PSICANÁLISE, BRASIL E CRISE

Nelson Coelho Junior

Este texto procura apresentar um amplo panorama de crises, já crônicas, que marcam a passagem do Brasil e da Psicanálise do século XX para o século XXI. Não existe a intenção de realizar um levantamento exaustivo das "crises" nem de construir análises e soluções globais para essas crises. Mais do que respostas, o texto procura abrir questões que possibilitem novas reflexões sobre estados de crise, sobre as crises brasileiras e sobre as crises da Psicanálise. Por fim, pretende-se caracterizar o estado de "crise crônica" e articulá-lo à concepção psicanalitíca de benefício secundário da doença.

A CRISE BRASIL

Vivemos um tempo de crise em um mundo repleto de crises. Neste contexto, já há algum tempo, o Brasil é sinônimo de crise. Crise econômica, crise política, crise ética, crise de valores, crises... Brasil, que com mais de 160 milhões de habitantes é, segundo determinados índices econômicos, a oitava economia do mundo. Ao mesmo tempo é um dos países com a pior divisão de renda do planeta. Muitos com pouquíssimo e pouquíssimos com muito. Brasil das crises, Brasil que pode desabar.

Crises sempre muito fortes, evidentes, mas que parecem de alguma forma "controladas"; "controle" atento, para que o país não chegue a um colapso onde os poucos que têm muito venham a correr o risco de perder o que quer que seja. O "controle" das crises parece se confirmar quando vemos o Secretário norte- americano do Tesouro, Robert Rubin, declarar que "o Brasil é grande demais para que se possa permitir que desabe."( Cf. Maxwell, 1999, p.423). Brasil, país talvez fora de dimensão ( que pode assim ser melhor descrito do que pelo repetitivo "país de dimensões continentais"). País cronicamente em crise, mas grande e importante demais para que possa desabar. País marcado por mudanças sempre (mal) negociadas e não por rupturas. País com história e estórias, mas com pouca memória.

Mas, como sugeriu Maxwell (1999), "os brasileiros começam a reconhecer que para chegar no futuro é preciso compreender o passado." (p.423). País em que a população tem uma capacidade extrema de adaptação a uma realidade social e econômica sempre em crise e que, por sua vez, mais é destruída do que construída nos sucessivos processos de desgoverno e violência. Mais do que a população de outros países, nós brasileiros desenvolvemos essa infinita capacidade de adaptação. Se não tivéssemos essa capacidade tão acentuada ou morreríamos todos nas constantes e sucessivas crises ou nos ocuparíamos decididamente de grandes movimentos de luta para mudar a realidade e assim sobreviver. Mas o Brasil é também o país das promessas, nos dois sentidos. País esperança e país de grande credulidade.

País em que o povo acredita em promessas e toma como ídolos aqueles que de alguma forma conseguem ser a realização de promessas. Vivendo de sucessos esporádicos no esporte, como os sucessos do futebol, de Ayrton Senna, do vôlei ou de Gustavo Kuerten no tênis, acreditamos que podemos ser mais do que um país promessa. Vez ou outra a música ou o cinema também conseguem ser um pouco mais do que promessas, em um mundo onde o sucesso é medido a cada minuto e já se tornou lema de instituições, de equipes esportivas e até de países que "o segundo lugar é apenas o campeão dos perdedores!". Mas essas poucas promessas realizadas não foram e não são o suficiente para tirar o país do estado de crise crônica. Para muitos tem restado a fé como forma de saída para a crise. Em recente reportagem, a revista semanal "Época" apresentava a lista dos "Santos da Crise": Santa Edwiges ( "ajuda aos endividados, é a santa de quem está vermelho no banco."); Santo Expedito ("ajuda às pessoas com problemas urgentes".); São Judas Tadeu ( "ajuda aos cidadãos com problemas de difícil solução e é o padroeiro das causas perdidas e dos funcionários públicos."); São José ( "ajuda aos desempregados e aos operários e auxilia também nos problemas domésticos.");Santa Rita de Cássia ( "ajuda aos desesperados e às pessoas em causas impossíveis.").

