TRANSFERÊNCIAS ORIENTAIS

Maria de Fátima Siqueira de Madureira

"A ordem já está implícita dentro do caos da Dificuldade Inicial. Assim também o homem superior deve, nesses momentos iniciais, estruturar e ordenar o vasto caos reinante, da mesma forma que se desembaraçam os fios emaranhados da seda, juntando-os em meadas. Para que cada um encontre o seu lugar entre a infinidade de seres é necessário tanto separar quanto unir."

I CHING, "Dificuldade Inicial", Hexagrama 3, A Imagem

Orientada por uma certeza íntima, um saber tácito sustentado pela clínica psicanalítica de que a natureza da escuta está em relação direta com a natureza da transferência, dediquei uma atenção especial à forma como se desenvolvia o tratamento de um paciente oriental, desde o seu mais tenro início.

Quem vive e trabalha em São Paulo tem a possibilidade de levantar indagações culturais, suscitadas, dentro do consultório, pelo contato com múltiplas e variadas diferenças, já que esta é uma cidade povoada de imigrantes advindos dos mais diversos cantos do mundo. Indagações a respeito da experiência cultural em si, a respeito da própria psicanálise e de sua pertinência — ou não — enquanto um método e uma teoria iminentemente ocidentais.

O consultório de um psicanalista é um desses lugares no qual estas diferenças precisam ser percebidas, consideradas e principalmente acolhidas, sob pena de não acontecer transferência alguma.

Em qualquer tratamento psicanalítico há o peculiar, individual, único, mas há sempre o pano de fundo da universalidade, por onde se pode entrever e explicitar uma certa regularidade. É notável, carregado de uma harmonia única, constatar mais uma vez que a peculiaridade da linguagem de determinada cultura está sempre presente na transferência.

Mas, para que estas peculiaridades possam surgir é preciso que o analista promova, em si mesmo, a abertura para uma transferência que nem sempre acontece no verbal; que muitas vezes ocorre de forma multidimensional. É preciso que o analista esteja disposto a ser "afetado" pelo analisando.

No tratamento que descreverei a seguir, a sutileza da cultura oriental pôde mostrar-se da forma como é, pictórica. Nesse caso, aferrar-se à escuta de um discurso verbal impossibilitaria qualquer transferência, qualquer movimento em direção à busca de um sentido. Houve, desde o início, uma comunicação inconsciente que transcendeu o verbal e que se fez presente nas sucessivas sessões de forma quase "ideogramática". Se, porventura, todas as manobras de tempo e espaço (faltas, atrasos, etc) feitas pela paciente tivessem sido interpretadas e entendidas como resistência, a busca de sentido teria sido interrompida. Pois, antes de representarem resistência ao processo psicanalítico, eram expressão viva da forma como aquela pessoa estava lidando com o tempo e o espaço subjetivos; eram a expressão do seu self naquele momento. A consciência transcende o verbal.

A busca de singularidade, o trabalho dispendioso e sofrido de constituição da própria subjetividade, é campo de angústia para qualquer sujeito, quer pertença a uma sociedade individualista como a nossa, quer pertença a uma sociedade mítica. O campo da singularidade é sempre campo de angústia, e depende, invariavelmente, da elaboração e criatividade de cada um. O que muda é a forma como esta angústia se expressa. Que, além do mais, difere de cultura para cultura.

Há um exercício de Tai Chi (balanço) que é feito da seguinte maneira: a pessoa em pé, com os pés paralelos, levanta os dois braços em sentido diagonal ao corpo (mãos no nível da cabeça) e depois movimenta-os para o outro lado do corpo (para baixo), sucessivas vezes. Antes de realizá-lo, o mestre ensina que este exercício favorece o bom funcionamento intestinal e renal. Depois de aprendê-lo, sonhei com a imagem de uma pessoa que coletava líquido de um lado do corpo, na altura da cabeça, e o despejava no chão, do outro lado: o mesmo movimento do exercício de Tai Chi. Compreendi instantaneamente qual era sua eficácia simbólica: favorecer a eliminação de metabólitos dos rins e dos intestinos, jogar por terra "as águas" a serem eliminadas.

A cultura oriental está repleta de alegorias como esta. A própria escrita, muito diferente da ocidental, conserva intacta a alegoria pictórica: um ideograma representa uma imagem, não uma palavra.

Sendo esta a principal peculiaridade da cultura oriental, a escuta também deve abrir-se para uma comunicação pictórica, presente não apenas nos sonhos, mas em todas as horas e movimentos da vigilia. É por onde (e como) o simbólico será prioritariamente comunicado. É por onde a escuta psicanalítica deve prioritariamente transitar.

Numa das sessões, minha escuta aconteceu corporalmente. Depois de algum tempo pude perceber que também este era um conteúdo ideogramático, como o exercício de Tai Chi.

Para que o processo psicanalítico de um japonês possa acontecer, é necessário que o psicanalista saiba japonês. Não necessariamente que fale o idioma, mas que tenha a abertura para ser "impressionado", como numa estamparia, através da escuta do não verbal, mais próxima do processo primário, até mesmo do originário. Isso não necessariamente faz do paciente um psicótico: esta é outra diferença cultural que temos com eles. No Oriente, o processo primário participa do simbólico, partilha com o secundário a ordenação da realidade subjetiva, começando pela linguagem escrita.

