Histórias que não se contam
O não-dito e a Psicanálise com crianças e adolescentes

Miriam Debieux Rosa

 

Sumário do Livro
 
 PREFÁCIO 
INTRODUÇÃO
PARTE I
O NÃO-DITO: EM BUSCA DE SEU SENTIDO
 
1 - OS DITOS POSSÍVEIS
    1.1 O Mal Entendido
    1.2 O Mal dito
2 - OS DITOS IMPOSSÍVEIS
    2.1 O Indizível: o não-dito e a castração
    2.2 O Impensável: O Sagrado
3 - OS NÃO-DITOS "VOLUNTÁRIOS"
    3.1 O Implícito
    3.2 As regras sociais e mitos
    3.3 O Segredo
 
PARTE II
O NÃO-DITO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA
 COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES
 
1 - QUESTÕES SOBRE A PSICANÁLISE COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES
    1.1 A Psicanálise com crianças, segundo Anna Freud, Melanie Klein e Françoise Dolto
    1.2 A criança e o adolescente no imaginário social e na Psicanálise
1.3 O Sintoma da e na criança
2 - MANIFESTAÇÕES DO NÃO-DITO NA
 PSICANÁLISE COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES
    2.1 Ele não sabe
    2.2 Eles não deixam dizer
3 - OS EFEITOS DO NÃO-DITO NOS DISTÚRBIOS DE DESENVOLVIMENTO, APRENDIZAGEM E COMPORTAMENTO
3.1 Ele não quer saber
    3.2 Ele faz. Ele repete
4 - INFORMAR E INTERPRETAR
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BIBLIOGRAFIA

 

INTRODUÇÃO 

                Este livro apresenta o percurso, as preocupações e reflexões de uma psicanalista no atendimento clínico com crianças e com adolescentes. As vicissitudes do atendimento são muitas, entre elas a complexidade e  a diversidade das teorias sobre os fundamentos e estratégias na psicanálise com crianças e adolescentes ladeado à inoperância de, por vezes, seguir tais fundamentos, uma vez que ora a família, ora a criança trazem à luz situações imprevistas que provocam estremecimentos no rol de conhecimentos, técnicas e exemplos estudados. Por vezes, nada funciona, nada serve. Se conceituarmos a interpretação como aquela que intercepta o discurso instituído para fazer surgir o inconsciente podemos dizer que a psicanálise com crianças é um campo fértil de interpretação, também do analista, que, muitas vezes, questiona se é psicanalítico o seu trabalho.

               Pode-se dizer que este trabalho é efeito da transferência no atendimento com crianças e adolescentes. Mannoni assinala que é uma exigência da  transmissão da psicanálise o redescobrimento contínuo da dimensão inconsciente e daquilo que em cada descoberta  liga-se a um conflito transferencial: “toda pesquisa deveria, portanto, idealmente, poder incluir as resistências e os avatares do  "desejo de saber" do paciente... e de seu analista". [1] Este é o pano de fundo que faz laço entre o trabalho psicanalítico e a produção teórica que resultou neste texto.

               Construir um sentido. Está aí o projeto. Sentido, que parece perdido no sintoma, na perplexidade dos pais diante dos atos e sintomas de seus filhos, na fala que diz o que não pretendia, no atendimento que escapa às regras ditas mais fundamentais da psicanálise.

               Projeto ancorado na insólita observação de que o sintoma na criança é atravessado pelo não-dito dos pais. Insólita, na medida em que se olha a partir do imaginário social, que afirma o campo do individual. Psicanalítica, na medida em que trabalha o inconsciente, em uma perspectiva lacaniana, tomado como discurso do Outro. Este, o Outro, não é alguém, embora alguém possa ficar em seu lugar, mas um lugar de onde se espera ou de onde vem algo: da linguagem vêm os significantes, do corpo vem o prazer-desprazer, do inferno vem a maldição, do seio vem o leite. O Outro fala. Quando se diz “estou com fome”, é resposta ao Outro-seio que pergunta “o que quer?”.

