobina inicia sua narrativa enunciando uma tese: "Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas" (MA, p. 72). Há uma alma interior e uma alma exterior: "uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro" (MA, p. 72). Logo de início, a personagem explicita a constitutiva divisão do sujeito: o ser "metafísico" é caracterizado pela dualidade, pelo "dois", que tão crua e simplesmente define o subjetivo - "duas almas".

Tese básica da psicanálise, a divisão do sujeito é referida por Freud e explicitamente enunciada por Lacan. O próprio conceito de inconsciente carrega consigo a marca indelével dessa divisão estrutural e da constante alienação do sujeito a esse "algo" que ele desconhece, sobre o qual não há saber objetivo que o oriente e do qual ele perde o domínio e controle. Lacan apresenta-nos o inconsciente, em seu "Rapport de Rome", como um capítulo censurado, aquele que falta no livro que conteria a história do sujeito. O inconsciente "est ce chapitre de mon histoire qui est marqué par un blanc ou occupé par un mensonge: c’est le chapitre censuré (2)", ou ainda: "est cette partie du discours concret en tant que transindividuel, qui fait défaut à la disposition du sujet pour rétablir al continuité de son discours conscient (3)".

Freud, em sua "segunda tópica" - isso, eu, supereu (cf. Freud, "O Ego e o Id" (4) - coloca como um ideal buscado pelo processo de análise a conquista de territórios do isso pelo eu - o inconsciente que se tornaria consciente. Com Lacan, temos o enunciado formal da divisão como constitutiva do sujeito: este é dividido pelo significante, pela linguagem:

"L’expérience psychanalytique a retrouvé dans l’homme l’impératif du verbe comme la loi qui l’a formé à son image. Elle manie la fonction poétique du langage pour donner à son désir sa médiation symbolique (5)".

A barra do algorítmo de Saussure - significante / significado - vem barrar o sujeito, $ (cf. Lacan, "Fonction et champ de la parole et du langage" (6), marcando assim a própria alienação constitutiva desse sujeito, oscilante entre a forma especular imaginariamente plena e seu discurso entrecortado:

"C’est donc toujours dans le rapport du moi du sujet au je de son discours, qu’il vous faut comprendre le sens du discours pour désaliéner le sujet (7)"

Machado de Assis caracteriza esse desconhecimento e alienação do sujeito através da própria designação de alma "exterior": algo que é exterior ao sujeito. E ainda, ela "não é sempre a mesma (…) muda de natureza e de estado" (MA, p. 73). Externa e mutante, essa alma exterior pode ser quase "qualquer coisa": "um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação" (MA, p. 72). E a lista não pára aí, é extensa: vai de um botão de camisa ao voltarete, de um par de botas a um tambor. Em suma, é um olhar externo, que vem de fora do sujeito e que o estrutura, capaz de lhe dar uma certa forma e determinada organização.

Estamo, pois, às voltas com o Outro. O grande Outro lacaniano que vem delimitar e mesmo desenhar os contornos do sujeito - justamente a partir do que se denomina "estádio do espelho" (cf. Lacan, "Le stade du miroir" (8) dando-lhe uma unidade ilusória, uma completude almejada:

"le stade du miroir est un drame dont la poussé interne se précipite de l’insuffisance à l’anticipation - et qui pour le sujet, pris au leurre de l’identification spatiale, machine les fantasmes qui se succèdent d’une image morcelée du corps à une forme que nous appellerons orthopédique de sa totalité, - et à l’armure enfin assumée d’une identité aliénante, qui va marquer de sa structure rigide tout son développement mental (9)".

No conto, tal completude imaginária é tratada a partir da metáfora do homem como a junção das duas metades de uma laranja: "Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja" (MA, p. 72).

O ser humano, dada sua inerente prematuração ("une véritable prématuration spécifique de la naissance chez l’homme" (10), necessita da presença de um outro que lhe nomeie e possibilite, assim, os contornos de seu ser. Através do olhar da mãe - esse Outro primordial - que delimita sua imagem no espelho, o bebê unifica a imagem do seu próprio corpo. A partir daí, essa passa a ser a sua imagem, a sua identidade; dada assim por esse outro imaginário que é aquela figura una, única e completa da imagem no espelho.

