MORTE E NASCIMENTO EM JOGO
Mirian Giannella
palavras-chaves: A Internet, o suicida, a morte do pai, o excluído, o progresso da civilização, o fim da pesquisa científica realizada enquanto verdade
RESUMO
A partir do reencontro com uma velha amiga numa esquina de São Paulo, o quê, via correio eletrônico, se elaborou sobre a morte, a do pai, o sentimento de culpa e a importância do excluído para a manutenção de uma comunidade, com base em Freud e Lacan.
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Aos Suicidas
Está na pauta a morte das instituições, da psicanálise, do mundo, é a vida. Uma maneira de deserotizar a morte é dizer que o mundo já acabou, o mundo que conhecíamos, se isso se pode pretender. Vivemos um novo paradigma. A revolução da informação atualiza o sonho de transporte e telepatia, antes acessível apenas aos magos sutilíssimos. Através da comunicação, via rede virtual, podemos ir sem estar. Nova era, era da comunicação, temos mais vivo em nós o sentimento de pertencimento à cadeia de homens e mulheres ligados em todas as partes do mundo através da rede mundial de computadores, numa associação global. Mundo pequeno.
Reencontrar minha amiga de adolescência nos bancos do Colégio Bandeirantes, ela subindo e eu descendo uma rua nos jardins, constituiu-se em uma mirada no espelho e uma revirada na vida e em todo este trabalho.
Ela, linda, teria podido ser modelo se pudesse olhar o vazio/olho da câmera/Outro. Preferiu ficar atrás das câmeras... Fez produção de cinema, (Pixote, O beijo da Mulher Aranha), de revistas, de roupas... Está, atualmente, com projetos de livros de arte já aprovados pela Lei Rouanet e de uma Associação de Apoio aos Suicidas visando a produção de saber sobre ele, aguardando os interessados e patrocinadores.
Sobreviveu a duas tentativas de suicídio. A primeira aos 24 anos. Toma remédios desde então, há 20 anos, gasta R$400,00 mensais com medicamentos, está impregnada, com envelhecimento precoce, artrite reumatóide e a segunda tentativa de suicídio, há cerca de 2 anos, com os próprios remédios, vem nos mostrar que a opção pelos remédios não ajuda na elaboração das questões de fundo, se não é acompanhada por uma terapia.
A opção por psicotrópicos projeta uma imagem de sujeito tomado por objeto do saber psiquiátrico e da indústria farmacêutica que faz acreditar, através de seu marketing, que pode alterar libido e sexualidade, trazendo o bem estar e o gozo que o remédio promete oferecer. Dopa, nega, reprime ou estimula, energiza, excita as funções do sujeito. A primeira vai no sentido da morte paralisando a produção do sujeito, ao invés de ouvir suas queixas e revoltas e tentar encontrar o sentido dos fragmentos que retornam.
As drogas são poderosas, os anestésicos, por exemplo, provocam uma morte experimental com depressão respiratória, do sistema nervoso central, todas as funções vitais são diminuídas. O paciente tem que ser entubado e medicado para não morrer. As substâncias etéricas, inalantes, produzem tontura, perda dos sentidos, torpor e morte por fibrilação ventricular conforme o grau de exposição à droga. Os diluidores são solventes, também usados para as tintas e colas. Clorofórmio para conservar? Muita onipotência do médico acreditar que controla a dosagem e que tudo isso não deixa marcas no sujeito. O que pode isto significar para quem está nascendo? Produz identidade da mãe com o escuro, frio, duro da morte.
As substâncias tóxicas vão se impregnando, sobra restos inelimináveis que ralentam os movimentos. Supõe-se um sujeito intratável, fora da linguagem humanisante, louco, excluído da comunidade dos humanos, o sujeito não se percebe tomado na cadeia dos significantes.
No caso dessa minha amiga, a irmã antes nascida e morta tinha o mesmo nome que ela. O luto da irmã ficou ressoando. A cisão pela linguagem por não ser simbolizada é vivida no real com a morte infligida sobre o corpo com remédios ou outros instrumentos cortantes. Face a um mal quer cortá-lo pela raíz.