               Faz-se necessária, portanto, a análise do discurso do Outro que atravessa a criança, para compreender seu sintoma. Para isto enfrentaremos a articulação que instiga o encontro problemático da clínica com a constatação dos efeitos da presença do Outro na subjetividade e a  articulação entre constituição subjetiva e discurso, no que este imprime de determinação. A ênfase no trabalho não está em perceber como cada estrutura subjetiva promove ou reage ao não-dito. Este seria outro caminho. Enfatiza-se aqui o efeito do discurso, particularmente o não-dito, na produção sintomática do sujeito.

               O não-dito faz parte do discurso que certamente não é palavra. Na premissa: há impossibilidade, no discurso, de abarcar uma enunciação exaustiva, completa, entende-se que o não-dito é constituinte do discurso. Acrescente-se a isto a idéia de que, quando o não-dito está vinculado à interdição da articulação de um significante essencial, produz sintoma [2].

               A hipótese desenvolvida sobre a produção de sintoma na criança e no adolescente é de que a construção da subjetividade sofre alterações diante da  distorção, supressão ou interdição de significantes fundamentais, pois estes impedem a transmissão e a articulação dos significantes da filiação e da sexualidade. Nesses casos há um mandato de não dizer dirigido para a criança e para o adolescente que, na impossibilidade de articular seus saberes, expressa-os no sintoma, seja alterando sua possibilidade de conhecer e aprender, seja transformando em atos, os aspectos do mandato que não sabem que os determinam e que estão fora da apreciação do eu, gerando estranhamento e a falta de apropriação da sua ação.

               Para fazer esta discussão, as reflexões, indagações, idéias, multiplicaram-se neste trabalho. Muitas delas foram aprofundadas  e efetivamente trabalhadas. Outras, ora foram tematizadas, ora apenas mencionadas.

               Há, no entanto, um norte, um determinante neste procedimento, que o conduz desta forma. Trata-se da análise de observações clínicas dos atendimentos com crianças e adolescentes, nos quais os pais dizem, às vezes diante do filho,  que ele não sabe sobre referências fundamentais sobre suas vidas ou a dele próprio. 

               A partir destas observações foi traçado o objetivo deste trabalho : investigar  a relação do sintoma, particularmente os distúrbios de aprendizagem e de comportamento, com os dados relativos à historia da criança e/ou da família, relatados ao analista pelos pais, os quais, supostamente, o filho não conhece. Tais dados serão chamados não-ditos, a partir dos quais será trabalhada a hipótese de que a presença desta incógnita, em vez de estimular a investigação,  pode promover sintomas.  

               A primeira parte do trabalho focalizou o não-dito e seus sentidos e explorou as manifestações deste modo de discurso não-dito e seus efeitos na subjetividade. Este primeiro ponto mostrou-se extremamente complexo. Os autores consultados sobre o não-dito referiam-se a inúmeros aspectos, diferentes entre si. Fez-se necessário organizá-los, destacá-los,  o que acarretou uma revisão na proposta, ruptura necessária para situar o não-dito, a psicanálise e a psicanálise com crianças e adolescentes e suas conseqüências na relação transferencial.           

               Várias facetas do não-dito foram registradas, nomeadas, recortadas. As dimensões de cada uma não são exploradas no seu limite, mas marcadas em sua especificidade. Mostra de que forma o não-dito está presente nos ditos possíveis, impossíveis e nos “voluntários”.  Como ditos possíveis trabalha-se com o mal entendido e o mal dito. Aponta dois tipos de ditos impossíveis: os indizíveis e os impensáveis. Realça também entre os não-ditos “voluntários”, ou seja, aqueles que supõem sua supressão aparentemente comandada pelo Eu, os ditos implícitos, as regras e os mitos sociais e os segredos.

               No decorrer do trabalho notou-se que o não-dito revela-se um operador por excelência. Diz respeito a facetas diversas da linguagem. E, como tal, diz respeito ao inconsciente e, sem se sobrepor a ele, contribui para explicitar articulações e equacionar algumas das dimensões da prática psicanalítica.         

