A IMAGEM DA IMAGEM
Questões sobre as relações entre Psicanálise e Mídia

Nelson Ernesto Coelho Junior

XXVII CONGRESSO INTERAMERICANO DE PSICOLOGIA
Caracas - Venezuela , de 27 de junho a 2 de julho, 1999

Esta minha comunicação de hoje é fundamentalmente a apresentação de uma série de questões sobre um tema de difícil configuração. De início é preciso perguntar por que debater as relações entre mídia e psicanálise ? Há entre estes dois campos, por acaso, uma relação necessária, de mútua dependência, sem a qual nenhum dos campos sobreviveria? É evidente que não. Há, no entanto, uma realidade social em que se pode reconhecer um crescente interesse, presente há pelo menos duas décadas, dos meios de comunicação em incluir o pensamento psicanalítico entre as novas "tecnologias" usadas para interpretar e analisar fatos cotidianos e comportamentos de uma maneira geral. Estes comportamentos sujeitos a análise e interpretação podem ser mais ou menos extraordinários, incluindo desde o que faz com que adolescentes de classe média passem o fim de semana dentro de um shopping center às chocantes notícias de filhos que matam pais ou pais que matam filhos. É preciso registrar também que há, em algum nível, a preocupação da mídia em divulgar e ajudar a construir novas tentativas de padronizar, através desta "tecnologia", regras ou normas de comportamento que possam servir de referência em um contexto social caracterizado pela grande velocidade de transformação nas esferas éticas e morais.

Um outro aspecto relacionado a estes últimos e que merece destaque é a força de atração que a Psicanálise exerce sobre grande parte do público. Só posso concordar com o escritor argentino Ricardo Piglia, que em um texto publicado pelo jornal Folha de São Paulo afirma que a "psicanálise é um dos aspectos mais atraentes da cultura contemporânea, e isto porque todos nós queremos uma vida intensa. Gostamos de admitir que, em algum lugar de nossas vidas banais, experimentamos grandes dramas, que quisemos matar nossos pais e que, portanto, vivemos num universo de grande intensidade, em que conseguimos superar o tédio, a monotonia em que habitualmente estamos mergulhados."

Com tudo isso começa a surgir no âmbito da psicanálise a preocupação em conseguir escapar da armadilha que impõe de um lado a valorização e a defesa da necessidade da presença da psicanálise ( e por decorrência dos psicanalistas) na mídia, e por outro lado, a recusa intransigente e reprovadora com relação à presença da psicanálise na mídia. Os críticos desta presença argumentam sempre na linha das distorções de imagem e conteúdo realizadas pelos meios de comunicação. Para eles a psicanálise precisa ser preservada da vulgarização e indissociável superficialidade que caracteriza os produtos divulgados pela mídia. Os que defendem a presença da psicanálise nos meios de comunicação argumentam em defesa da divulgação de um conhecimento que pode beneficiar milhões de pessoas por um meio muito mais democrático do que os consultórios ou os livros, principalmente em um país com as características econômicas do Brasil. Há aqui, também, a já clássica discussão sobre a validade ou não da chamada "psicanálise aplicada", ou seja, o conhecimento psicanalítico sendo utilizado em outro contexto que não a prática clínica. No meio de todo este debate, cabe não esquecer, entretanto, que a psicanálise não se expressa por si mesma, mas sempre através de indivíduos, que podem ou não pertencer ou possuir cargos em instituições psicanalíticas reconhecidas. Ou seja, para além das especificidades do conhecimento psicanalítico, deste ser ou não compatível com as características atuais dos meios de comunicação, existe a situação, as contingências e os desejos de cada indivíduo que fala em nome da psicanálise.

Assim, acho que cabe neste momento um outro tipo de questão : como não se fascinar com os apelos da mídia? Há promessa de visibilidade (elemento sem dúvida fundamental para a constituição narcísica de nós humanos), e, quem sabe, a promessa de reconhecimento ( de um público amplo, mas não menos importante, reconhecimento entre seus próprios pares). Mas, não se pode esquecer, há também a oferta de que a presença na mídia terá como efeito a transmissão, para um público mais amplo, de idéias e informações que, em geral, estão restritas a um público muito menor. Neste sentido, é um ato de cidadania, louvável. Portanto, apelo fascinante, mas nem por isso razão para uma recusa imediata. Não basta se refugiar na postura cômoda de que a Psicanálise é uma ética e ética e mídia não combinam. Talvez a teoria psicanalítica também experimente eqüidistâncias via a vis uma ética maniqueísta.