Uma certa disposição "poliglota" torna-se imprescindivel, no sentido existencial do termo; toda e qualquer forma de expressão é fruto no cesto da colheita.

O inconsciente acontece. Fala, dança, alude, canta, sonha, sugere, insinua-se. Poeticamente. E o que antes era pura incógnita, mostra-se, então, coerência.

* * *

O tratamento de S. já havia começado há algum tempo quando ocorreu-me um sonho:

Eu estou no fundo do quintal da casa onde morei quando tinha oito ou nove anos. Quintal de cidade de interior, terra, mato, mamoeiro, coarador de zinco num canto, varal. Tatu-bola, pedrisco, pardais, tanque, cheiro de sabão em pedra, sol de estalar.

No sonho, o fundo do quintal dá para um rio, porto para os que chegam de vez em quando, água que se abre para o mundo.

De repente, um barco. Uma jovem japonesa chega, muito aflita, fugindo com o seu bebê.Seguro o barco junto ao porto improvisado, amarro as cordas por ali e pego o bebê, que ela me entrega enquanto desembarca olhando assustada para trás. Com a criancinha no colo, digo:

— Que lindo o seu bebê!

A japonesa, já ao meu lado, olha-me com ar choroso e pega o bebê:

— Não diga isso, eu não posso suportar. Sou uma casca ôca, não mereço ter esse bebê — e sai correndo com o menino. Entra numa porta, que talvez fosse a de um banheiro. Sinto uma angústia difusa e olho para alguém ao meu lado:

— Ela vai se matar ou vai matar esse bebê. Eu não devia tê-la deixado ir embora. Vou atrás dela e entro no banheiro. Alguém já entrou antes de mim e está tentando salvar o bebê desacordado, que tem um grande caco de vidro enfiado no pescoço, na região da tireóide. Começo a chorar. Acordo.

* * *

S. (nome oriental) telefonou-me um dia, no consultório. Queria marcar uma entrevista. Falava rápido. Peço que me diga quais os horários que dispõe, para que possamos marcar uma hora; mostra-se um pouco atrapalhada, gagueja, tosse, mas finalmente dá três opções. Proponho a entrevista em um dos horários.

Na véspera da data marcada, S. volta a me telefonar desmarcando o encontro.

Algumas semanas depois, outro telefonema seu: queria marcar nova entrevista. Peço que me diga quais os horários que dispõe.

Dia e hora re-marcados, S. aparece — atrasada — na porta de meu consultório. Ar excitado, curioso, movimentando os olhos oblíquos com rapidez, quem sabe para eu não perceber que quer conhecer tudo ao mesmo tempo, saber o que existe por ali, que lugar é aquele, quem sou eu, afinal.

Entra com movimentos ágeis. Hesita durante frações de segundo, quase imperceptível; hesitação tão tênue que quase não se mostra. Ao entrar na sala detém-se no meio dos passos, percorre outra vez o espaço da sala com o olhar e escolhe a poltrona à minha frente.

Senta-se delicadamente experimentando o assento, toda a atenção voltada para a atividade — disfarçada—, que num movimento sutil toca com os dedos o estofado, pesquisando texturas. Levanta.

Anda até o divã, faz que vai sentar, olha para o assento, pára, ajeita a saia. Finalmente se senta.

Olha para mim. Tudo muito rápido, miúdo, movimentos precisos que escondem milímetros de indecisão. Curiosidade. Um teste.

Quando começa a falar, a primeira coisa que faz é reclamar do trânsito, do próprio atraso. Aproveita para xingar um pouco o seu emprego, os colegas, o barulho da cidade, qualquer coisa que sirva para preencher o tempo e desviar minha atenção, enquanto observa um pouco mais.

Ainda timidamente vai aos poucos expressando sua contrariedade — sorrindo ... — por eu ter sido tão desagradável com ela — !!! —, impondo um horário absurdo daqueles, que a obrigou a sair mais cedo do trabalho, interromper atividades importantes, pegar um trânsito caótico, etc, etc,etc.

Quando pára de falar olha para mim esperando resposta, ainda com um sorriso disfarçado.

Falo com ela pela primeira vez em nosso encontro e digo que sinto muito tanto transtorno, mas na verdade a entrevista havia sido marcada em um dos horários disponíveis que ela mesma havia me dado, quando conversamos por telefone.

Desorganização. Minha intervenção mostra-lhe o óbvio, mas mais do que isso. Mostra-lhe ela mesma.

A postura defendida desmonta e S. resolve recostar. Ainda muito tensa, muda a bolsa de lado, ajeita o vestido, pisca, tosse, baixa e levanta o olhar. Depois, de novo, olha-me nos olhos, séria. Era perceptível que sustentar a escolha de ter vindo era pesado demais para ela. Por isso, tentava depositar em mim a responsabilidade pela escolha do horário. Pela escolha da análise, talvez.

Parecia um bicho assustado, mas que de repente percebe que pode desmontar a guarda. O predador havia se afastado momentaneamente.