No conto de Machado, o que presenciamos é justamente um momento de eclipse dessa imagem especular, garantidora da identidade do sujeito. Este - a personagem em questão, o alferes - se vê, então, completamente despedaçado e quase sem "existência", nos limites da desintegração: "Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, un sonâmbulo, um boneco mecânico." Veremos, então, o desenrolar desse processo - como o "homem" foi plenamente possuído pelo "alferes" e como este passou por um momento de perda absoluta de seus referenciais, reencontrando-se, por fim, na imagem fornecida pelo espelho.

Até então, a identidade da personagem - que havia sido restringida exclusivamente a "alferes" - era garantida pelo círculo social, que reiterava repetidamente o seu novo estatuto: "senhor alferes" - "E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda hora". Segundo Jacobina, não só a manutenção desse estatuto de alferes estava a cargo das relações sociais, como foi a partir de tanta insistência que ele passou a identificar-se exclusivamente com essa "metade" de seu ser.

A identificação é um dos elos sociais mais significativos, propiciando o convívio humano e a própria organização das instituições (cf. Freud, "Psicologia dos grupos e análise do eu" (11). No entanto, pode se tornar devastadora da individualidade e da subjetividade próprias a cada sujeito: da sua alma interior. Foi o que se passou com o "Joãozinho", totalmente escamoteado em prol do "senhor alferes":

"O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação (…) O alferes eliminou o homem" (MA, p. 76).

Houve, entretanto, um período de conflito e luta. Não é simples e imediato esse processo de encobrimento total de uma das faces do sujeito por outra:

"Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade" (MA, p. 76).

O conflito entre a alma interior e a exterior, entre o ser e as insígnias do ser, é colocado por Machado de Assis em termos do conflito entre o "alferes" e o "homem": "ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa" (MA, p. 76). Esse jogo de identificações é complexo e dinâmico, alterna-se em suas representações, oscilando continuamente entre os eixos do imaginário e do simbólico. A alma exterior de Joãozinho passou a ser "a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada mais do que me falava do homem" (MA, p. 76).

Ao cabo de algumas semanas, ele estava totalmente mudado, fisgado pela imagem sedutora e narcísica do belo e distinto alferes. "No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes" (MA, p. 76). Preso no espelho, escravo da própria imagem ilusoriamente construída, ele passou a ser nada mais do que imagem. Imagem atraente, imagem armadilha.

No entanto, a imagem conjuga o falso e o etéreo. Assim, não deixa de ser frágil, apoiada que está na cumplicidade tácita do Outro. A partir do momento em que este Outro desaparece, mesmo que momentaneamente, toda a estruturação imaginária e narcísica se desfaz. Sofre um abalo em sua base, levando o sujeito à perda quase absoluta de seus pontos de referência anteriores:

"Na manhã seguinte achei-me só (…) Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diane do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum folêgo humano" (MA, p. 77).

O cenário é de completo abandono - tudo está deserto - numa analogia com o estado de alma da personagem: o "senhor alferes" estava só e abandonado. Ele sai em busca de um sopro humano, é-lhe absolutamente necessária a presença de uma alma viva, que venha lhe devolver a garantia de sua unidade e completude. No entanto, não havia ninguém: "Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior" (MA, p. 77).

Sem a confirmação do Outro de sua identidade e até de sua existência, Jacobina deixa-se levar aos limites da ausência, da não-vida. Sua solidão havia tomado "proporções enormes" (MA, p. 78). Ele deixou-se estar, largado pelos cantos da casa vazia, a ouvir a passagem do tempo na escansão do bater do relógio. "Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula" (MA., p. 78).

Ao final, ele ocupava a posição de "quase morto", de inexistente, daquele a quem falta o testemunho alheio para ter a certeza de estar vivo. "Era como um defunto andando" (MA, p. 78). E é então, nesse momento, que ocorre o ‘fenômeno do espelho’: o quase morto, no limite da perda de sua identidade, tenta ver-se no espelho e não consegue- não há o que ser visto. A imagem é vaga e tortuosa, quase inexistente, reflexo mais puro e real de sua alma naquele dado momento. Alma esvaziada:

"Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra" (MA, p.80).

Tomado pelo inesperado, sentiu medo, e começou a fugir dessa imagem própria que mais era uma não-imagem. Começou a se vestir para partir. Momento justamente em que lhe vem uma "inspiração inexplicável" (MA, p. 81) e ele, "por um impulso sem cálculo" (MA, p. 81) - aliás, próprio do inconsciente - teve uma idéia.

