A EXPERIÊNCIA DA LEI:
PRÁTICAS CLÍNICAS E SUBJETIVIDADES
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Mériti de Souza

Resumo: Neste trabalho problematizamos as representações construídas pela modernidade sobre os conceitos de igualdade e de lei, discutindo as relações entre essas representações e a experiências brasileiras relativas a lei e a igualdade. Posteriormente, analisamos a economia moral e a articulação do público e do privado presentes na vida nacional. Apoiados nessas análises, perguntamos pelas representações da lei presentes na rede social nacional e pela constituição dos sujeitos inscritos nessa organização cultural. Perguntamos, ainda, pelas práticas psicoterápicas e psicanalíticas, sustentadas e desenvolvidas por esses sujeitos.

Introdução.

Nos últimos anos, pudemos e ainda podemos acompanhar, no desenrolar da vida nacional e mesmo em nossas experiências cotidianas, não só a valorização de comportamentos e discursos que utilizam os critérios da amizade e do parentesco, em detrimento dos critérios modernos da eficácia e da competência, como também acreditamos observar a elaboração de um "código de valores" que justificaria a adoção desses critérios.

Este aspecto nos chamou atenção, pois o discurso predominante nos setores comprometidos com a melhoria das condições de vida da população brasileira e, conseqüentemente, com a qualidade do atendimento psicológico e psicoterapêutico oferecido à população, pede pela cidadania e pela implantação dos valores da igualdade e da universalidade da lei. Nesse contexto, como sabemos, o critério da lei universal, refere-se a sua aplicação a todos. Entretanto, observamos a preferência das pessoas pela valorização dos aspectos pessoais e afetivos. Nas relações profissionais, por exemplo, ao mesmo tempo que professam a adesão aos critérios da competência e da eficácia, as pessoas, na prática, adotam os critérios da amizade, ou outros, para conduzir suas ações.

As diferentes situações experenciadas, levaram-nos a pensar se, de fato, existe a possibilidade de uma ética, baseada na adoção de critérios outros que não os da modernidade, o que, no mínimo, contrabalançaria a crítica quanto à preferência dos brasileiros pela valorização de critérios como a amizade e o parentesco. Afinal, seria possível uma articulação diferenciada dos princípios da liberdade e da igualdade, que não a construída pela modernidade? Teríamos a articulação de uma experiência da lei e com a lei, amparada por vivências específicas com esses princípios? E nossas práticas clínicas, como se articulariam a esses princípios? Afinal, nossos modelos teóricos e de intervenção são orientados por concepções de sujeito e de mundo. Dito de outra forma, nossa própria constituição subjetiva e a do outro, com o qual trabalhamos, encontram-se associadas a uma específica ordem cultural.

Essas questões nos mobilizaram gerando muitas e variadas perguntas, que nos levaram a desenvolver no decorrer dos anos de 1993 a 1997, no curso de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Puc de S.P., uma pesquisa abordando o tema das subjetividades no Brasil e da experiência da lei. Posteriormente, esse trabalho foi revisto, ampliado e publicado (2). É justamente uma parte das discussões realizadas nesse livro que apresentamos. Analisamos quais os sentidos atribuídos à práticas envolvendo o princípio da igualdade e a vivência com a lei (3) e, quais modos de subjetivação estariam sendo produzidos a partir desse contexto.

Acreditamos que ocorra uma articulação específica entre o princípio da igualdade e a realidade sócio-econômica e cultural das diversas sociedades ocidentais que encamparam o projeto liberal. Entretanto, também acreditamos que ocorra a valorização de práticas e situações vinculadas a formas assumidas -sejam elas modelos jurídicos ou de subjetivação, por exemplo- pela intersecção, entre um determinado projeto e um princípio que, supomos assumir diferentes papéis, quando associado a outras formações culturais.

Em outras palavras, a feição econômica e social, assumida pelo ideário de igualdade da proposta moderna e liberal, foi uma das possíveis de serem articuladas, dadas as condições sócio-econômicas e culturais dos grupos que as gestaram. Não existiria, portanto, uma ligação necessária entre uma justificativa ética do liberalismo, como a igualdade de todos perante as leis e, as práticas capitalistas de produção e de organização social.