Chego a pensar: é só no Brasil! É claro que não é só no Brasil, mas o Brasil reclama por essa "fé de resultados" de maneira muito evidente. A somatória híbrida de um grande potencial de credulidade e fé e da necessidade imediata de soluções para problemas do cotidiano ( em geral nada espirituais ) tem caracterizado uma forma muito particular de subjetivação em nosso país. Psicanalistas podem partir das análises de Freud em O Futuro de uma Ilusão, mas precisam agregar ao seu arsenal de análise elementos particulares desse modo brasileiro de subjetivação. Não se trata de regionalizar a Psicanálise, mas sim de valorizar elementos que devem alimentar as inovações que toda forma de teorização precisa para não se transformar em letra morta. Para continuar com o mesmo exemplo, que retrata uma forma muito específica de enfrentar crises, gostaria de retornar aos nossos santos das crises e à nossa fé de resultados.

Apresentando o apelo crescente por Santo Expedito na população brasileira, a jornalista Débora Crivellaro, da revista Época, arrisca algumas explicações: "...a especialidade do santo casou-se perfeitamente com a famosa mania brasileira de deixar tudo para a última hora. Expedito, conhecido como o santo das causas urgentes, resolve rápido, é eficiente, zás-trás." E ainda mais: "...é especialista em problemas financeiros, questão que tira o sono de nove entre dez brasileiros. Sua explosão é ainda mais espantosa porque Expedito não tem apoio do aparelho institucional católico. Não há festas oficiais em seu louvor nem procissões incluídas no calendário da Igreja." (p.46) Assim, enfrentar crises ou se adaptar às crises encontra, aqui no Brasil de 1999, a companhia de santos invocados para resolver crises. Por um lado não há nada de novo nisso, por outro é exatamente essa repetição, no fim de um século onde a "globalização tecnologizada" parece predominar, que causa perplexidade. A simultaneidade da pressa em resolver e da tradicional credulidade do povo brasileiro ( a "fé de resultados" ) constitui uma marca importante da forma de subjetivação contemporânea no Brasil.

Os enormes desafios de mudança que o país precisa enfrentar fazem com que seja importante nos colocarmos a pergunta: o Brasil vai conseguir "passar" de século ( como um aluno passa de ano)? E se conseguir passar, como nós brasileiros vamos enfrentar e transformar esta "tradição" de crises? Ao lado destas questões ainda mais uma: qual será o lugar da Psicanálise no Brasil no século XXI?

A CRISE PSICANÁLISE

Também não é de hoje que ouvimos que a nossa área de trabalho e de conhecimento, a Psicanálise, passa por uma grande crise: faltam pacientes, falta perspectiva, falta formação qualificada, falta criatividade, falta ética, falta dinheiro, falta... A Psicanálise vai "passar" de século? Como será que a Psicanálise vai entrar no século XXI? De que forma e com que armas a Psicanálise se prepara para enfrentar o acirramento de determinadas crises "internas" e as rupturas nas relações e no tecido social que têm caracterizado realidades como a brasileira?

Cem anos após a publicação do livro fundamental da Psicanálise, A Interpretação dos Sonhos, há os que comemoram o sucesso de um dos maiores empreendimentos intelectuais da cultura ocidental, mas há também os que pretendem comemorar a morte de uma teoria e de uma prática terapêutica. Entre os que comemoram o sucesso mas procuram argumentar contra a suposta morte, mereceu destaque recentemente na revista semanal de maior circulação no Brasil um pequeno artigo de Renato Mezan, que termina com as seguintes frases: "Longe de ser uma velha senhora, caquética, enrugada e delirante sobre os seus supostos atrativos, a psicanálise se mostra como aquilo que desde A Interpretação dos Sonhos Freud deseja: um modo de conhecimento e de autoconhecimento, com seus limites, mas também com uma vitalidade que desmente os prognósticos sombrios acerca de seu iminente falecimento."

O questionamento sobre o futuro da Psicanálise acompanha o balanço de seus cem anos de existência. Em outubro de 1998, Patrick Froté publicou na França uma série de entrevistas que ele realizou com psicanalistas franceses como André Green, Jean Laplanche, Joyce Mcdougall, J.B. Pontalis e Daniel Widlöcher. As primeiras questões colocadas para todos psicanalistas foram: "Sobre o estado de saúde da Psicanálise hoje e A Psicanálise é mortal?", seguida de "Cem anos de história: sobre alguns elementos marcantes da evolução da Psicanálise". (pp.25/26) Como é de se esperar as respostas apontam, ainda que de forma ambígua, para a crescente vitalidade da Psicanálise, passados cem anos de sua "inauguração".