A sessão transcorre repleta de meias-frases, gestos de aparente apaziguamento, enquanto S. tenta, ao mesmo tempo, examinar o ambiente, expurgar uma antiga e contida irritação e uma curiosidade evidente.

Durante muitos meses o mesmo padrão se manteve: mudou de horários como havia mudado de cadeiras, olhou-me ora com curiosidade, ora com hesitação, aproximou-se e afastou-se de uma possível análise com igual empenho, testou minha resistência à uma irritação sistemática, desviou o rumo de qualquer coisa que pudesse se parecer, de longe, com uma conversa. Até aquele momento, eu não sabia o que S. tinha vindo fazer ali, por que havia procurado a psicanálise.

Às vezes parecia que estava preparando um esconderijo; em sua fala, gestos, imagens suscitadas era como se fosse trazendo um objeto por dia, timidamente. Ora uma almofada, um jarro de flor, estilhaços, um livro, uma espada de samurai, cartas, uma colcha antiga, fragmentos de um sonho... preparando — quem sabe? — um abrigo anti-aéreo, o ambiente adequado para uma denúncia, o clima certo para uma confissão, um ninho?

As sessões prosseguiam. Faltas. Atrasos. Dificuldades no pagamento. Transferência de horários. E eu com ela. Levanta acampamento daqui, assenta acampamento ali, "parece que ouvi um rugido por ali, melhor montar as barracas do outro lado. Não, lá não, o inimigo vem por ali ..." E eu junto. Nada muito explícito verbalmente, conjuntos de frases, lembranças, relatos distantes de guerra, gestos, um soldado kamikaze, as margens de um rio, olhares, água parada, sensações.

Até este momento, era muito importante para ela que eu fosse capaz de "ir guardando" as suas coisas. Que não me apavorasse com as suas faltas. Que não as considerasse descaso, abandono, desinteresse. Não eram. Faziam parte de seu faz de conta, de uma tentativa de elaboração que se mostrava como um vai-e-vem.

Seus movimentos de hesitação tentavam se organizar, me conhecer, pensar. Eram a expressão de seu ser naquele momento.

Esta possibilidade fez toda a diferença para ela. Pela primeira vez S. podia viver uma indecisão impalpável, uma certa soma indefinível de afetos, preparando-se para o momento em que se sentisse pronta para eles.

Falava muito pouco de sua vida íntima, família, filhos; falava com o corpo, com o olhar, com as mirabolescas alterações no enquadre. Trazia sempre muitas notícias do ambiente de trabalho, a disputa entre colegas, jogos de hierarquia, competições, sua luta.

Desde o primeiro instante, desde aquela vez em que desmarcou a entrevista inicial, fui capaz de perceber sua brincadeira e participar dela. Graças a isso, S. foi conseguindo, aos poucos, se reconhecer. Se nesses instantes iniciais tivesse escolhido interpretar suas faltas, atrasos e falas desconexas como resistências, provavelmente S. teria se assustado e ido embora. Pois não eram. Entendendo isto, eu ía recolhendo tudo: peças do nosso jogo de montar, ía guardando-os até que ela pudesse fazê-lo por si mesma.

Mas então tive, de fato, de mudar de consultório. Precisei transferir, por inúmeras razões práticas, meu próprio acampamento. Um mês antes avisei S., assim como aos outros pacientes, e forneci o novo endereço, telefone, etc.

S., ocupada como estava com a montagem de seu abrigo, pareceu não registrar.

Consultório novo, S. chega muito atrasada e abertamente agressiva. Capa, guarda-chuva, bolsa, pacotes, chaves, respingos. Ao entrar, briga consigo mesma acotovelando-se na porta, reclama do atraso, do meu silêncio, da "indiferença seca por trás de onde você sempre se esconde", como me disse. Para continuar agredindo passou, então, a um tom magnânimo e levemente cínico, dizendo que entendia que "aquele era o meu jeito e que isso ninguém pode mudar". Sua raiva aumentando visivelmente.

A mudança de consultório havia sido demais para ela. Até ali, eu estava entendendo que S tentava encontrar um lugar, o seu lugar, qualquer que fosse, mas que fosse seu. Durante meses havia desfilado para mim todas as suas tentativas de construir um espaço que pudesse fazer algum sentido, sem que conseguisse, nem mesmo, falar a respeito. Ao mudar de consultório, era como se eu estivesse expondo a ela minha própria autonomia, a capacidade de ir e vir, de constituir lugares, de apropriar-me deles. Isso a deixou profundamente invejosa.

"Entende-se, geralmente, que o princípio de realidade envolve o indivíduo em raiva e destruição reativa, mas minha tese é a de que a destruição desempenha um papel na criação da realidade, colocando o objeto fora do eu (self).

Para usar um objeto, o sujeito precisa ter desenvolvido a capacidade de usar objetos. Isso faz parte da mudança para o princípio de realidade. Não se pode dizer que essa capacidade seja inata; tampouco seu desenvolvimento num indivíduo pode ser tomado como certo. O desenvolvimento da capacidade de usar um objeto constitui outro exemplo do processo de amadurecimento, como algo que depende de um meio ambiente propício." (D. W. Winnicott, "O Brincar e a Realidade", pp. 125)

Nunca se deitou no divã. Quase nunca abandonou o estado de vigília total, "sempre alerta, escoteiro". Durante meses e meses, como uma andarilha — gata arisca — mudou de cadeira, horário, sessões, desviou o olhar, insinuou rosnados surdos, sorrindo em seguida, para apaziguar. Perambulava por algum lugar do Pacífico. Expressava seu viver nômade com todos os gestos, na forma como falava, como se portava, no que falava.