               A partir do mapeamento sobre o não-dito e o poder da palavra,  o tema gerador da pesquisa foi retomado. Afinal, cabe saber como os elementos levantados contribuem para compreender alguns fenômenos da clínica psicanalítica. O não-dito em algumas de suas manifestações na clínica com crianças e adolescentes compõe a  segunda parte deste livro. A ênfase teórica será dada à clínica com crianças e adolescentes, sem, no entanto, focar em questões específicas da adolescência, que merecem outros desenvolvimentos. Esta parte será dividida em quatro capítulos. O primeiro problematiza os posicionamentos de autores dedicados à  psicanálise com crianças e  traz ao debate a fantasia sobre a criança na psicanálise, apontando a influência do ideal de não dependência, ladeado ao de tudo saber no trabalho com a criança; examina também como o atual imaginário social sobre a criança  e o adolescente afeta o reconhecimento daquele que é encarregado de enunciar o discurso parental, importante na constituição de sua subjetividade.

               A concepção de análise trazida no livro é a que trabalha a cena fantasmática que mostra a relação do sujeito com seu desejo. Desta relação emerge o mandato a que a criança obedece e para o qual busca uma causa, não mais no fato, mas no discurso, fator fundamental para quebrar a dimensão de destino e abrir para a transmissão da história.

               Considera-se, ainda, que há especificidade na análise da criança no que diz respeito a formulação da demanda de análise que, neste caso, está a cargo dos pais ou adultos para quem ela promove questões. Dessa forma, a mensagem sobre a criança e, por vezes, sobre o adolescente, pode ter vários sujeitos de enunciação. Com isso evidencia-se também  que o seu discurso é atravessado pelo discurso dos pais que, por sua vez, é ancorado em seu desejo e no imaginário social sobre a criança e o adolescente.

               A criança, segundo a concepção lacaniana, essencialmente inserida na estrutura desejante da família, é efeito do desejo do Outro. Considerando-se que ela fala pelo sintoma quando não foi falada pelo Outro e que o seu o sintoma  é produto da metabolização dos fantasmas dos pais na criança, justifica-se trabalhar na sessão com quem se propuser a falar sobre o sintoma e a criança, na busca de desvendar a sua mensagem. Muitas vezes, de forma mais pontual, o mesmo ocorre  com o adolescente, principalmente os mais jovens.

               Prosseguindo, no segundo capítulo desta parte do livro, são abordadas as manifestações do não-dito, através dos temas intitulados Ele não sabe, em que se discute a relação conhecer-saber-dizer, e Eles não deixam dizer, onde se analisa a relação família e filhos no jogo do dizer. No terceiro capítulo serão abordados dois efeitos sintomáticos do não-dito: a articulação do não-dito com o empobrecimento ideativo e a dissociação entre o sujeito e seus atos, ou, como diria Chico Buarque, a distância entre intenção e gesto, estudada a partir dos conceitos de identificação e repetição, para elucidar o sentido de certos comportamentos ditos delinqüentes, questão que se torna mais aguda na adolescência. O trabalho é finalizado com as diferenças entre informar e interpretar, instrumentos da pedagogia e da psicanálise.         

               Neste livro demonstramos que a historização do desejo tem efeitos de inclusão do sujeito na genealogia, na filiação. Estudamos como o não dito e o pacto de silencio podem obstaculizar a transmissão dos significantes com conseqüências na subjetivação. Com tais constatações pode parecer que basta dizer o que não está dito. Vã ilusão. Constata-se uma trama complexa, em que comparecem a subjetividade do filho, dos pais e suas intersubjetividades, atravessadas pelo imaginário social. E que fique claro: neste trabalho não se preconiza dizer o não-dito. Nem há como dizer, uma vez dada a impossibilidade, como dissemos, de abarcar uma enunciação exaustiva, completa. E, mais do que tudo, o amor pela verdade pode se tornar destrutivo, quando se esquece que ela só pode ser dita pela metade. O saber tudo é mudo, estático, porque paralisante. E, lembramos: saber e conhecimento não coincidem. O conteúdo só é apreendido se fizer ponte com a verdade inconsciente. A mera informação apela para a dimensão do intelectual que, aliada ao ideal, oprime, caso não haja articulação com a demanda do sujeito.