Vestiu esse corpo - que passara a ser quase nada, sombra de sombra, esfumaçado - com o uniforme de alferes. Decidiu assumir integralmente a sua identidade de "senhor alferes" - literalmente vestiu-se com sua alma exterior, agora única e soberana: "era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugidia com os escravos, ei-la recolhida no espelho" (MA, p. 81).

O espelho, que capturara sua identidade perdida. Quando o Outro não é incarnado pelo ser falante, passa a ser exclusivamente o outro da imagem especular. Duplo que se repete e se sustenta dessa dualidade imaginária. Com a imagem de alferes no espelho, Jacobina voltou a existir. Vivo, um "ente animado". E com uma imagem nítida:

"Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro" (MA, p. 81).

Passemos agora ao ‘outro espelho’, o de Guimarães Rosa. Assim como em Machado de Assis, há a busca de uma identidade - que fora perdida ou que está sendo questionada - através do espelho. Como se o espelho pudesse transmitir ao sujeito que se procura, que busca a si mesmo, uma idéia da verdade de seu "ser": o "eu por detrás de mim" (GR, p. 63) buscado pela personagem de G. Rosa.

Primeiramente, o sujeito constata que há um acordo tácito onde todos acreditam no exatidão da percepção, acreditam ser como a imagem do espelho mostra que eles são. "O espelho, são muitos (…) todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel" (GR, p. 61).

No entanto, num segundo momento, surge a questão: "Mas - que espelho?" (GR, p. 61). A personagem começa por colocar em dúvida a veracidade da imagem fornecida pelo espelho. A antiga e tranqüila identidade imagem = realidade é posta em questão. Não há como situar o limite dessa identidade, sua "honestidade" ou "fidedignidade" - "Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível?" (GR, p. 61).

Mais adiante no conto, ficará explicitada essa preocupação - eis o objetivo da personagem: alcançar sua mais íntima essência, sua identidade verdadeira sob a máscara da imagem: "necessitava eu transverberar o embuço, a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa - a minha vera forma" (GR, p. 64).

Após passar por digressões acerca dos aparelhos ópticos - espelhos planos ou curvos - e a constante possibilidade de engano e erro, G. Rosa enuncia sua desconfiada conclusão: "Sim, são para se ter medo, os espelhos" (GR., p. 62). Já os temem os animais, que fogem dele, e os primitivos, que acreditam que o reflexo de uma pessoa fosse a sua alma.

Traidores em potencial, os espelhos mostram uma coisa que não é a coisa. A imagem do objeto em muito se distingue deste - e talvez nem seja possível um verdadeiro acesso a esse objeto, ou à Coisa (cf. seminário 7, A ética da psicanálise (12), como diria Lacan. Não só o objeto não se deixa conhecer diretamente, pois sempre seremos destinados a apreendê-lo pela via da percepção e da representação (numa clara referência a Kant, em sua Crítica à Razão Pura), mas ainda devemos desconfiar de nossos próprios aparelhos perceptivos.

Além dos espelhos, enquanto aparelhos ópticos, os olhos também não são confiáveis na apreensão do real: "Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim" (GR, p. 62). Os olhos "padecem viciação de origem", desde pequenos nossos olhos já nos traíam - o inocente bebê vê o mundo de cabeça para baixo.

E há ainda um outro elemento falseador da realidade: o tempo, esse "mágico de todas as traições" (GR, p. 62). As deformações ocorrem, e a simultaneidade é impossível, limitados que somos ao aqui e agora deste espaço e tempo que o nosso corpo ocupa.

Todas essa reflexões de ordem racional e filosófica não impedem que a personagem se depare com uma experiência inaugural. Cabe notar que a racionalização pode atuar como um mecanismo de defesa (cf. Freud, "Mal estar na civilização" (13), onde o revolver de idéias consiga por fim afastar as vivências que poderiam desterritorializar - e desidentificar - o sujeito.