Raramente facilitava as coisas concatenando idéias, fazendo associações, dando de mão beijada (ou ao menos insinuando), soluções para as suas charadas. Elementos desconexos juntos faziam parte da arrumação do abrigo antiaéreo. Quando muito dava-me uns cacos para colar, para me distrair (ou agradar?), frases inteiras isoladas, vislumbres fugidios de imagens que ficavam boiando no ambiente, atmosfera lunar. Na última sessão desse período, sua inveja por minha autonomia (Liberdade?), tornou-se evidente, assim como a indignação por se sentir acintosamente exposta.

Tentei conversar sobre isso com ela.

S. respondeu com uma frase desconcertante: disse que uma das primeiras regras da boa educação japonesa é não expôr emoções. O que eu estava tentando fazer, portanto (além de ser mal-educada), era subverter a primeira regra de boa-educação japonesa. Em seguida, disse que havia resolvido parar a análise por uns tempos e foi-se embora.

Aos poucos compreendi o que estava querendo dizer: desde o início ela havia se mostrado muito dedicada em montar seu abrigo, ocupou-se com todo o empenho na construção de algo que não sabíamos bem o que era. E eu, sem entender bem as regras da brincadeira acabei fazendo uma interpretação, interrompendo ruidosamente sua construção. A sabotagem da inveja já havia brotado nela por minha mudança de consultório.

S. não conseguiu suportar o que já vinha sendo excessivo para ela: o desejo de elaborar sua própria singularidade mesclado com uma culpa cortante e a inveja que sentia ao ver alguém que "ousava" sustentar a própria liberdade.

Entrelaçada a tudo isso, fios de um mesmo colar — tireóide, colar? —, sua relação com a mãe, tradicional senhora japonesa, educação refinada, sempre presente em suas queixas e irritações.

Foi-se embora.

Durante três anos permaneceu à distância, em silêncio. Escondida estrategicamente em algum canto, em fuga.

" Entre o relacionamento e o uso existe a colocação, pelo sujeito, do objeto fora da área de seu controle onipotente, isto é, a percepção, pelo sujeito, do objeto como fenômeno externo, não como entidade projetiva; na verdade, o reconhecimento do objeto como entidade por seu próprio direito. Essa mudança (do relacionamento para o uso) significa que o sujeito destrói o objeto. (...) Depois de ‘o sujeito relaciona-se com o objeto’, temos ‘o sujeito destrói o objeto’ (quando se torna externo) e, então, podemos ter ‘o objeto sobrevive à destruição pelo sujeito’. (...) Na prática psicanalítica, as modificações positivas que se efetuam nessa área podem ser profundas. Tais modificações não dependem do trabalho interpretativo, mas da sobrevivência do analista aos ataques, que envolve e inclui a idéia da ausência de uma mudança de qualidade para a retaliação. (...) O aspecto essencial é a sobrevivência do analista e a incolumidade da técnica psicanalítica." (D. W. Winnicott. "O Brincar e a Realidade", pp. 128).

Mas um dia apareceu. Ao telefone, voltou a se apresentar como uma desconhecida: "não sei se você vai se lembrar de mim ...". Queria marcar uma entrevista.

A mãe havia morrido de câncer há alguns meses, depois de uma longa agonia.

S. tinha a voz espontânea, alegre. Tinha podido exercer seu ataque de raiva inconsciente abandonando-me, "acabando comigo".

Agora voltava, fortalecida ao reconhecer que eu subsistira. E ao voltar, reconhecendo que eu (nosso vínculo?) havia resistido ilesa a seu ataque inconsciente, começou uma nova fase, mais declarada. Quando lhe disse isso, em tom de brincadeira, respondeu que se sentia exatamente assim: era como se a mãe houvesse levado com ela o seu mau-humor ...

Mas a construção do esconderijo continuou. Olhares furtivos, gestos de escape, choro disfarçado, frestas. Com a diferença de que, agora, alguma coisa um pouco mais fecunda, livre de hipotecas, podia aparecer: contava histórias de infância, almoços e tardes de domingo no Japão, a família paterna muito rígida, a materna amorosa, mãe, pai, marido, filhos, a "bachan" querida, a chegada ao Brasil ainda criança, amoreiras carregadas de frutos, tentativas de elaborar uma narrativa. O vermelho da seda de um quimono flutuando entre as palavras, um certo desconforto no choque de temperos, a cebola que não combina com o shoiu, o agridoce do leite de arroz da avó-bachan substituindo o leite de peito materno, seu bairro buscado que se chama Liberdade ...

Liberdade. O que S. urde, tece e entretece é sua liberdade — singularidade.