Com isso, o próximo passo é perguntar a serviço de quem se estabelece esta relação entre mídia e psicanálise e, ao lado disso, quem usa quem ? O psicanalista se imagina usando a mídia para manter uma demanda "social" por seu tipo especial de conhecimento e de trabalho terapêutico ou é a mídia que usa a psicanálise e os psicanalistas como mais um campo de informação a ser diluído em seu caldeirão de signos, imagens e mensagens? Se o cenário for bem este último, sobra algum lugar para expressão de idéias, informação e reflexão?

Um dos problemas da presença de psicanalistas na mídia tem seu sido seu uso, assim como a presença de outros "especialistas" e intelectuais, na função de um técnico que teria respostas "inteligentes" para qualquer tema que apareça na pauta dos órgãos de imprensa. Nestas situações, os assim chamados discursos especializados aparecem diluídos entre vários outros, perdendo suas especificidades, e ficam, em geral, submetidos à editoração, às sínteses realizadas pelos jornalistas. Neste contexto, a Psicanálise, reduzida a mais uma tecnologia perde boa parte de seu potencial crítico e reflexivo.

A questão seguinte que precisa ser colocada sobre a relação proposta para a mesa redonda de hoje, a relação entre Mídia e Psicanálise, é : visa-se o benefício de quem com esta relação? O que pensa e o que visa um jornalista quando convida um psicanalista para escrever um texto ou para dar uma entrevista? O que pensa um psicanalista quando aceita este convite? (Coloco as coisas nestes termos porque não costuma acontecer o inverso, ou seja, um analista resolve escrever ou quer falar algo sobre qualquer assunto, apresenta esta proposta para algum órgão da mídia e seu pedido é prontamente aceito).

Durante uma certa época, havia na comunidade de psicanalistas uma clara resistência em aceitar os assim chamados "convites" da mídia. Os que aceitavam eram mal vistos. Duas oposições centrais norteavam este campo e os julgamentos realizados: aquela entre "Vaidade e Abstinência" e a outra entre "Charlatanismo e Seriedade". A década de sessenta no Brasil foi marcada pelo acirramento destas oposições e foi a década que viu aparecer novos personagens para a mídia, já que o comportamento humano privado ( e não mais só público), seus padrões e alternativas, passou a ser notícia. Das colunas sobre comportamento nas revistas femininas ( não necessariamente ocupadas por analistas, mas muito apoiadas, em seu conteúdo, em alguma forma de diluição das idéias da Psicanálise) ao programa "Jovem Urgente" comandado por Paulo Gaudêncio
( que na década de setenta ainda iria fazer na antiga T.V. Tupi uma simulação de grupo- terapêutico com atores no lugar de pacientes), o Brasil, algum tempo depois dos Estados Unidos, pôde assistir ao aparecimento deste novo personagem na mídia, o "analista de plantão".

Trata-se só de vaidade, de uma estratégia de marketing ou há alguma possibilidade de se transmitir informações que podem ser úteis a um grande público? Estou me referindo, evidentemente, à presença de analistas nos grandes órgãos de imprensa, que não visam um público em especial, mas pretendem atingir o maior público possível. Neste sentido, a presença de psicanalistas na mídia é só mais uma oferta de produto a ser consumido ou há alguma possibilidade do meio ser usado para outro fim?

Que eu me lembre, foi só no início da década de oitenta que a imprensa escrita, no Brasil, começou a se prestar a um outro tipo de relação com a Psicanálise: servir de veículo para denúncias. Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas (hoje já falecidos, sendo que o último, de analista virou deputado federal) então lutando contra o dogmatismo e o autoritarismo da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (havia um poder ditatorial exercido pelos analistas mais velhos, que ocupavam o cargo de didatas e, pior, esta Sociedade acolheu por alguns anos um médico que foi torturador durante o regime militar), conseguiram bom espaço na imprensa para denunciar a realidade desta Sociedade, as pressões que vinham sofrendo, e as punições das quais foram vítimas no interior da Sociedade Psicanalítica. Denúncia, informação e eventualmente alguma transmissão de conhecimento.