Outras questões/temas como "Psicanálise, neurociências, ciências cognitivas" e "Sobre o papel do psicanalista em alguns fenômenos da sociedade" permitiram respostas que procuraram situar a Psicanálise diante da série de desafios exigidos por um novo século marcado pela possibilidade de diferentes modos de subjetivação e de convivência entre diferentes áreas do saber. No entanto, mais do que recensear cem anos de Psicanálise, parece- me fundamental pensar como enfrentar as crises atuais, crises como a que se vislumbra a partir do avanço avassalador das novas tecnologias de comunicação que constróem a assim chamada realidade virtual. Silvia Bleichmar (1998), em texto publicado no último número desta revista, apontava com razão que "não é de desdenhar o lugar que as novas tecnologias terão na produção da subjetividade nos próximos anos(...) [são] novos modos de aproximação da realidade."(p.13) Como é que a Psicanálise se coloca diante destas transformações? As crises nos modos de subjetividade atuais em função das grandes mudanças nas formas de relação e de contato com o outro poderão ser incluídas no arsenal teórico e técnico da Psicanálise? Bleichmar reafirma que uma das descobertas centrais da Psicanálise é a que aponta para o aspecto não adaptativo apreendido por Freud na experiência humana: "... o caráter não adaptativo e profundamente disfuncional da sexualidade humana."(p.18)

Será que a Psicanálise continuará podendo manter a radicalidade desta descoberta no "novo" mundo das relações sexuais virtuais pela Internet? Não sei se basta afirmar com ar triunfante que toda relação sexual é virtual, do ponto de vista da Psicanálise. Penso que devemos estar atentos às novas formações do inconsciente passíveis de ser estabelecidas a partir destas novas formas "tecnológicas" de relação. Neste sentido, a Psicanálise no Brasil parece enfrentar um duplo desafio para o século XXI: apesar da avançada globalização, continuamos enfrentando crises de um mundo pré-globalizado ao lado das crises provocadas pela globalização acelerada. Transições e tensões nos modos de subjetivação e nas formas de enfrentamento das crises.

Elisabeth Roudinesco disse mais de uma vez ( por exemplo em debate realizado na Livraria Cultura, em São Paulo no dia 22 de Abril de 1999), que o futuro da Psicanálise está nos países da América Latina, em particular no Brasil. Entre outras razões ela destacou a maneira como as instituições psicanalíticas se abrem, no Brasil, de forma não preconceituosa para as relações com outras instituições culturais e de formação como as universidades, por exemplo. Lembro também das razões que um analista inglês, que esteve no Brasil em meados da década de oitenta, apontou para o sucesso da Psicanálise em cidades brasileiras como São Paulo e Rio de Janeiro.

Ele afirmava que a grande procura nestas cidades pelo tratamento psicanalítico se devia ao fato de serem cidades que concentravam um grande número de pessoas que viviam crises resultantes da perda de identidade social em função de transformações econômicas muito abruptas. Transformações que muitas vezes, em uma só geração, fazem do filho de um casal de analfabetos um professor titular de universidade ou um mega- empresário. Ou seja, crises psíquicas determinadas por avanços sociais. Hoje em dia assistimos também a crises psíquicas provocadas pela razão inversa, ou seja, pelo desabamento social e econômico de muitas famílias. Será que a Psicanálise irá atravessar as suas crises "internas" através de sua capacidade de possibilitar resposta para as crises psíquicas vividas em função das sucessivas crises sociais e econômicas? Ou esta forma de conceber a situação da Psicanálise no Brasil é uma forma de não querer enxergar que também no Brasil a Psicanálise enfrenta uma séria crise, com o risco de não "passar" de século nem como prática profissional nem como teoria?

CRISES CRÔNICAS

Entendo que a soma de crises tem nos colocado em um cenário de desesperança e descrença em que a atividade de reflexão parece condenada a diariamente restringir-se ao trabalho de "apagar incêndios" ao invés de realizar novas construções. Em momentos de maior tensão predomina o desamparo geral, que se traduz pela sensação simultânea de "derretimento" de um país e de inúmeros sonhos individuais. Vive-se o horror da miséria econômica, como também da miséria de soluções efetivas, fazendo com que uma certa força de estagnação marque a tonalidade básica das experiências cotidianas.

É claro que muitas das causas da crise brasileira e da crise da Psicanálise no Brasil são as mesmas. De teorizações paranóicas à explicações convincentes ficamos sempre com a sensação de que somos ( ou fomos) uma promessa que nunca chega a se realizar. Com isso, tende a proliferar um certo discurso catastrofista, um negativismo coletivo e contagiante: estamos agora todos juntos na mesma desgraça, que de resto seria a situação ou a condição normal da vida humana.