Ainda faltas, atrasos, rombos no pagamento, ainda trânsitos caóticos através dos dias e horários das semanas. Algo sendo construído em meio às inevitáveis intempéries pulsionais. As viagens ao Japão a cada três anos, os irmãos que ainda moram no interior, herança agrícola, as lembranças da mãe, voz de lixa, escrita polida, educação refinada — uma lady, uma gata?

Segue escondendo as patas e desviando o olhar. Mas já se acocora e, às vezes, é como se quisesse ronronar.

Algo não deve ser dito, por isso, S. fala.

"... o próprio modelo do universo da comunicação é também o meio de escapar dele. Uma palavra pode ser ao mesmo tempo uma mensagem trocada e a negação de toda mensagem, ela pode se pronunciar como signo e como o contrário de um signo. O canto dos guaiaqui nos remete então a uma natureza dupla e essencial da linguagem que se manifesta ora em sua função aberta de comunicação, ora em sua função fechada de constituição de um Eu: essa capacidade da linguagem de exercer funções inversas repousa sobre a possibilidade de seu desdobramento em signo e valor". Pierre Clastres, "O Arco e o Cesto" in "A Sociedade contra o Estado", cap.5, p.87).

E eis que um dia, numa determinada sessão, em meio a suas frases de disfarce, eu sinto meu próprio corpo truncado: a cabeça para lá, o corpo para cá, pernas de um lado, um ombro do outro, coisas fora do lugar, enquanto S. desfia seus ikebanas com brotos de pessegueiro, cerejeiras em flor, fragmentos de lembrança, estranhamento, incógnita, alfabetização à brasileira.

A sensação de desarranjo corporal aconteceu no momento em que fui capaz de escutar S. com o corpo: sua realidade truncada estava ali — e no Japão — excedendo palavras, conservando a condensação, alusão em forma bruta. Ideograma corporal de sua falta de pertencimento cultural, desacomodação existencial.

S. falava trincas étnicas em algum lugar do Pacífico, desalojamento de si mesma.

Eu, que já havia sonhado por ela, estava agora decifrando sua trinca étnica, traduzindo em sensação corporal inteligente uma condição existencial verbalmente muda, mas ainda assim, fortemente expressiva.

Um repertório comum começou a ser constituído a partir do momento em que pude compreender sua mensagem em um nível tão perceptivo. Uma área de brinquedo comunitária surgiu depois dessa conversa sui generis. Fui aos poucos aprendendo a não ser rude, interpretar pouco, "falar menos para brincar mais", não expondo em demasia (à luz racionalista) a natureza delicada de seus objetos. Não chamar seu ikebana de vaso de flor. Não truncar nossa brincadeira nomeando um olhar fugidio de raiva. Mais atenção a indefinições que queriam brotar.

Nessa época tive o sonho com a japonesa e o bebê.

Era por onde eu estava podendo compreender o que S. trazia: sua dificuldade em viver a intensidade das próprias pulsões, as tentativas de constituir uma singularidade. Como se sua subjetividade fosse insuficiente para acolher o bebê vitalidade, deixando-a casca ôca, desesperada e em fuga. Uma dupla em sofrimento: mãe casca ôca — bebê quase morto; duas faces da mesma moeda.

A situação acirrava-se ainda mais com uma culpa renitente diante do débito a uma cultura que lhe exigia adesão total, obrigações ancestrais a um coletivo ambivalente, continente/esmagador.

Havia um desalojamento existencial que estava sendo presentificado na transferência: a psicanálise era o lugar estrangeiro à cultura tradicional japonesa. Estar ali significava, para ela, experimentar a criação de algo que dizia respeito à sua singularidade. Mas que, ao mesmo tempo, traía as promessas de lealdade a uma cultura que privilegia o coletivo, que a tentava e ameaçava concomitantemente, os braços de sua mãe.

"A confiança do bebê na fidedignidade da mãe e, portanto, na de outras pessoas e coisas, torna possível uma separação do não-eu a partir do eu. Ao mesmo tempo, contudo, pode-se dizer que a separação é evitada pelo preenchimento do espaço potencial com o brincar criativo, com o uso de símbolos e com tudo o que acaba por se somar a uma vida cultural. Existem em muitos um fracasso de confiança que restringe a capacidade lúdica, devido às limitações do espaço potencial; do mesmo modo, existe para muitos pobreza de brincadeiras e de vida cultural, porque, embora encontrem lugar para a erudição, houve um relativo fracasso por parte daqueles que, fazendo parte do mundo da criança, falharam em fornecer a ela elementos culturais nas fases apropriadas do desenvolvimento da personalidade". (D. Winnicott, "O Brincar e a Realidade, pp. 151-152).

Na melhor das hipóteses, S. passeava entre o coletivo e o individual; ora permitindo-se a busca de sentido — associações, sonhos, lembranças —, ora prestando contas a uma dívida antiga, cunhada por regras advindas de tempos arcaicos, que ela vivia como um obstáculo à singularização — faltas, atrasos, raivas, rombos no pagamento.

Não entrava nem saia, não fixava acampamento. Estava partida na chegada.

Nessa época, encontrei, por sugestão preciosa, um livro chamado "O Pensamento Japonês", do filósofo Hitoshi Oshima.