Ainda mais coloca o sujeito, a partir daí, como objeto dos laboratórios para medir o nível de impregnação das substâncias tóxicas. Coloca o corpo no lugar da falta e todos os sintomas aí aparecem. Os remédios são mais ágeis e eficazes? Se não provocassem tantos efeitos colaterais! Como a dor é existencial, o sujeito lucra muito com um saber das coisas do espírito.O gasto de R$ 400,00 mensais não seria suficiente para se pagar um analista?
Depois do nosso encontro por acaso na rua, começamos uma troca de mensagens via correio eletrônico onde lhe disse que a gostaria de ver elaborando o desejo de morte. Como toma remédios e vai pela via religiosa, não o fez e foi como surgiu o texto agora reescrito para especialistas:
O desejo de morte pode ser metaforizado, falado, deglutido, transformado, colocado em circulação é vida. Pode-se dirigir ao que em nós precisa morrer, o que queremos que deixe de existir, ao que podemos abandonar, desistir, desinvestir, destituir: O corpo enquanto objeto do desejo da mãe.
A depressão de cada dia é o luto da imagem ideal que desmorona, apaga, desvanece, é morte do Eu Ideal, das ilusões, expectativas, sonho de paraíso perdido, paz, completude, absoluto, próximos da estática da morte que nos seduz a vida toda. O gozo com a mãe, objeto para sempre perdido, será procurado e a vida ganhará a tonalidade de profunda depressão se não se desprende desta demanda e instaura um sujeito capaz de assumir suas escolhas.
A depressão se instala quando a imagem cai, o objeto que viria preencher a falta se desatualiza, aquela construção onde se havia colocado investimentos supondo a felicidade, i(a) imagem de um objeto suposto preencher a falta, imagem à qual se supõe os significantes fálicos que a tornariam amorável, que iludia com a completude, enfim.
Mas não, vivemos rachados, divididos pela linguagem que não pode dizer tudo, pelo desejo que quer sempre mais, em outro lugar, em outra hora, com uma certa dor. Dor maior ou menor quanto mais a parcialidade puder existir, a relatividade, o pequeno, o passageiro puder ganhar o brilho do efêmero que a vida nos propicia.
Quem, o quê se quer matar quando está se matando? Para cada um deve ter um sentido: O fracasso da possibilidade de se colocar enquanto sujeito de um desejo é o que mobiliza tanto ódio, o luto do amor que se perdeu... Temos a saída da identificação com o morto e desejamos a nossa própria morte ou por não poder realizar o desejo de morte do outro, voltamos ele contra nós mesmos por culpa.
Aceitar-se bebê/criança desamparada com seu choro sem sentido porque ninguém responde é difícil. Aceitar o amor que se perdeu e que não se terá, a informação que nos foi negada, recusada, os amores parciais, efêmeros, implica em abrir mão desse objeto e continuar na luta pela vida arrastando os andrajos da morte que nos marca a ferro e fogo.
Há fixação, impossibilidade mental de conceber de outra forma os paradoxos, as faltas e rupturas de sentido, de elos afetivos que não são falados. Porque não podem ser falados? Escondem o ódio, o rancor, a dor. Não podem ser ditos, fluir, passar, ficam congelados, mortos vivos. Queremos matar o duro, a morte em nós. Se a história não tem existência, a imagem do sujeito não pode consistir. A reação é desejo de morte: Quero que morra a expectativa do Outro, a imagem projetada sobre mim, o ideal de eu. E daí ao quero morrer é só a queda do ideal.
A relação aceitável seria aquela que consente com a nossa existência enquanto outro diferente, a diferença que representa a distância entre a imagem e o outro. Não só o desejo da mãe deve contar, o do pai que instaura o do sujeito é o que vai deslocar a demanda. A interdição de acesso ao gozo com a mãe faz com que a demanda derive para outros objetos e entre em circulação no mundo.