Para além do empenho coletivo pela construção de um país mais justo, onde educação e saúde se tornem realidade básica, de que forma nós psicanalistas podemos "escutar" estas situações sociais/econômicas/psíquicas de crise? Trata-se apenas de conseguir manter uma postura afirmativa diante do derrotismo geral ou é necessária uma compreensão dos fenômenos de crise de uma forma mais ampla, que envolva em alguma medida uma outra visão das relações entre realidade externa compartilhada e realidade psíquica?

Sabemos que uma crise se caracteriza como uma manifestação violenta de ruptura de equilíbrio, por um estado de dúvida e de incerteza, por tensão, conflito, deficiência, falta, penúria e que, em termos econômicos, marca o ponto de transição entre uma época de prosperidade e outra de depressão, ou vice-versa. Definições como estas podem ser encontradas em qualquer dicionário ( no caso foram tiradas do Novo Aurélio) no verbete crise, em suas várias acepções.

Uma crise, que por definição, deveria ser um estado passageiro, um momento, ganha características particulares quando se transforma em uma crise crônica. Este tem sido o caso do Brasil e, em certa medida, da Psicanálise. Crises crônicas são estados de tensão, conflito, falta, incerteza e penúria que não se resolvem. Geram paralisia crônica, um estado continuado de desesperança. Grande parte dos investimentos de um país ou de um indivíduo em estado de crise crônica acabam sendo dirigidos para a manutenção da própria crise, que a estas alturas já se tornou paisagem familiar e às vezes até conveniente, justificativa para uma série de dificuldades não necessariamente vinculadas à crise.

Nestes estados, a crise se torna uma segunda natureza, estabilizada e parte integrante de uma nova "identidade", gerando inclusive o que na Psicanálise chamamos de benefícios primários e secundários de uma doença. A aproximação com a Psicanálise aqui não é casual, já que a compreensão freudiana sobre o lugar ocupado pela utilização e pelas vantagens retiradas da doença nos quadros neuróticos se aproxima em grande medida do estado geral de crises crônicas. Por benefício da doença Freud compreendia qualquer satisfação direta ou indireta que um indivíduo retira de sua doença. Benefícios primários são aqueles que entram na constituição da própria neurose e envolvem a fuga para a doença em função dos conflitos surgidos entre as forças pulsionais e os impedimentos impostos pela realidade. Benefícios secundários, por sua vez, têm como marca as vantagens suplementares ou a própria utilização pelo indivíduo de um quadro neurótico já constituído.

As vantagens suplementares e a utilização de uma crise, por um país, por uma categoria profissional ou por um indivíduo tornam todas as tentativas de mudança muito mais difíceis e, muitas vezes, improváveis. A estratégia de mudança que costuma trazer mais resistências é a que procura retirar ou impedir as vantagens suplementares e a utilização de uma situação já constituída, que se tornou familiar e praticamente "necessária" à sobrevivência. Assim, reconhecemos constantemente pacientes que se "alimentam" de suas próprias crises, e indivíduos de grupos em instituições e países que também parecem encontrar mais "satisfação" nas crises do que na superação das crises.

Acredito que a não consideração da distinção entre benefícios primários e secundários esteja na base da diferença entre a conceituação psicanalítica dos sintomas e, por exemplo, a que se encontraria em uma formulação funcionalista ou positivista que só enfocasse as vantagens que ele pode trazer, uma vez estruturado. O exemplo que Freud apresenta para ilustrar a idéia de lucro ou benefício secundário de uma doença é bem claro e corriqueiro:

Uma mulher que é mal tratada e explorada pelo marido encontrará facilmente o caminho de uma neurose, caso sua constituição assim permita, se ela for muito covarde ou muito moralista para buscar secretamente o consolo com outro homem, se ela não for forte o suficiente para se separar de seu marido em função dos embaraços externos, se ela não for capaz de se sustentar ou de obter um marido melhor e se em acréscimo ainda estiver ligada a este brutal marido por seus sentimentos sexuais. Sua doença torna-se então uma arma em sua batalha contra o marido dominador, uma arma que ela pode usar para sua defesa e também utilizar de forma prejudicial para vingança. Queixar-se de sua doença é permitido, enquanto lamentar seu casamento provavelmente não era. Ela encontra no médico um precioso ajudante e assim pode forçar seu marido, que em geral não lhe dava nenhuma confiança, a cuidar dela, a gastar dinheiro com ela, a autorizá-la a ficar fora de casa por algum tempo e assim se livrar da opressão do marido. Quando um benefício externo e acidental como esse obtido com uma doença é de fato considerável e nenhum outro substituto para ele está disponível, devemos reconhecer que são poucas as chances de transformar a neurose através do tratamento.