               Além disso, os pais também estão paralisados pelo não dizer, que os transcende. Acham que podem destruir o filho, a relação deste com eles. Há componentes morais, de culpa, de frustração e de dívida, não trabalhados nos pais e que alteram a sua relação e discurso sobre o filho. Evitam falar aos filhos sobre sua história como forma de evitar o enfrentamento com a ferida narcísica e a angústia que tais temas neles desencadeiam e que, supõem,  desencadeará nos filhos.

               Mais ainda, os não-ditos não se limitam aos fatos em si ou às circunstâncias vividas pela família. Pergunta-se pelo acontecido não como um fim em si mesmo, mas como os sinais do que deve ser compreendido e representado. São, também, conflitos e dúvidas. O que falta, para a criança, não são os fatos. O que faz falta é querer saber, formular perguntas. A disposição de transmissão supõe, da parte dos pais, sair do lugar de saber tudo, da certeza. A análise deve restituir a possibilidade de investigar sobre a vida, o mundo, a história. Supõe perder o lugar do que não sabe, com a certeza de que alguém saberá pelo sujeito. Supõe adquirir uma disposição para enfrentar um mundo em aberto. Aberto à investigação ativa, com pensamentos e atos.

               Neste trabalho apontamos uma das facetas da relação do sujeito com o Outro, mostramos que sua pretensão de ser um indivíduo não passa de uma ilusão e explicitamos a relação intrínseca entre desejo, Outro e subjetividade.

               Segue-se ainda uma indagação final sobre as implicações no trabalho analítico. Este precisa trabalhar nas brechas, nas fendas da fala e expressão, abrir-se para a escuta do discurso, seja através da criança, dos pais, do brinquedo; abrir-se para a escuta que os pais têm do filho e que o filho tem dos pais, e de ambos, para o próprio discurso, mesmo com o risco de perder-se o enquadre tradicional da psicanálise.         

               Ao analista, que visa o saber do sujeito, cabe também abrir tais fendas. Opera sobre o discurso, busca significantes insistentes que, se articulados pelo sujeito, produzem novos sentidos e organizam a vivência. Utiliza-se da interpretação e da construção, levando em conta que, para articular  e produzir sentido, são precisos dois significantes em relação, e que há situações em que um destes fica retido no discurso parental, o que justifica sua presença na sessão, até que seja instituído o par de significantes necessário à palavra. Nesta medida, a presença dos pais no atendimento é um efeito de estrutura que remete  à castração do filho e dos pais: trabalha a possibilidade da separação. Atende-se os pais para produzir um efeito analítico que permita dar continuidade à análise[3].

               No decorrer do texto são relatadas várias estratégias de atendimento, estratégias que emergiram das relações transferenciais. Mas não são estas que importam. Importa que, em vez de porta voz de um regime desejante familiar, a criança e o adolescente possam tornar-se agentes desta construção, operando como sujeitos incluídos na ordem humana, fundado na ascendência e também na diferença em busca do novo, do próprio.

               Enfim, o que se pode realmente instituir quanto a técnicas refere-se ao trabalho com o inconsciente, à utilização do inconsciente como instrumento e à reconsideração toda a teoria em função de cada caso. O que há não é técnica psicanalítica, mas prática de análise. 

NOTAS

[1]Mannoni, M.(1989) Um saber que não se sabe. São Paulo: Ed. Papirus, p.85.

[2] Rodulfo, R. (1990) O brincar e o significante. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas. 

[3] Lefort, R. e otrs  (1991) Niños em psicoanalisis. Buenos Aires: Ed. Manantial.

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