Freud e Lacan vão nos ajudar a desatar esse nó da introjeção paterna e a culpa que gera.
Freud, em O Mal-estar na Civilização, texto de 1929, examinado por Henri Rey-Flaud, em Os Fundamentos Metapsicológicos de Mal-estar na Civilização de Freud, no livro Autour du "Malaise dans la culture de Freud" de vários autores, coloca a vivência de morte como a experiência de perda do seio, dando-nos elementos para apreender esta dialética entre Eros e Tanatos. Inicialmente feita a pedido de Rosely Pennacchi., reivindicando a minha autoria da tradução, pude revisá-la buscando um melhor jeito de dizer e não o melhor, este texto que se revelou importante para situar em Freud as questões que abordamos. Vamos ver como Freud compreende o progresso da civilização e a importância do excluído para a manutenção da comunidade com alguns recortes do texto de Henri Rey-Flaud,
..."A conquista do fogo pelo homem se dá quando "o homem apaga o seu próprio fogo com a sua própria água". Esta constatação capital ensina que o fogo toma sentido e função da água e reciprocamente, assim como o dia toma sentido da noite e a noite do dia. O fogo apenas subsiste se mantém, na sua presença, a ausência da água e vice-versa. A relação entre pulsão de vida e pulsão de morte não é de oscilação (um ou outro), mas de dialetização (não um sem o outro).
O desintrincamento das pulsões (Triebentmischung), isto é, o desligamento de Eros e Tanatos, que se revela quando um vence o outro, assinalaria o fim do homem. É o que mostra o mito das cabeças de Hidra de Lerna que renascem mal tendo sido cortadas, representando um puro "instinto de vida" desenfreado, que nada distingue do "instinto de morte". A civilização traduz assim a integração da pulsão de morte controlada por seu entrelaçamento com a pulsão de vida. O que Freud ilustra com uma última referência a Heine: a Eiapopéia do céu.
A Eiapopéia do céu
Freud conclui o capítulo VI indicando que a luta de gigantes que constitui o enfrentamento de Eros e Tanatos é velada às crianças eternas que somos pela babá-civilização que canta a Eiapopéia do céu à espera, acrescenta ele em nota, de que "um certo acontecimento não descoberto ainda" viria marcar um "desenlace" decisivo deste enfrentamento. Resta de início determinar a natureza deste acontecimento.
A conclusão do Futuro de uma ilusão vem esclarecer e mostrar que o acontecimento ainda não realizado que deve marcar uma virada na história da civilização é o fim da pesquisa científica realizada enquanto verdade. Assim, a função da "babá" é de adormecer a criança-homem até o dia em que, tendo se tornado adulto, será capaz de olhar de frente, do lugar da verdade, o enfrentamento mítico que funda sua condição mortal.
Uma vez mais, Freud considera então o processo de desenvolvimento da civilização a partir do modelo já estabelecido do devir do indivíduo tal como descrito em princípio no Esboço para uma teoria científica (1896). O canto da babá, "Do-do, a criança do", [nana nenê] destina-se a fazer calar a insatisfação causada na criança pela retirada do seio, o que provoca nesta a primeira experiência de morte. A cantilena embala o bebê tomando-o numa cadência que não é um ritmo, já que a melopéia efetua aqui um percurso cíclico, que se fecha em si mesmo, levando o sujeito a esse ponto de partida. O movimento de embalar nega assim, paradoxalmente, o movimento e imita a imobilidade. A melodia significa: "Durma, nada aconteceu, nada acontecerá." Leva a criança ao tempo do sem tempo, tempo da indiferença e do primeiro narcisismo. Tem por função fazer com que a criança esqueça o chamado da pulsão (a fome).
A babá faz assim um papel análogo ao da religião dizendo à criança: "Engaje-se na vida, sem se colocar a questão da vida e da morte, da perda do objeto e de seu reencontro, senão a vida lhe será insuportável: a resposta às questões que você não se colocará lhe serão dadas um dia, mas esse dia, em que a verdade substituirá a ilusão, ainda não chegou para você." Assim, a condição do homem é de avançar na vida de olhos fechados sem saber que a morte que é o fim da vida é, ao mesmo tempo, o que a leva.