O mais surpreendente é que Oshima, com toda a simplicidade, trazia à tona uma obviedade a respeito da cultura japonesa, que na maioria das vezes fica perdida entre coisas semi-esquecidas: "o japonês é um povo mítico".

Diante de tão feliz lembrança, uma nova vertente de entendimento surgiu para mim. Mergulhei ainda mais na tentativa de reencontro de minha japonesa, arredia representante de minha própria dificuldade em viver a vitalidade e a espontaneidade pulsionais.

Iniciei uma conversa na leitura de Lévi-Strauss e Pierre Clastres. E, ao aproximar-me da antropologia, entrei numa brincadeira na qual todos os meus animais passaram a desfilar soltos, em sonhos. Tentando elaborar uma questão existencial que era a de S., mas também a minha, passei a buscar o estrangeiro em mim — as feras — até então domesticadas.

A visão ocidental tende a considerar as diferenças culturais como modalidades superficiais de um mesmo modo de ser, numa suposição etnocentrista, reducionista e empobrecedora.

Num povo mítico, a coesão comunitária é um aspecto muito presente na vida em sociedade: obter alimento, distribuir comida, estabelecer trocas, casar, realizar tarefas, ocupar posições hierárquicas, ter uma identidade sexual, fazem parte de uma estrutura na qual cada criança que nasce herda uma atribuição; tal coesão parece absolutamente estranha aos olhos de um ocidental, filho de uma cultura individualista.

Mas o mais importante é que esta estrutura não é aleatória, não depende do desejo individual, conserva uma relação interna e analógica com todos os aspectos da vida mítica, não restando quase nenhum aspecto externo a ela.

Ao individual, particular, peculiar resta ocupar algum espaço fronteiriço, nas bordas: alguma atividade que garanta ao indivíduo a possibilidade de elaborar sua própria singularidade, independente do que a coesão social de seu povo lhe pede.

Existem diferenças profundas entre a cultura mítica e a cultura individualista. S. vivia esse dilema.

Vinda de um povo mítico, trazia com ela, na passagem para o Ocidente, uma trinca quase fratura em busca de cicatrização. Questão existencial fundante, era a qual seu sofrimento se referia. A vinda para o Brasil havia acentuado uma questão profunda, que ainda não havia conseguido elaborar.

"O cultivo ocidental dos processos secundários, em geral às custas dos processos primários, contribui (quase inevitavelmente) para um senso

de desorientação entre os ocidentais que se confrontam com a cultura indiana pela primeira vez. Esta confusão quase sempre resulta em cobrança e em críticas negativas — explícitas ou implícitas — à forma como os indianos vivenciam o mundo, ao invés de levar ao questionamento de uma hipótese cultural fundamental. A diferença entre a ênfase dada pelo Ocidente e pela cultura indiana a um dos dois modelos de funcionamento (processo primário e secundário) reflete, assim, duas posturas diametralmente opostas em relação ao mundo interno e externo." (Sudhir Kakar, "The Inner World", pp. 106)

A trinca estava entre ela e sua mãe, entre ela e a terra mãe (cultura), entre ela e o Brasil. Eram estes os fios entretecidos de um mesmo colar — os braços de sua mãe — que ao mesmo tempo cingem e matam (o ataque à tireóide).

Durante todo o tempo, nas hesitações dos inícios de sessão, nos olhares difusos, frases soltas, desvios, falou esta desacomodação com toda a eloqüência do não dito. Utilizou expressões sistemáticas de uma agressividade inconsciente que buscava destruir o objeto para poder torná-lo externo.

S. buscava um lugar de ser, a possibilidade de ação no mundo sem enlouquecimento, a conquista de uma unicidade trincada por um implante violento numa outra realidade cultural.

Veio para o Brasil na época da alfabetização, mas a travessia continua ainda hoje.

Ao despedir-se de sua própria cultura em busca de outra, S. e sua família expressavam um ressentimento ancestral diante de um conflito insolúvel: pai e mãe haviam saido de um Japão pós-guerra indo para o outro lado do mundo, ansiando pelo reconhecimento da própria singularidade, buscando um lugar para elaborar algo que, segundo eles, havia sido negado pela própria cultura. Lá, viveram uma problemática familiar hostil, sentiram-se vítimas de regras familiares sustentadas e aprovadas pelos dogmas da cultura tradicional. A briga era com a família, com a mãe, com a cultura. S trazia o ódio com ela sem saber o que fazer; atacava a analista e sua própria análise na tentativa de criar um espaço próprio onde pudesse, finalmente, alojar-se em si mesma.

S. já não pertencia ao Japão nem o Japão a ela. A fenda havia se formado antes mesmo que saísse de lá. Vivia em trânsito, dentro e fora de sua própria subjetividade, entre acampamentos e desalojamentos, numa border-line enlouquecedora que não lhe permitia ir nem vir, existir.