No entanto, a personagem do conto dá mostras de coragem - vai até o fim de uma experiência iniciada como que por acaso: ele enxergou num espelho uma imagem que o incomodou. Qual não foi seu espanto ao perceber que aquela era sua própria imagem. Sua primeira reação foi de repulsa, de ter entrado em contato com algo terível: "desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor" (GR, p. 63). É interessante observar que estamos realmente tratando do sujeito face a seu duplo - aquele que é ele próprio e no entanto desconhecido, recalcado - "aquele homem". A parte de desconhecido que o habitava e que no entanto lhe era completamente estrangeira, estranha (cf. Freud, "Das Unheimliche" (14).

Quando ele percebeu que essa hedionda imagem no espelho era dele mesmo, começou com o processo de busca de si mesmo - "comecei a procurar-me" (GR, p. 63). Metaforicamente, poderíamos dizer que esse "começar a procurar-se" seria a iniciação de um ‘processo de análise’. Processo feito procurando recuperar "o eu por detrás de mim". Para tanto, deve-se, nesse processo, passar por uma etapa de questionamento radical sobre as várias identificações que foram sendo operadas ao longo da existência.

Temos aqui o processo inverso ao da personagem do conto de M. Assis. Enquanto Jacobina eclipsou-se como sujeito frente à imagem, e a solução encontrada por ele, sua "salvação", foi justamente a identificação com o ideal transmitido pelo espelho; a personagem de G. Rosa busca justamente despojar-se dessas falsas peles e falsas imagens que são as identificações especulares - "capas de ilusão":

"Conclui que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio "visual" ou anulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado" (GR, p.64-65, grifo do autor).

Verifica-se, assim, um processo de recuperação, "uma a uma", dessas identificações, para somente então ser possível sobrepujá-las, a fim de se atingir a conquista desse "eu atrás de mim":

"O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal" (GR, p. 64, grifo do autor).

Essa busca da "vera forma" deverá, assim, neutralizar a percepção, já natural e estabelecida, das várias "componentes do rosto externo". Note-se que estamos, então, em busca de algo "interno" e visceral, que não se deixaria iludir com o aspecto superficial. Para tal, a personagem utiliza as mais variadas técnicas, métodos e estratégias - desde a ioga e as meditações filosóficas aos "métodos empíricos" de gradação e coloração de luzes - embora o cerne de sua preocupação estivesse no "modus de focar": era preciso saber "olhar não-vendo" (GR, p. 65). Quer dizer, olhar esse rosto coberto das capas do ilusório e apreender a essência a mais depurada, longe dos elementos que aí vieram instalar-se.

Em primeiro lugar, a personagem busca desvencilhar-se de seu "elemento animal" (GR, p. 65) - a identificação com o "atávico em nós" , o que há de primitivo e animal, o reino da natureza. No seu caso, é a onça o seu "sósia inferior na escala" (GR, p. 65). Desfazendo-se dessa primeira identificação ao elemento bestial, vemos que sua imagem já começa a se depauperar, torna-se fluida: "minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas, quase apagadas de todo, aquelas partes excrescentes" (GR, p. 65).

Ele prossegue a experiência. Em segundo lugar, busca "deixar de ver" em seu rosto os traços hereditários - a família que nos educa e com a qual certamente estabeleceremos pactos identificatórios: "as parecenças com os pais e avós" que são um "lastro evolutivo residual" (GR, p. 65-66). É nesse momento que G. Rosa deixa escapar uma de suas frases lapidares: "Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto" (GR., p. 66).

Em seguida, a personagem tenta livrar-se do contágio das paixões, todas, "manifestadas ou latentes" (GR, p. 66); seguidas das idéias e sugestões de terceiros, dos efêmeros interesses e demais "pressões psicológicas transitórias" (GR, p. 66).

A personagem evolui em seu trabalho, fazendo-o cada vez com "maior mestria" (GR, p. 66). O que é descoberto? Que a forma do eu, ou da imagem do eu, aproxima-se de uma couve-flor ou bucho de boi, ou mesmo uma esponja. A estrutura do eu revela-se como potencialmente ilusória, na sua forma "meândrica" e "em mosaicos": "À medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair, e abstrar, meu esquema perspectivo clivava-se" (GR. p. 66).

No dizer de Freud, o eu seria como uma cebola, com suas infinitas e concêntricas cascas. Cascas essas a serem descascadas, tal como num processo de análise ou no processo engendrado pela personagem do conto a fim de descobrir sua verdadeira imagem, sua "vera forma". Lacan trabalha essa questão da identificação e do narcisismo através do já citado estádio do espelho - o eu seria assim uma imagem, fisgado que está no outro imaginário, imagem narcísica presa no espelho: "Il y suffit de comprendre le stade du miroir comme une identification au sens plein que l’analyse donne à ce terme: à savoir la transformation produite chez le sujet, quand il assume une image (15)".