O canto da babá, análogo ao discurso religioso, leva naturalmente Freud à problemática do Futuro, todavia deslocada, pois não é mais aqui a esperança "ilusória" que é interrogada, mas o resto caído desta "ilusão" e que, paradoxalmente, a alimenta: a culpa. Tal será o objeto do capítulo VII.
A ORIGEM DA CULPABILIDADE E DO SUPEREU
Da origem enigmática do sentimento de culpa
"O mal originalmente, diz Freud, é que se é ameaçado de ser privado de amor." Esta sentença, pela qual Freud dá conta do sentimento de culpa como resposta à perda de amor do pai, demanda ser esclarecida.
A culpa revela sua natureza enigmática quando se mostra através de sujeitos que, livrados ao ódio, à violência, à perseguição, não demostram em retorno o ódio que se esperaria, mas ao contrário, tomam para si o erro, a vergonha, a infâmia. A experiência clínica apresenta diversas figuras desta posição: a criança espancada pelo pai, a mulher violentada, etc. A razão desta atitude fica detida na questão inconsciente que estes sujeitos colocam a si mesmos - para a criança: "O que fiz, ignorado por mim, para que meu pai me odeie?" - e para a mulher: "O que fiz para sofrer isto?"
Além dos acasos das histórias individuais que apelam a esse lugar tal sujeito e não tal outro, Freud vai procurar a explicação fundamental destas condutas no mito do assassinato do pai, postulando que o ato primordial foi vivido pelos filhos, ao mesmo tempo, como uma libertação e como um sacrilégio. O que enuncia dizendo: "Os filhos não só odeiam o pai, também o amam." Mas, como dar conta da natureza e da origem deste amor paradoxal? A resposta a esta nova questão é dada, mais uma vez, quando são explicitadas as motivações secretas das crianças espancadas que manifestam grande dificuldade em denunciar seus torturadores, renegando com força a maldade do pai e protegendo assim, de modo incompreensível para o juiz ou educador, a figura do déspota cruel do qual entrevêem o castigo num acesso de angústia. É que, de fato, a destituição desse pai, aos olhos da sociedade indigna, representa, para elas, um perigo muito maior que todas as sevícias corporais que puderam e poderiam ainda sofrer. O problema é, outra vez, deslocado e nesse caso é a natureza desse perigo que convém determinar.
A defesa do pai ideal
Na realidade, a criança defende aqui, a instância do pai ideal, escondida atrás do pai torturador real, necessária para assegurar a existência do sujeito e manter a consistência do mundo acima do nada. Esta posição neurótica exprime um fracasso da introdução da lei, a figura imaginária do pai ideal se levanta sobre o apagamento do pai morto simbólico (ideal de eu), venerado pacificamente - para maior economia da culpa. Apesar de seu caráter patológico, esta posição apresenta o interesse de colocar à luz o destino do pai primordial da horda tal que o reconstitui o mito de Totem e tabu.
Uma lembrança de infância de um paciente célebre de Freud, conhecido pelo nome de Homem dos ratos, ilustra esse princípio. Aos cinco anos, esse sujeito cometeu um dia alguma desfeita pela qual seu pai se apressava em lhe infligir uma correção, mas a criança, se debatendo, xingou seu genitor de toda sorte de nome de utensílios: "Seu prato, seu lâmpada, seu toalha etc." Com o que seu pai o largou dizendo: "Esta criança será um grande homem ou um grande criminoso." A história deveria, na realidade, desmentir essa profecia, pois a criança conheceu um terceiro destino. A sequência demonstrou, de fato, que sentiu tanto medo dos efeitos de sua própria cólera que a rejeitou sobre o pai, que a partir daí, o aterrorizava. Assim, o recalcamento da agressividade teve aqui por função salvar o pai real e, além deste último, o pai ideal que, enquanto onipotente e dono da verdade, é a garantia do mundo. A neurose perpetua, assim, esclarecendo o detalhe do mito freudiano que determina que o pai horrível que suscitou o ódio alimenta também, secretamente, a admiração e o amor dos filhos.