"É útil pensar numa terceira área de viver humano, uma área que não se encontra dentro do indivíduo, nem fora, no mundo da realidade compartilhada. Pode-se pensar esse viver intermediário como ocupando um espaço potencial, a negar a idéia de espaço e separação entre o bebê e a mãe, e todos os desenvolvimentos derivados desse fenômeno. Esse espaço potencial é extremamente variável de indivíduo para indivíduo e seu fundamento está na confiança que a mãe inspira ao bebê, confiança experimentada por um período suficientemente longo, no estádio decisivo da separação entre o não-eu e o eu, quando o estabelecimento de um eu (self) autônomo se encontra no estádio inicial.(...) Empreguei o termo "experiência cultural" como uma ampliação da idéia dos fenômenos transicionais e da brincadeira, sem estar certo de poder definir a palavra ‘cultura’. A ênfase, na verdade, recai na experiência. (...) O lugar em que a experiência cultural se localiza está no espaço potencial existente entre o indivíduo e o meio ambiente (originalmente o objeto). O mesmo se pode dizer do brincar." (D. Winnicott, "O Brincar e a Realidade", pp. 128, 133, 134.)

Num tratamento com essas peculiaridades, é essencial pensarmos na natureza do fenômeno cultural, no espaço e lugar no qual ele acontece, no sentido que o pertencimento cultural tem para a subjetividade.

Compreender um paciente como a mãe compreende o seu bebê não significa pegá-lo no colo, mas usar todo o aparato sensorial, sensível e inteligente de que se dispõe, como um tradutor-intérprete. Significa considerar as dimensões espaciais, temporais e perceptivas na tentativa de perceber seu self.

A transferência é multidimensional. Este é o grau de implicação do analista, o mesmo de uma mãe que busca compreender o seu bebê.

O Meu Selvagem

Nessa época já havia começado a ler Lévi-Strauss, "O Pensamento Selvagem". Perplexa, pus-me a pensar na coragem que um psicanalista tem de ter para compreender as ferocidades pulsionais.

Uma noite sonhei:

Uma mulher sentada no meio de uma sala iluminada. Com a mão esquerda segurava um gatinho, que mordiscava seu rosto. Trabalhava no circo, era domadora de leões e tigres. Entre curiosa e surpresa, pergunto a ela qual dos dois animais é o mais feroz. A mulher me responde que não é uma questão de ferocidade; que basta saber lidar com eles. Volto a perguntar:

"— Mas você dá as costas a eles?"

"—Você só precisa saber lidar com eles" , ela me responde.

Acordo.

* * *

Nos dias subseqüentes, prosseguindo no texto de Lévi-Strauss sobre o pensamento selvagem, a surpresa feliz que já havia sido antecipada no sonho: além do povo mítico, algumas pessoas de nossa própria cultura guardam a mesma relação com a natureza e com os animais: os funcionários de circo e os tratadores de zoológico.

"As condições práticas desse conhecimento concreto, seus meios, métodos, os valores afetivos que o impregnam, tudo isso se encontra e pode ser observado bem perto de nós, entre aqueles nossos contemporâneos cujos gostos e profissões os colocam, face aos animais, em uma situação que, mutatis mutandis, está tão próxima quanto a nossa civilização pode tolerar da que foi habitual a todos os povos caçadores, a saber, as pessoas do circo e os empregados dos jardins zoológicos."

(Claude Lévi-Strauss, "O Pensamento Selvagem", pp. 54)

* * *

Uma lembrança: há alguns anos passei férias na fazenda. O peão usava as horas finais do dia para caçar jacaré. À tardinha, céu avermelhado, o peão com sua espingarda espreitando o bicho na margem oposta. Esperava escurecer. Já noite, de longe, mirava o espaço entre os olhos — "Piedade para quê? aquilo é bicho ruim!"—, tiro certeiro e uma rabanada espalhando a água parada da represa. O peão pula dentro d´água, pés descalços, calças arregaçadas:

"—Olha, peão, que o bicho te pega!"

"— Pega, não!"

Minutos depois, sai da água jacaré e peão, um na mão do outro. Bicho ruim com bala na testa e o peão pulando para fora da água, olhando para o seu jantar.

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Sua mulher, de manhãzinha, leva as crianças para se lavarem na represa. Entra com cuidado, chama as crianças mais para perto, entre atenta e tranqüila se põe a conversar. Eu a convido para nadar, mas ela me diz que é melhor não, está de "regras", prefere "não irritar as piranhas".

Entre boquiaberta e descrédula, peço mais detalhe das condições daquela água na qual estive prestes a entrar. A moça confirma o que já havia dito: aquilo está "coalhado" de piranha, "só que elas não vem aqui não, estão para lá ..." e percorre a superfície da água com o olhar, perscrutando o mistério.

Medo? Não. O olhar sugere cautela, convivência pacífica, parcimonia com quem pode se "irritar" com sangue.

A familiaridade de quem não perde o contato com as feras.

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Outro sonho com bichos:

Uma estrebaria, cavalos, um peão. O homem pega um monte de feno com o tridente, junta em um canto, traz a água no balde. Em meio a seus movimentos, correndo por ali, crianças brincam.

De repente, um urso passa, andando pesado sobre as patas traseiras.

"—Peão, — eu lhe digo —, aquilo é um urso?"

Riso de zombaria:

"—É sim, senhora!"

"— Mas ele pode atacar as crianças ..."

"— Pega não ...", mais risadas.

Tigre, leão, jacaré, urso.

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Ainda me acho na atmosfera do consultório, entre as sedas vermelhas e farfalhantes dos quimonos de S.