O princípio da igualdade, assume determinados papéis, no projeto liberal e podemos sugerir que esses papéis não se confundem com o valor expresso por esse princípio. Por outro lado, sabemos que essa associação acontece, constituindo-se um dos sustentáculos da manutenção do sistema de governo, vinculado a essa ordem, bem como, dos substratos por ele produzidos, entre os quais a concepção da lei como universal.

O modelo de cisão do público e do privado, adotado pela modernidade, com a destinação dos conteúdos do transparente e do comum ao primeiro e, do íntimo e particular ao segundo (4), não é o único, nem se encontra respaldado por uma justificativa e por uma ética validadas a priori. Assim, supomos poder encontrar outras formas de articulação social e de relações entre Estado e sociedade, em que a demanda pela igualdade exista, porém estruturada por outras relações e instituições, que mantenham o valor desse princípio, possibilitando a articulação de uma ética orientada por valores específicos.

Acreditamos que no Brasil a apropriação diferenciada do princípio moderno e democrático da igualdade, e a experiência das leis, efetivada pela sociedade brasileira, associa-se a produção de práticas sociais específicas e de modelos subjetivos diferenciados dos produzidos pela modernidade. Segundo Bobbio (1986), a igualdade pode ser definida a partir de três acepções: a primeira diz respeito a características pessoais, a segunda a "distribuição feita por alguém pelo menos entre outros dois" e, a última refere-se as normas a serem estabelecidas e utilizadas nessa distribuição.

Do ponto de vista do nosso trabalho, interessam-nos as duas últimas acepções, ou seja, interessam-nos os princípios normativos da igualdade de tratamento e das regras igualitárias de distribuição. Acreditamos que a análise da aplicação desses princípios pela sociedade nacional, pode explicitar as elaborações construídas pelos brasileiros, objetivando "conciliar" liberalismo e hierarquia explicitando, assim, os modos de subjetivação postos a trabalhar nesse contexto.

Assim, algumas perguntas revelam-se fundamentais: qual a representação elaborada pelos brasileiros acerca do princípio da igualdade e da lei, e qual sua relação com as experiências e práticas nacionais? Quais os critérios políticos, éticos e jurídicos, que orientam a utilização desses princípios pelos diferentes membros da sociedade?

Dependendo das respostas obtidas, poderíamos nos deparar com práticas sociais regidas pelo princípio da igualdade e por um código de valores reveladores da existência de uma economia moral específica. Nessa perspectiva, a articulação criativa e inovadora de redes de sociabilidade e de formas diferenciadas de vivência do princípio da igualdade explicitariam a existência de subjetividades produtoras de uma uma ética diferenciada da produzida pelo sujeito da modernidade.

Entretanto, também poderíamos nos deparar com outro panorama pois, como sabemos, a sociedade brasileira é marcada por práticas de abuso de poder e por uma das piores divisões de renda mundiais. Nesse caso, a existência de uma rede de sociabilidade peculiar e a gestação de subjetividades, que fogem aos padrões das produzidas pelas sociedades modernas, poderiam funcionar como um substrato da desigualdade vigente. Poderiam, ainda, cumprir o papel de dissimular a não aplicação do princípio da igualdade. Dessa forma, teríamos no Brasil, a produção de subjetividades capturadas e articuladas à extrema desigualdade sócio-econômica vigente no país funcionando, o "discurso da diferença", entendido como aquele que enaltece a flexibilidade e a capacidade afetiva do brasileiro, como corolário dessa ordem. (5)

O sintoma social no Brasil.

Entre as estratégias, adotadas pelas elites e intelectuais do século passado, no Brasil, para lidarem com a paradoxal situação social, produzida por um país dotado de uma Constituição liberal e de uma realidade escravocrata, estava a negação da igualdade humana entre brancos e negros. Essa negação explicitava-se, através da produção de exceções nos códigos legais, principalmente no código criminal, que criavam "particularismos nas leis", tratando o negro de forma diferenciada em relação ao branco. Essa estratégia demandava racionalizações e malabarismos intelectuais, para contornar a aplicação dos pressupostos modernos da igualdade, no caso, a aplicação da normatividade prescrita pelas leis formais.