A clínica da histeria feminina testemunha no mesmo sentido a vontade de certos sujeitos de sustentar contra ventos e marés a figura do pai ideal sob os traços de uma mãe empenhada na sua ruína, mas cujo amor se impõe como sendo para os interessados a condição da existência, tanto que estas mulheres vão para a morte agarradas à instância luciferiana que as conduziu a esse termo e que fica ornamentada até o fim com a auréola do esplendor. Uma variante, um pouco menos terrível desse destino, é fornecida pelo caso das mulheres aterrorizadas por um companheiro (encarnação da Mãe terrível) que elas mantêm, diante de parentes e amigos contra toda razão aparente, como um modelo intocável.
Estas condutas desviantes dão conta de um traço fundamental do sujeito humano: a tendência à passividade na qual reconhecemos a primeira matriz da pulsão de morte.
Por que a figura do pai ideal é defendida pelos filhos?
A tendência à passividade encontra sua origem, sabemos, na primeira relação ao mundo do sujeito humano: a indiferença. A passividade é assim o primeiro avatar da pulsão de morte operando no sujeito, evidenciada por Freud em 1924, determinando a existência de um masoquismo primordial suscetível sempre de ser reativado. É esta tendência que usam, com a segurança própria do inconsciente, os líderes políticos e os fundadores de seitas, hábeis em tirar partido da submissão a sua vontade, o que permite aos praticantes da "servidão voluntária" poupar-se da morte. Os povos também testemunham, algumas vezes, esta necessidade do tirano que lhes permita aliviar o peso da liberdade. Assim, o narcisismo do escravo encontra-se garantido ao ser destinado a um mestre que mostra a todos que ele superou a castração por conta própria.
A transmutação da figura do pai terrível em pai ideal demonstra que é mais fácil para o homem colocar a sua morte nas mãos do Outro do que tomá-la nas suas próprias. É, em nome desse princípio, que o homem construiu a figura do Deus terrível, pintada por Michelangelo no teto da Sistina e cuja morte, anunciada por Nietzche, pode remeter a si, se se confirmasse, a angústia ligada à carga do desejo.
Assim, encontram-se colocados os princípios fundamentais que devem determinar o futuro da civilização. São estes princípios que Freud vai, no importante capítulo VIII, retomar e desdobrar para encarar as condições do progresso possível das sociedades humanas.
DESTINO DA CIVILIZAÇÃO
Função da repetição
A primeira lembrança do pai nos traços do totem, realizada sob pressão da culpa, tem por efeito dar um objeto a esta e, ao mesmo tempo, aliviá-la ao máximo. A refeição totêmica, peça essencial desta etapa da história, é, de fato, uma comemoração do assassinato perpetrado em nome do ódio, e ao mesmo tempo, uma celebração da incorporação do pai morto compartilhada em nome da culpa e do amor. Ao que consagra, nesta segunda vertente, o pacto da renúncia concluído entre os irmãos e o progresso assim realizado no sentido da civilização. Apesar desse avanço, a refeição totêmica não regula todavia a questão do assassinato do pai, pois este último não é incorporado inteiramente pelos filhos: há sempre um resto inassimilável, que poderíamos imaginar com o donativo do fiel que vai alimentar a culpa e inscrever de antemão a celebração do rito para o ano seguinte. O pai não pode ser morto uma vez por todas: o assassinato que o fez desaparecer não conseguiu apagar a lembrança do ato, tanto que na memória dos homens vai perdurar a lembrança do pai "ilimitado", suporte paradoxal da culpa e dos progressos da cultura.