Há um tempo, a bicharada das pulsões resolveu participar.

Um dia, S. traz o seguinte sonho:

"Sonhei que o meu cachorro morreu. Eu estava no velório dele, triste, conversando com as pessoas, quando percebo que um pedaço de sua pata havia ficado grudada na minha mão. Tento tirar, mas não sai. Fico aflita. Então vejo o cachorrinho se levantar e vir buscar o pedaço dele que tinha

ficado grudado em mim."

Neste ponto S. já podia sonhar seus próprios sonhos, enfrentar seus próprios bichos, compreendê-los também. Não precisava mais que eu sonhasse por ela. Começava a criar as imagens de uma experiência bipartida, mão e pata ainda grudadas, tentativas desajeitadas de separar uma fusão mãe-cultura, mãe-Japão. Já sonhava e articulava enredos. Ordenava os seus motivos separando e unindo, organizando os seus brinquedos.

Mais pesquisa em Lévi-Strauss, mais Winnicott, mais associações. Meu consultório parecendo a arca de Noé, em minha atenção flutuante pairavam bichos, entre espadas de samurais, um cachorrinho, flores de ikebana e leites de arroz.

Página de rosto da Revista Pulsional, as palavras de Manoel Berlinck:

" Ando cada vez mais convencido de que existe um paralelismo estrutural, já revelado por Lévi-Strauss, entre o psicanalista e o xamã. Depois que comecei a crer que a transferência e a chamada contratransferência são fenômenos constitutivos e determinantes da prática psicanalítica e que elas se dão no interior do corpo do analista e do paciente, tenho a convicção que faço parte dessa categoria de pseudo sabidos, um tanto charlatões, que dizem ter poderes de cura e que acabam acreditando nisso que dizem. Mas ainda e sempre, mesmo estando do lado dos xamãs, essa atitude distanciada da realidade que é cultivada pelos antropólogos não me abandona. E acredito que isso é muito útil na clínica que pratico e que chamo de psicanalítica."

Instigados pelos movimentos fugidios de S. meus bichos pulsões festejam, orientam meu trabalho com uma infinidade de sonhos que aludem sempre ao espaço de brincadeira durante a sessão.

Um brincar que começou tímido, hesitante de parte a parte, mas que hoje já se arvora a sair da toca, corre pela floresta, ousa até mesmo espreitar alguns seres mais peçonhentos, para aprender como é lidar com veneno.

A "casca ôca" do sonho inicial, árvore sem alma, esvaziada de si, fratura étnica que S. ainda traz consigo, começa a se perceber recheada de calor, por vezes aterrorizantes. Mas agora ela já consegue, às vezes, envolver-se nele. Quando me dispus a brincar de selvagem pude reencontrar em mim, e ela nela, uma selva de pulsões vivas que até então estavam presas em letras (ideogramas?), separadas por anos-luz culturais, incomunicáveis, a não ser via um espaço potencial, campo fecundo entre nós. Mas que puderam criar vida e verter imagens num mundo rico e barulhento como a arca de Noé.

S. tem, por vezes, se protegido do dilúvio das angústias impensáveis e da falta de sentido das experiências limítrofes.

A criança desmaiada com o estilhaço na garganta, referência a meu suposto hipotireoidismo, vai, assim, podendo re-viver, sair do esconderijo.

Como um pião que quanto mais gira mais parado parece estar, a bicharada em franca expressão põe o processo longe de terminar e enquanto dura, delicio-me descobrindo um denominador comum entre a psicanálise e a sociedade mítica, entre os meus bichos e as espadas de samurai que S. traz, tão disfarçadamente, para o nosso campo de convivência.

Entre xamãnismo e psicanálise, temos tentado dar nome aos bois.

Juntando e separando os fios emaranhados de seda, para que cada um encontre seu lugar, entre a infinidade de seres.

Setembro de 1999

Maria de Fátima Siqueira de Madureira
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REFERÊNCIAS:

WILHELM, R. I Ching tradução para o inglês por Cary F. Baynes, Londres: Routledge & Kegan Paul, 1968

OSHIMA. Hitoshi. O Pensamento Japonês. São Paulo: Editora Escuta, 1992

FREUD. Sigmund. Moisés e o Monoteísmo. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980

KAKAR. Sudhir. The Inner World. Oxford: Oxford University Press, 1997

DOI. Takeo. The Anatomy of Dependence. Tóquio: Kodansha International Ltda, 1977

WINNICOTT. D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977

WINNICOTT. D. W. Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990

JOFFE. W. G. (org.) O Que é a Psicanálise? Rio de Janeiro: Imago Editora, 1972

WEIL. Simone. The Need for Roots. Nova York: Routledge, 1997

CAMPOS. Haroldo. (org.) Ideograma. São Paulo: Editora Cultrix, 1977

ROLAND. Alan. Cultural Pluralism and Psychoanalysis. Nova York: Routledge, 1996.

ROLAND. Alan. In Search of Self in India and Japan. Princeton: Princeton University Press, 1989

LÉVI-STRAUSS. Claude. O Pensamento Selvagem. Campinas, SP: Papirus Editora, 1997

CLASTRES. Pierre. A Sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1974


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