A "coisificação do escravo" e sua exclusão da condição humana, constituíram-se na saída encontrada pelas elites nacionais, para justificar a diferença no tratamento que lhe era oferecido pela Constituição. Através dessa estratégia, o ideal das nossas elites e intelectuais, mantinha-se, na medida em que a lei era aplicada e não lhes cabia "culpa", se existiam seres humanos diferentes entre si. Vemos aqui o princípio da igualdade esbarrar na realidade econômica, no negócio fácil e lucrativo da escravidão. Porém, a representação da igualdade mantinha-se, pois eram iguais os que tinham condições naturais para sê-lo. A solução de compromisso elaborada nesse contexto, manteve a realidade dissociada, ou seja, escravocrata na prática e liberal na Constituição.

Como vemos, a justificativa para a exceção é a regra e, para a tentativa de constituição de uma realidade dissociada da vida social e jurídica, é a de que a lei só pode ser partilhada entre iguais. O escravo, o pobre, a mulher, a criança foram considerados tão diferentes que se justificou sua posição na sociedade e sua diferenciação face à lei. Esse foi o discurso construído, com o intuito de justificar a implantação de um projeto, orientado pelo ideal da modernidade. Essa estratégia explicitou a tentativa de adoção da identidade moderna, projeto que até a atualidade "persegue" uma ampla parcela da população nacional.

A partir desse contexto, a interpretação que fazemos para o país reporta-se às dificuldades criadas pela adoção de um modelo de Estado e de aparato jurídico, dissociado do cotidiano e do "fazer-se" das pessoas. Essa situação redundou na criação de mecanismos, institucionais e subjetivos, destinados a "dar conta" da convivência com a realidade nacional, pautada por uma organização formal e por uma outra informal.

Em linhas gerais, supomos que no Brasil a ordem legal (jurídica e Constitucional) contrapõe-se as experiências vivenciadas pela maioria dos brasileiros. Tal contexto possibilitou a produção de sintomas sociais (6), tais como a constituição de uma representação da identidade nacional apoiada na ordem formal e dissociada da rede de sociabilidade nacional, ocasionando a vivência e a representação das leis, de forma diferenciada da observada nas sociedades modernas que adotam o projeto liberal.

A hipótese desenvolvida é a de que a apropriação do projeto liberal no Brasil correspondeu muito mais ao desejo das elites de equiparação da sociedade nacional ao projeto da modernidade. Entretanto, as elites não estavam dispostas a implantarem no cenário nacional práticas sociais, políticas e econômicas decorrentes da adoção dos valores associados a esse projeto, como as práticas da lei universal e da igualdade perante a lei. Assim, essa apropriação redundou, entre outras questões, na produção de modos de subjetivacão onde o sentimento de existência dissociou-se do sentimento de identidade (7), possibilitando que a constituição das subjetividades se apoiassem muito mais nas práticas sociais do que nas constituições e leis formais.

Dessa forma, a vivência da lei para uma parcela da população, estruturou-se amparada nas práticas sociais, na "legislação informal" construída a partir da experiência das pessoas. Por seu turno, a legislação formal corresponde a vivência da lei para uma parcela da população, porém não corresponde a demanda de toda a população. Supomos que as práticas sociais funcionam como "locus" de vivência e elaboração das leis para a maioria da população, na medida em que ela não se reconhece na legislação formal. Essa questão é importante, pois encontramos o discurso sobre a dificuldade do brasileiro em vivenciar a lei formal, elaborado pela elite, como forma de desqualificar a capacidade do brasileiro e mesmo comparando-o ao europeu e ao norte-americano que seriam, pretensamente, aptos a respeitarem a lei formal. Ainda, encontramos entre psicanalistas e psicólogos o discurso de que o brasileiro não possui uma estrutura subjetiva compatível com a instalação da lei (no sentido psicanalítico). Discutimos essas questões, defendendo a idéia de que o brasileiro demanda o princípio da igualdade e da lei, entretanto, dada nossa rede de sociabilidade e a dissociação existente entre práticas sociais e organização formal da legislação no país, produziu-se uma experiência da lei diferenciada daquela demandada pelo sujeito da modernidade. Essa experiência da lei acompanha uma economia moral, o que a valida como forma de organização social e subjetiva.

O trabalho aponta o fato de que, no Brasil, o público e o privado se articulam de forma diferenciada da produzida pelo projeto liberal, com essa trajetória produzindo subjetividades associadas ao modelo individualizado e a modelos diferenciados. Avaliamos que o brasileiro demanda o princípio da igualdade, funcionando as práticas sociais, como "locus" de vivência e elaboração das leis, para a maioria da população, na medida em que ela não se reconhece na legislação formal.