Assim, a culpa é o lugar onde se amarra, indissociavelmente, o amor e o ódio, o que faz dela, como diz Freud, "o motor da civilização": numa comunidade civilizada, cada um sobrevive em nome do ódio ao pai (metaforizado sobre o irmão, de início, depois sobre o estrangeiro, o excluído) e salva-se em nome do amor pelo pai (metaforizado sobre o líder político, esportivo, star,). Descobre-se, então, que o fim da culpabilidade (estabelecido pelo desintrincamento das pulsões) marcaria o fim da história, o que os nazistas estiveram a ponto de realizar, em certo momento. Este Apocalipse fracassado confirma que o curso da história segue um traçado em círculos concêntricos no qual cada círculo reproduz o circuito do precedente sem o recobrir. Um recobrimento perfeito (sem memória do esquecido) de um estádio da história por um outro, abolindo toda nostalgia e tornando a espera sem objeto, marcaria de fato a petrificação do processo. É em virtude desta regra, por ser o totem impotente em substituir completamente o pai primordial, que a refeição totêmica vai indefinidamente se repetir e expiar o assassinato do pai, alimentando a culpabilidade dos filhos numa amarração entre o amor e o ódio que é o princípio da civilização. Assim, a festa totêmica tem por função reanimar o ódio e acalmá-lo, no mesmo gesto, até o ponto de se chocar contra um coração irredutível no qual se alimenta a culpa.
Esta conclusão mostra que a instância do supereu que Freud correlaciona com o sentimento de culpa não é uma excrescência monstruosa da consciência moral: é antes a parte caída da metáfora primordial constitutiva da Urverdrängung, a condição necessária para que haja linguagem e humanidade.
Ideal, ideal de eu e supereu
O supereu é produto do sentimento de culpa: é a parte do pai que não pode ser incorporada e que vai fazer retorno. É, de fato, o fracasso da incorporação real (Einverleibung) que suscita uma outra operação simbólica, desta vez, a introjeção, que dá nascimento ao supereu.
A incorporação, definida por Freud em 1921, como o primeiro modo de identificação ao pai, realizado como vontade de se apropriar completamente da figura do pai ideal qualificada de "extremamente viril". Um texto de Baudelaire evoca com sucesso esta vontade da criança de fazer passar nela o modelo (Vorbild) paterno: "Um de meus amigos, um dia, contava-me que, ainda pequeno, assistia à toilete de seu pai e contemplava, com estupor e delícia, os músculos de seus braços, as graduações de cores da pele nuançadas de rosa e amarelo e a rede azulada das veias. [...] Preciso dizer que esta criança é hoje um pintor célebre?" Na realidade, o sucesso desta operação (como a de todo processo de linguagem) é solidária de seu fracasso: a criança não pode incorporar completamente a imagem paterna, senão ela seria o pai e seria abolida enquanto sujeito. É esse o ponto de encontro da incorporação que vai engrenar um segundo modo de identificação pelo significante, quando a criança introjeta "um traço" do pai (einziger Zug), o que funda uma instância simbólica, distinta do ideal imaginário primitivo, que Freud chama de ideal de eu. E é nesse momento segundo que se constitui, de modo complementar, o supereu diabólico que é o "resto" caído sobre o sujeito, na passagem do primeiro ideal imaginário ao ideal de eu. Se o ideal de eu é o ponto virtual de onde o homem se olha com amor, o supereu é o lugar "real" de onde se olha com ódio: o olho obstinado em perseguir Caím no túmulo.
A esta operação metapsicológica de duas faces, a teoria analítica deu o nome de "recalcamento originário". É ela que a refeição totêmica figura de modo mítico, mostrando como a impossibilidade da incorporação completa do pai deixa um resto inassimilável que vai ter duas conseqüências. Ao manter a nostalgia do antigo-ideal, esse "resto" primeiro dá nascimento ao sentimento de culpa. Em seguida, tem por efeito suscitar no sujeito o mandamento persecutório do supereu, que é a expressão do "núcleo duro" do ódio voltado contra o próprio sujeito, ódio que a culpa vai por retroação reforçar constantemente, o processo se fecha quando esta instância, numa última volta, toma na cena da consciência a face do amor pelo próximo. Assim, o sentimento de culpa e o supereu andam de acordo, a partir de um certo momento, no sentido de uma exigência moral sempre maior do indivíduo e de um progresso da civilização realizado sob chefia de duas figuras míticas.