Essa transformação produzida no sujeito - quando ele assume uma imagem - foi-nos brilhantemente mostrada por Machado de Assis através das reviravoltas de seu "alferes". E, em Guimarães Rosa, temos um questionamento e uma tentativa de quebrar os elos dessa "dialética da identificação", tal como a nomeia Lacan:

"L’assomption jubilatoire de son image spéculaire par l’être encore plongé dans l’impuissance motrice et la dépendance du nourrissage qu’est le petit homme à ce stade infans, nous paraîtra dès lors manifester en une situation sexemplaire la matrice symbolique où le je se précipite en une forme primordiale, avant qu’il ne s’objective dans la dialectique de l’identification à l’autre et que le langage ne lui restitue dans l’universel sa fonction de sujet (16)".

Ao final desse processo de "análise", ou de "mise en question" das identificações do moi, restaria uma interrogação: depois de se despojar das várias identificações sobrepostas nessa imagem, ao longo do tempo, o que resta?

A resposta de G. Rosa é simples: nada. Um dia chegou em que a personagem não mais se viu, estava no reino do "invisto", do "ficto" (GR, p. 66). Houve a queda radical da imagem especular - não havia mais nenhuma imagem que viria sustentar qualquer identificação do sujeito - "me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. (…) Eu não tinha formas, rosto? (…) O sem evidência física. Eu era - o transparente contemplador?...Tirei-me. Aturdi-me" (GR, p. 66).

Sem substrato algum, a imagem esvai-se, não há mais objeto a ser visto, mas somente o sujeito atônito, o "transparente contemplador". E, o que mais estarrece a personagem é que, além da imagem perdida, eclipsa o seu próprio olhar. Ele não mais vê os seus olhos, nem eles: "E o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos" (GR, p. 66).

Nesse momento, então, poderíamos concluir que não haveria a tão sonhada e procurada essência do ser, sua "existência central". Não haveria, pelo menos em termos imaginários, através do espelho, uma verdadeira e autônoma imagem do sujeito. A personagem depara-se com a "face vazia do espelho", que lhe faz questionar essa estrutura do ser, do existir: "o espirito de viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: esperança e memória" (GR, p. 67).

É assim que, "partindo para uma figura gradualmente simplificada" (GR., p. 67), a personagem chega ao limite da não-representação, da não-figuração: "despojara-me, ao termo, até a total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um des-almado?" (GR, p. 67).

Cabe notar, aqui, o princípio norteador de sua busca: a alma seria refletível no espelho. Dessa forma, se não há imagem, é porque não há alma. Assim, como em M. de Assis, busca-se discutir sobre o estatuto da "alma humana" através de metáforas e suas vicissitudes frente a um espelho. O próprio G. Rosa atenta para esse aspecto: analisa o que poderia ser uma "reles obsessão sugestiva", esse "despropósito de pretender que psiqusmo ou alma se retratassem em espelho" (GR., p. 67).

Porém, ao término do conto, é esse mesmo espelho que vem servir de base para a ainda frágil e incipiente constituição de um sujeito que começa a se enunciar: é uma luz, uma luzinha - "o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância" (GR, p. 67). A primeira reação frente a essa nova luminosidade é de espanto: que luz é essa? Eis a surpresa do sujeito que está em vias de se descobrir outro e, nesse processo, depara-se com porções de si até então desconhecidas, pertencentes ao reino do inconsciente: "Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa?" (GR, p. 67).

O sujeito surpreende-se ao recuperar "parcelas de si" fisgadas numa alienação imaginária. Trata-se de um processo de "desalienação" que se faz concomitantemente com a descoberta - e mais, a reconstrução - de um outro ser, um outro sujeito que brota do espelho. Sujeito que mostra agora, depois de todo esse processo de queda das identificações narcísicas, uma nova e original imagem no espelho - um verdadeiro nascimento:

"Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto-quase delineado, apenas-mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal…" (GR, p. 68).