Supomos que esta afirmação, não significa desvalorizar ou desacreditar a constituição subjetiva do brasileiro, a não ser que entrássemos no terreno valorativo e acreditásemos que a subjetividade individualizada e a forma organizativa adotada pelas sociedades modernas, são os modelos ideais e éticos a serem seguidos e que os brasileiros, por não corresponderem a esses modelos encontram-se em situação de desmerecimento frente aos modelos subjetivos e sociais associados a modernidade.

Algumas Discussões.

A pluralidade de experiências e práticas vivenciadas pelos brasileiros e, as diversas conformações subjetivas daí decorrentes, autorizam-nos a chamar atenção para o fato de que a vivência da lei, em nosso país, constitui-se de forma específica, acompanhando a trajetória sócio-histórica nacional. Assim, as práticas clínicas e os estudos teóricos, voltados ao trabalho com a subjetividade, necessitam atentar às especificidades aqui produzidas desfocando seu olhar do sujeito moderno e da subjetividade individualizada, entendidos muitas vezes como modelos idealizados e como paradigmas ao "funcionamento do brasileiro".

Desfocar não significa ignorar pois, como vimos, os modelos sociais e subjetivos associados a ordem moderna, também encontram-se presentes em nossa realidade, sendo aqui produzidos. Entretanto, lançar atenção e olhar com novas lentes, orientar o olhar às especificidades nacionais, pode explicitar a existência de conformações sociais e subjetivas diferenciadas desses modelos. Essa perspectiva analítica pode produzir outras formas de intervenção, orientando o trabalho do psicólogo, do psicanalista e de outros profissionais voltados ao atendimento da população brasileira. Ainda, pode estabelecer outros sentidos as vivências e "modos de funcionar do brasileiro".

Mériti de Souza
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NOTAS

Este trabalho é versão de um capítulo do livro A experiência da lei e a lei da expeiência: ensaios sobre práticas sociais e subjetividades no Brasil. Fapesp e Editora Revan 1999.

Souza, M. A Experiência da lei e a lei da experiência : ensaios sobre práticas sociais e subjetividades no Brasil. Fapesp e Editora Revan, São Paulo e Rio de Janeiro, 1999.

Estamos adotando o critério de diferenciar regras e normas de leis. Para tanto, usamos a definição de Abbagnano (1962): "A noção de L. é distinta daquela de regra e daquela de norma. A regra (que é termo generalíssimo) pode também ser de fato carecedora de necessidade: e regras não são somente as L. naturais ou as normas jurídicas. mas também as prescrições da arte e da técnica. A norma é uma regra que concerne somente às ações humanas e não tem por si valor necessitante; portanto, não são normas as leis naturais e as regras técnicas; e uma norma, por exemplo, de natureza moral, não é constritiva da mesma forma que uma lei jurídica. Desse ponto de vista, existem somente duas espécies de L. :a L. da natureza e a L. jurídica."ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. S.P.: Mestre Jou,1962, p. 573.

A esse respeito ver a discussão realizada por HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública - investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. R. J.: Tempo Brasileiro, 1984 e ARENDT, H. A condição humana. R.J.: Forense-Universitária, 1983.

O Banco Mundial divulgou, em 1995, uma pesquisa realizada entre 1988 e 1989, junto a 71 países, considerados desenvolvidos e subdesenvolvidos, detectando a distribuição de renda nesses países. O resultado mostra o Brasil como detentor da pior divisão de renda do mundo. Assim, 51,3% da renda brasileira encontra-se nas mãos de 10% da população e, os 20% mais pobres detêm apenas 21%. (F.S.P., 28/07/1995, p.1-1). Ainda, em outro estudo, também divulgado em 1995, baseado em dados de 1990 do IBGE -Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-, o Dieese -Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos- confirma esses resultados. "O Estudo mostra que, conforme os dados do Banco Mundial e do IBGE, o Brasil ocupa a pior situação quanto à distribuição de renda.".(F.S.P., 12/08/1995, p.1-11).

A discussão sobre o sintoma social pode ser encontrada em ARAGÃO, L.T. Clínica do Social: ensaios. S.P.: Escuta, 1991.

A esse respeito consultar BERRY, N. O Sentimento de identidade. S.P.: Escuta, 1991.


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