A revanche de Tanatos
A falta do estrangeiro-odiado que provoca a falta do canal para o exterior só pode ter como conseqüência o retorno do ódio para o interior da comunidade. O que é ilustrado, na cultura contemporânea, pela figura do "excluído": o estrangeiro entre nós, que inaugura um novo processo: a necessidade de excluir o excluído, mas para onde" se não há mais exterior? A globalização da cultura só poderia se realizar na recusa do princípio da diferença que está no fundamento da linguagem e da constituição do sujeito. A conclusão impõe-se que uma ligação completa, realizada em nome da pulsão de vida, quer dizer, uma operação de reunião que não deixasse nada fora de sua ação, teria por conseqüência paradoxal privar Eros de todo espaço de investimento libidinal, reconstituindo, na escala da humanidade a unidade primitiva de Real Ich [Eu real] e selando com o mesmo gesto o triunfo de Tanatos.
A globalização da cultura teria por efeito perverso que em nome do preceito "ama teu próximo como a ti mesmo" seria, de fato, abolida a interdição simbólica do incesto, referida à castração que está submetida à lei de exceção, assim como ensina o mito freudiano do pai primordial. Face às comunidades civilizadas, instituídas sobre a exclusão do "um" ao qual dão corpo os diversos sacrifícios culturalizados que perpetuam o assassinato primitivo, a "massa" (o todo-um, tanto quanto o um-todo) mostram a imagem de um grupo indiferenciado constituído no modelo das sociedades animais. A resposta feita em Molière por Don Juan ao pobre que pede caridade confirma sob sua máscara sublime a inumanidade implacável que implica toda referência à humanidade.
A resposta da caridade ordinária é dada em nome do narcisismo, quer dizer, em benefício do doador, seja que, com esse gesto, garante a sua salvação no outro mundo, ou que alivie, aqui e agora, seu próprio sofrimento ao aliviar o de seu semelhante em espelho. A conduta de Don Juan, ditada pelo "amor à humanidade" apresenta-se, de início, como uma vitória absoluta de Eros, já que é claro que o ganho da salvação é a última preocupação de um herói que, aliás, significa ao miserável que não há entre eles nenhuma relação de espelho concebível. O gesto de Don Juan é realizado fora de toda referência ao supereu, tanto quanto aos ideais culturais que constituem o precipitado imaginário do Ideal de eu. Sua verdade é revelada na constatação de que o dom, excluindo aqui o contra-dom, abole o destinatário enquanto sujeito. Assim, o amor estendido às dimensões da humanidade tem por caráter reduzir esta última à categoria de um gigantesco formigueiro indiferenciado onde a questão da escolha e da liberdade não se coloca.
O combate mítico eterno entre Eros e Tanatos
A exclusão do "patológico" expressa por Don Juan: "Dou-te em nome da humanidade." coloca à luz a inumanidade das morais que se referem a uma razão pura a qual prescreve que as contas, neste mundo, não devem depender daquele que as faz. A ética de Freud não é a de Kant: o universal do filósofo não é o da psicanálise que demonstra que as comunidades humanas se constituem ao se separar de um conjunto, fazendo escolhas, estabelecendo preferências. É em nome desse princípio que Freud recusa com violência as pretensões ao amor geral proclamado pelo mandamento cristão.
Assim, verifica-se a conclusão sombria que é desenhada ao longo do livro de Freud: o processo de generalização da cultura demonstrado pela história empreendida em nome de Eros não poderia senão marcar, se se verificasse, o triunfo final de Tanatos: se Eros se realiza ao seu termo, nesse termo, é Tanatos quem ganha, a beatitude do Nirvana sendo apenas a última figura da morte. Se a dialética entre Eros e Tanatos se desfaz, é sempre Tanatos quem leva, assim como demonstra o suicídio do masoquista do qual Freud nos diz que é realizado por Eros, mas vertido na conta de Tanatos.