O sociólogo Gisálio Cerqueira Filho, organizador do livro Crise na Psicanálise, que documenta e analisa todos estes fatos, inicia sua apresentação introdutória do livro, da seguinte forma : "Parodiando a máxima famosa que nos diz ser a guerra assunto muito sério para ficar restrito aos militares, poderíamos sugerir que o mesmo se passa com a psicanálise, assunto muito sério para ficar exclusivamente reservado aos psicanalistas... De fato, o que queremos ressaltar é que a ciência fundada por Freud ultrapassou de muito os restritos limites dos estudos médico- psicológicos, incidindo em cheio na totalidade das ciências denominadas humanas. (...) Hoje a psicanálise está presente no quotidiano como algo que diz respeito à vida de todas as pessoas, e especialmente à de cada qual, em particular." Qual terá sido o papel da mídia na construção desta particular realidade, que faz da psicanálise uma paisagem indissociável do conjunto de experiências vividas no mundo contemporâneo? Este estudo ainda está para ser feito, mas é evidente que hoje em dia o peso da influência de uma determinada forma de pensar passa também por sua maior ou menor presença nos meios de comunicação. Quando em uma novela da Globo em horário nobre uma das personagens diz para a outra, " você está precisando de análise, vou te mandar falar com a Dra. Lidia Aratangy", a Psicanálise, e não só nossa colega, ganham uma visibilidade e um reconhecimento "oficial". Isto é um fato, gostemos ou não dele. E também não resta dúvida que a mídia contribuiu decisivamente para a queda gradual dos preconceitos com relação à psicanálise.

O PÚBLICO E O PRIVADO

Sabe-se, que já com Freud, a Psicanálise tinha saído de seu confinamento nos consultórios, para começar a ocupar seu lugar, de forma mais ampla, como um pensamento da cultura, sobre a cultura. Se o próprio Freud negava que a Psicanálise pudesse ser uma filosofia, ou uma Weltanschaung, ele mesmo "aplicou" as idéias psicanalíticas a outros fenômenos que não só a neurose de seus pacientes. E assim realizou artigos para revistas não especializadas, aceitou dar entrevistas e procurou discutir temas sociais e culturais. Mas a oposição entre uma Psicanálise "pura" ( a praticada nos consultórios, onde estão resguardadas todas as falas ) e outra "aplicada", e por isso não tão pura, sempre acompanhou o desenvolvimento da Psicanálise. Para entendermos melhor esta oposição entre "pura" e "aplicada" e a própria relação entre Mídia e Psicanálise, talvez seja útil analisar uma outra oposição, a que se constituiu entre as esferas públicas e privadas da subjetividade.

Uma das inevitáveis dualidades a que a Psicanálise está submetida é a que se constitui entre as polaridades do público e do privado. De certa forma a Psicanálise nasceu a partir desta tensão, característica da modernidade, entre o espaço público e o espaço privado. Sabe-se como a partir do século XVIII a valorização da privacidade criou, pouco a pouco, as condições necessárias para o surgimento da atividade terapêutica como a conhecemos hoje em dia. A experiência subjetiva de possuir um mundo privado, quando entra em crise, necessita uma terapêutica que a trate. Mas vale lembrar que a possibilidade de exteriorização "controlada" da privacidade não é uma situação que sempre existiu. Recortar no espaço público um espaço específico para a experiência privada, e mais, para tratar e cuidar deste plano da privacidade, é uma conquista ( se é que esta palavra é adequada) recente. Cria-se assim um contexto bastante inusitado de contato com aquilo que se quer que seja protegido do olhar público. Vale lembrar que as confissões privadas ou públicas do catolicismo e do protestantismo ocorrem no espaço do sagrado, do religioso.

Assim, a Psicanálise, inserida como atividade clínica em um espaço público, constrói sua especificidade no âmbito restrito de experiências privadas. A situação de análise pode ser vivida como um certo refúgio da realidade externa, dos confrontos cotidianos, um lugar seguro, de repouso, muitas vezes sentido como mais seguro que a própria casa. Os analistas tendem a "vender" este espaço como um lugar privilegiado, especial, reservado e protegido, um horário e um espaço onde o paciente é centro de todas as atenções. Não é casual a busca de uma certa semelhança com as situações infantis, onde em algum momento viveu-se a situação do reino de "sua majestade o bebê". Mas este espaço que pode ser imaginado como um pouco paradisíaco é compartilhado com um estranho. A pessoa que ocupa o lugar de analista é alguém de quem pouco se sabe. E isto é proposital. Espera-se que a projeção possa se dar sem limites. O paciente deve poder criar a imagem que precisar ou quiser da figura do(a) analista. E o que vem a ser esta imagem? Será que possui alguma correspondência com a imagem que o (a) analista tem de si mesmo?