A diferença entre benefícios primários e secundários marca profundamente a condução da cura. E acho que, em se tratando dos problemas do Brasil, um raciocínio análogo deveria nos guiar na interpretação das causas da crise e da busca de soluções. É preciso não confundir os benefícios de uma crise com a causa das crises e assim nos contentarmos em analisar o apego a estes benefícios como se fossem a própria origem de uma crise. Não conseguir solucionar crises porque elas se tornaram crônicas não pode ser traduzido por "a causa da crise é a sua cronicidade", ou seja, o apego aos benefícios garantidos pelas crises.

De qualquer forma, ainda resta marcar que crises podem gerar mudanças e podem ser, em alguns casos, o único meio para se colocar em movimento processos de transformação.

Assim, de uma crise crônica e estagnada precisamos caminhar em direção a crises que possibilitem transformações. Esta passagem talvez dependa fundamentalmente de um diferente foco interpretativo que nos autorize a mexer nos vínculos habituais que nos ligam às crises crônicas, tornando-as muitas vezes "necessárias" à sobrevivência. É preciso lembrar que a dor e o sofrimento presentes em toda crise são sempre maiores que os benefícios suplementares que esta pode gerar. E que a estagnação dos processos de investimento implicada nas crises crônicas impede fortemente a liberação de recursos para processos criativos de transformação. Neste ponto cabe retomar outro exemplo proposto por Freud (1916-1917), em uma inspirada ilustração apresentada na conferência XXIV das Conferências de Introdução à Psicanálise:

Um árabe, montado em seu camelo, passava por um estreito caminho existente em uma montanha íngreme. Em uma curva do caminho viu-se, de repente, diante de um leão preparado para o bote. O árabe não viu saída: de um lado a parede de pedra da montanha, de outro o abismo; era impossível recuar ou fugir. Acreditou-se completamente perdido. Mas o camelo pensava diferente. Com um salto pulou com seu ginete no abismo e o leão ficou 'a ver navios'. A ajuda prestada ao enfermo pela neurose é do mesmo tipo. Possivelmente, porque lidar com um conflito através da formação de sintomas é um processo automático, estimulado pela inferioridade do indivíduo diante das exigências da vida e através da qual renuncia à utilização de suas melhores e mais elevadas forças. No entanto, se houvesse escolha, seria preferível a derrota após uma batalha honrada com o destino.

A neurose é a solução possível. Os benefícios secundários conseguidos com a neurose acabam por ser uma forma de recompensa. Aparentemente a neurose se instala, assim como as crises, porque não houve alternativa. Resta saber se não há alternativa depois. Ou seja, se só nos resta aproveitar os "estranhos benefícios" possibilitados pelas neuroses ou pelas crises, ou se é possível transformar crises crônicas em crises produtivas e transformadoras.

Mas, evidentemente, não estamos aqui diante de crença ou descrença em supostas verdades teóricas e muito menos apenas no plano de compreensões lógicas de um determinado processo que pudessem, em si, garantir mudanças significativas. A mudança de foco interpretativo depende de transformações estruturais. E aqui entendo mais uma vez que é possível fazer equivaler processos subjetivos a processos sociais. Transformações estruturais são aquelas que visam para além dos sintomas, ou dos aspectos mais superficiais de uma crise. Ou, em termos psicanalíticos, estamos diante do fato de que pouco adianta a compreensão consciente se não for acompanhada de mudanças que envolvam também as forças pulsionais e os processos inconscientes.

Transformações estruturais que precisariam ocorrer no próprio modo pelo qual se organizam as relações entre os indivíduos na sociedade brasileira. Mas devo ressaltar que não é meu objetivo apresentar uma análise de quais são as transformações necessárias; até porque não se trata de uma tarefa circunscrita aos limites internos do campo de conhecimento psicanalítico. É evidente que uma questão desta dimensão e teor convoca inúmeras outras áreas do conhecimento, como, entre outras, a história e as ciências sociais. Apenas não gostaria que a Psicanálise deixasse de trazer a sua contribuição para a questão ou que tivesse que ficar à margem da discussão deste problema.

Nelson Coelho Junior é psicanalista e professor doutor do
Instituto de Psicologia da USP; Doutor em Psicologia
Clínica (PUC-SP) e autor de
A Força da
Realidade na Clínica Freudiana
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