Podemos esperar a recrudescência dos radicalismos neste mundo globalizado? Mas não podemos verificar em hipótese nenhuma a ausência de excluídos, excluídos há aos montes e é quanto a isso que nos preocupamos... A renda que deveria ser distribuída e circular se concentra cada vez mais.... Que formas temos de distribuir a renda que concentramos no nosso capital intelectual?
Lacan em O mito individual do neurótico, texto ao qual tive acesso numa sessão de supervisão com Alain Vanier, na École Expérimentale de Bonneuil, aqui em tradução minha bastante livre, coloca a morte como o quarto elemento na tríade edípica, "morte inconcebível aliás como elemento mediador. É a morte imaginada e imaginária que se introduz na dialética do drama edipiano, do que se trata na formação do neurótico e talvez até de uma atitude existencial do homem moderno", mais narcisista.
"O que nos faz compreender do que se trata nessa estrutura quaternária é a relação fundamental para todo desenvolvimento imaginário do ser humano, a relação narcísica ao semelhante enquanto ligada ao que se pode chamar da primeira experiência implícita de morte. Uma das experiências mais fundamentais, mais constitutivas para o sujeito é que esta alguma coisa estrangeira a si mesmo, em seu próprio interior, se chama Eu. O sujeito se vê de início no outro, mais avançado, mais perfeito que ele, e quando vê sua própria imagem no espelho, numa antecipação da sua totalidade, por uma dialética a dois, esta o rejeita a um plano de insuficiência, de uma profunda fenda, ferida original constitutiva de sua condição de homem. É através disso que ele se integra na dialética da vida, e é o que se manifesta em todas as relações imaginárias. Ele existe, positivamente, numa espécie de experiência de morte obrigatória constitutiva de todas as formas, manifestações da condição humana e que se mostra na conduta, na vivência, nos fantasmas do neurótico."
"No caso do neurótico é freqüente que o personagem do pai, por algum incidente na vida real seja um personagem desdobrado, quer seja porque o pai tenha morrido precocemente e um padrasto o tenha substituído, com o qual o sujeito está em relação mais fraterna, ou o personagem da mãe e uma madrasta, ou que a intervenção do irmão(ã) introduza de modo simbólico esta relação mortal e a encarne na história do sujeito de modo que lhe dê um suporte histórico bem real, para alcançar o quarto elemento mítico."
É neste desdobramento dos termos onde a morte, a sombra, o duplo aparecem de passagem para estimular a vida. E o jogo é fazer esse lugar circular, se deslocar daí para também se acreditar ganhador algumas vezes, senão sempre, a morte sendo o início de uma nova vida.
Mirian Magda Giannella
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BIBLIOGRAFIA
COURA, Rubens Psicofármacos e Psicanálise, Site dos Estados Gerais da Psicanálise - Fórum de São Paulo, http://www.oocities.org/HotSprings/Villa/3170/EG.htm
GIANNELLA, Mirian A Tradução e A Mulher, Boletim de Novidades da Livraria Pulsional, nº 107, março de 1998 e Seele, seele@matrix.com.br
LACAN, Jacques Le mythe individuel du névrosé ou Poésie et Verité dans la névrose, 1953.
REY-FLAUD, Henri Les Fondements Métapsychologiques de Malaise dans la culture. In: Autour du "Malaise dans la culture" de Freud, Jacques Le Rider, Michel Plon, Gérard Raulet, Henri Rey-Flaud, Paris: PUF, 1998, p. 34-49.
SILVA, Fernando de Barros e O século de Freud vem ao Brasil (Carta de Freud a Oskar Pfister de 1910, citada no livro, Freud, Pensador da Cultura de Renato Mezan), Folha Ilustrada, 4.9.1999.
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