A presença inevitável de elementos da chamada realidade externa, supostamente perturbariam o tranqüilo e desejado reinado da realidade psíquica no espaço clínico. Mas a realidade externa é ela também parte constituinte de todo campo de experiências que se desenvolvem no processo terapêutico. Ou será que a realidade externa só vem para perturbar? O que acontece, por exemplo, quando um paciente lê o nome do analista no jornal, ou vê a sua imagem em um programa de televisão? A figura transferencial torna-se, de repente, excessivamente real? Parece que em muitos casos é isto mesmo que acontece. Em alguns casos específicos, pacientes relatam uma sensação de invasão.

E por parte dos analistas, como é vivida esta experiência de ver sua imagem reproduzida pela mídia? Será que nós analistas, quando nos colocamos no polo oposto da vaidade ou do charlatanismo dos "gurus de televisão", que em seu extremo pode ser reconhecido como um polo fóbico, temos medo da mídia, de nossa "representação" na mídia, como se esta tecnologia de produção de imagens tivesse o efeito de roubar nossa alma?

O argumento é, muitas vezes, o de que a mídia distorce, retira palavras do contexto, edita e faz o que bem entende em nome de um texto de apelo jornalístico ou de uma imagem que acompanhe corretamente a pauta, a intenção de um programa televisivo. E isto de fato acontece. Mas existe, por outro lado, a possibilidade de uma representação fiel? Ou a imagem vai estar sempre "aquém" de nosso desejo narcísico? Qual o perigo da imagem? Qual o medo da imagem? A mídia constrói e destrói imagens? Em que nível? Com que conseqüências?

Não se trata aqui, evidentemente, de opor essência e aparência. Sabemos todos o que significa a valorização idealista de uma essência. O que precisa ser considerado é que a imagem, tornada pública, pode destoar dramaticamente da imagem que temos de nós. Do mesmo modo que é possível perceber um "abismo" entre a escuta da própria voz e a escuta desta mesma voz gravada, pode-se ficar muito desapontado (acreditando-se talvez que houve distorção da mídia) com um artigo que ao ser publicado perde todo o "brilho" imaginado. Quando não se trata de um abismo real, que efetivamente distancia expressão e publicação, de que abismo se trata? Que imagem é esta, que nunca é alcançada? Não é outra, se não aquela que nos lembra de nosso passado de "bebês majestade": o ideal do ego. Por definição, não alcançável, inigualável, impossível de ser reproduzido. A realidade estará sempre aquém. A imagem na mídia, portanto, também.

Mas vale lembrar que a imagem tem um poder transformador. Sabemos com a própria Psicanálise que um dos elementos determinantes para as mudanças nos processos terapêuticos está relacionado com a possibilidade de transformação de sensações e impulsos em imagens. Como afirma o psicanalista francês Serge Tisseron, em seu interessante livro, Y a-t-il un pilote dans l'image, "para começar a pensar o mundo ( e nós mesmos) deve-se estabelecer entre nós e o mundo uma tela de projeção. Esta tela é a imagem." Assim, fazer da imagem o lugar dos enganos, das ilusões e da alienação não é a única forma de pensar a imagem na teoria psicanalítica.

O que é preciso reconhecer é que a imagem é simultaneamente o espelho da realidade e da fantasia. Cada imagem é assim a construção de uma nova realidade, que já não pode ser a realidade pura e perfeita desejada no controle seguro de nosso psiquismo. A Psicanálise é uma prática e um saber voltados para a compreensão dos movimentos e conflitos cotidianos das imagens que construímos de nós mesmos, nenhuma delas imagem não é ilusão. Mas também não é causa de desilusões.

Assim, nem sempre, analistas na mídia precisam ser marqueteiros de si mesmos e da profissão, ou se acreditarem vítimas de uma distorção de imagem realizadas pela mídia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CERQUEIRA FILHO, Gisálio (ORG.) (1982) Crise da Psicanálise, Rio de Janeiro : Graal .
PIGLIA, Ricardo, (1998) "O melodrama do inconsciente", In: Folha de São Paulo, página 8, edição de 21 de junho de 1998.
TISSERON, Serge (1998) Y a-t-il un pilote dans l'image?, Paris: Aubier.

Nelson Ernesto Coelho Junior
Professor Doutor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo- Brasil
Alameda Lorena, 1360/86. Fax: (011) 288 8202.
E-Mail:
patnelco@uol.com.br
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