Podemos ainda observar que esse ‘nascimento abissal’ envia-nos às malhas da infância: o que surge é a imagem de uma criança: "e era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino" (GR, p. 68). Infância onde as identificações primordiais são construídas e começam a ser elaboradas - sustentáculo das vindouras, apoio e matriz das infinitas marcas que iremos colecionando gravadas no corpo, ou na imagem que possamos ter dele.

A temática em questão, tanto num conto como no outro, é a da procura de si, busca de uma identidade - que por momentos foi obliterada ou que pretende ser reconstruída. Nas palavras de G. Rosa: "Desde aí, comecei a procurar-me - ao eu por detrás de mim" (GR, p. 63).

À guisa de observação, notemos que essa "busca do eu" é uma das matrizes da obra de G. Rosa, operando-se mesmo uma reiteração do tema das identificações imaginárias e narcísicas, tal como observa Leila Perrone em sua análise do conto "Nenhum, nenhuma":

"Nesse intrincamento reside a "verdade" do eu, que a rememora e comemora. A experiência que se lê em "Nenhum, nenhuma" é a da difícil constituição do eu para qualquer sujeito, e a da problemática afirmação do eu na linguagem poética. O sujeito, para constituir-se, precisa passar por identificações narcisistas (17)".

O tema abordado nas narrativas aqui analisadas é o dessa "difícil constituição do eu", busca do "eu por detrás de mim" que poderíamos epigrafar como uma das definições de inconsciente. Note-se que é possível estabelecer uma analogia entre esta procura e o percurso analítico - o processo de análise - onde o sujeito busca a sua própria verdade, algo de si mesmo que está oculto, afastado de si.

Há, assim, uma analogia entre as propostas iniciais das duas narrativas, sendo que elas diferem quanto à realização de seus objetivos. Enquanto em Machado de Assis termina-se por adotar a imagem do espelho como a verdade do sujeito, mesmo que alienada; em Guimarães Rosa a busca vai além desse limite, chegando ao questionamento radical do espelho como meio e forma de um conhecimento sobre a natureza do sujeito. Segue-se um percurso de desapropriação das imagens, onde a personagem vai se desfazendo de cada uma de suas identificações anteriores. A busca não é a de uma imagem fabricada pelo espelho, ao contrário, é deixar de ver o que o espelho nos faz ver. Para nesse momento, então, encontrar a "débil cintilação", luz que desenha os novos contornos de um sujeito nascente.

NOTAS

(1)Machado de Assis, "O Espelho", Contos, São Paulo, Ed. Moderna, 1984, pp. 71-81 (doravante abreviado MA); Guimarães Rosa, J., "O Espelho", Primeiras Estórias, Rio de Janeiro, Liv. José Olympio Ed., 1981, pp. 61-68 (doravante abreviado GR).

(2)Lacan, J., "Fonction et champ de la parole et du langage", Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 259.

(3) Lacan, J., idem, p. 258.

(4) Freud, S. "Le moi et le ça" (1923), Essais de psychanalyse, Paris, Payot, 1981.

(5) Lacan, J., "Fonction et champ de la parole et du langage", Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 322 (grifo nosso).

(6) Lacan, J., "Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse", Écrits, Paris, Seuil, 1966, pp. 237-322.

(7) Lacan, J., idem, p. 304.

(8) Lacan, J., "Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je telle qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique", Écrits, Paris, Seuil, 1966, próprio. 93-100.

(9) Lacan, J., idem, p. 97.

(10) Lacan, J., idem, p. 96.

(11) Cf. Freud, S., "Psychologie des foules et analyse du moi" (1921), Essais de psychanalyse, Paris, Payot, 1981.

(12) Lacan, J., L’éthique de la psychanalyse, Le séminaire. Livre VII, Paris, Seuil, 1986, notadamente sessões IV, de 9 de dezembro de 1959 e V, de 16 de dezembro de 1959.

(13) Cf. Freud S., Malaise dans la civilisation (1929), Paris, P.U.F, 1971.

(14) Cf. Freud, S., "L’inquiétante étrangeté" (1919), Essais de psychanalyse appliquée, Paris, Ed. Gallimard, 1982.

(15) Lacan, J., "Le stade du miroir", op. cit., p. 94.

(16) Lacan, J., idem., p. 94

(17) Perrone-Moisés, L., Flores da escrivaninha, Ed. Cia. das Letras, 1990, p. 124.

Maria Lucia Homem
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