A TRANSGRESSÃO VELADA DO "SUBLIME"
Rachel Sztajnberg
Membro Titular e Supervisora da SPCRJ
em 07.06.99
SINÓPSE: Podemos pensar o processo sublimatório como uma solução de compromisso que, dobrando-se aos interesses da cultura,ao mesmo tempo desafia e se rebela contra seus pilares fundamentais - o incesto, a preservação da espécie? Se assim não fosse, se não representassem mesmo, qualquer ameaça "infernal" por que as produções artísticas ,científicas ou ideológicas estariam freqüentemente acossadas pela censura? A libido encontra-se realmente despojada do sexual e do agressivo na sublimação ou ela é apenas uma vicissitude pulsional diversa, ainda mais sofisticada e engenhosa que a formação de sintomas que regem a histeria , a neurose obsessiva, a fobia ou a compulsão das perversões?
Resumo : O sublime , cujo valor maior se sustenta na exigencia de trabalho imposto pela mobilidade pulsional, também carreia conteúdos virulentos pouco compatíveis com a nobreza de sua nomeação . A cultura instala um sistema de compromissos para libera-lo.
PALAVRAS-CHAVE: Sublimação, desamparo, pulsão, agressivo, sexual, inércia, exigência de trabalho, representação.
Abstract : Sublimation, the major value of which consists of the demand of work imposed by the pulsional mobility, also brings up vicious contents not exactly matched with the nobility of its nomination. Culture establishes a system of compromises to liberate its manifestations. Libido may not be so deprived then, of the sexual and the agressive; it just takes another destiny, a more sophisticaded and ingenious one than the symptom formations and the compulsions.
A TRANSGRESSÃO VELADA DO "SUBLIME"
"Sou profundamente
melancólico. Se não fosse a literatura, já teria metido uma
bala na cabeça."
( Carlos Heitor Cony)
Poucos conceitos no corpo teórico da Psicanálise aliam a imprecisão teórica de sua formulação à sua importância crucial enquanto instrumento clínico como o da sublimação. Sua elaboração sistemática, se houve, perdeu-se, deixando-nos apenas com as referências de passagem, como apontou Joel Birman, existindo tão somente como um ponto de apoio para outras formulações, tais como sexualidade, ego, pulsão, civilização e outros. Mais precisamente, a marca fundamental do conceito indica um contraponto, uma oposição a um outro conceito, justamente o da sexualidade. Sustentado num princípio químico, o conceito valoriza a transformação e a elevação das moções pulsionais pre-genitais que culminariam numa realização não sexual compatível com os ideais impostos pela cultura vigente.
Sempre reconhecemos então o processo de sublimação como a mais bem sucedida defesa do eu contra a emergência abrupta do sexual, como aproveitamento do excesso pulsional que, escoado por essa via, tempera e atenua a intensidade dessas forças. Sua expressão positiva e socializada foi sempre enaltecida por ser uma alternativa ao recalque do sexual. A pulsão mudaria apenas seu alvo sem que se perdesse sua intensidade e mantendo ainda inalterado seu objeto. Em "Sobre o Narcisismo : Uma Introdução", Freud valoriza a sublimação em relação a outro conceito, o da idealização, este sim, intervindo diretamente sobre os objetos e favorecendo as fixações. Já na sublimação, a libido se voltaria para o eu possibilitando a mobilidade de energia. Mais do que tudo é nesta mobilidade que a sublimação leva vantagem sobre o recalque e a compulsão. Nos dois casos, tanto na neurose quanto na perversão, detectamos a fixação da pulsão parcial no circuito primário da satisfação. Sendo uma o negativo da outra, a neurose mantendo em estado latente o que se expressaria positivamente em atos nas perversões. Sabemos que o que se fixa determina a repetição, cuja conseqüência inevitável é o empobrecimento da vitalidade psíquica, o aprisionamento do sujeito num circuito pulsional viciado. As cenas fantasmáticas se perpetuam ad nauseam tamanha a dependência do objeto primário de satisfação. Uma aderência que não desdobra, não diversifica os circuitos, onde não há deslizamento nem circulação.
É disso que escapa a saída sublimatória, da monotonia a que a fixidez dos sintomas neuróticos e dos atos compulsivos condenam. O que podemos pensar a partir daí é uma oposição entre a inércia (fixação) do sintoma (neurose) e da compulsão (perversão) e a exigência de trabalho que o processo da sublimação opera.
Se considerarmos a neurose como um "excesso" de recalque e a perversão enquanto sua "escassez" teremos que admitir que de uma maneira ou de outra é a força e a intensidade das moções pulsionais que está em jogo. Não nos surpreende mais que a assimetria estrutural, esse gap entre a força pulsional e a sua não-ligação automática com o campo das representações determina a emergência do desamparo. Quando é possível, o aparato psíquico tira proveito dessa força, dessa intensidade e a angústia gerada por esse excesso ganha um estatuto positivo. Por não ser expulso, negado ou abafado, quando pode ser sustentado, se constitui como matéria prima, um sólido a ser trabalhado, lapidado, cuja fluência se assemelha aos caquinhos de um mosaico em moto contínuo construindo diferentes figuras. Como num caleidoscópio, onde a mobilidade gera múltiplos desenhos, o trabalho de elaboração produz efeitos diversos, ao passo que a descarga é pura repetição, desemboca sempre no mesmo lugar, no mesmo padrão, já que fracassa sempre na sua tentativa de inscrição no psiquismo.
Enfatizamos acima que esse percurso da trajetória pulsional se dá quando é possível e o dissemos, sendo importante ressaltá-lo, porque justamente não se trata de uma conquista definitiva, ou seja, ora é, ora não é. Ora dá conta, ora não dá. As moções pulsionais ora se fixam, ora fluem. A provisoriedade gerando um alívio apenas temporário das tensões.
Talvez não estejamos aptos ainda para alcançar o que todavia permanece enigmático nessa transformação do que é sólido e "material" para o sujeito inserido originalmente no registro sexual e reportado ao corpo para que ascenda a essa dimensão desencarnada, dissolvida numa substância evanescente do espírito. Não será ainda um mistério o que esse "vapor" guardou residualmente do que compunha o bruto do qual se originou? Até que ponto nos deixamos enganar por essa terminologia tomada de empréstimo da química e também do campo da estética e deslumbramo-nos tanto com a referência metapsicológica desse destino pulsional mais elevado que deixamos de considerar que essa via também carreia conteúdos "explosivos" e virulentos, também dissemina a peste? Ainda que formulados num registro não sintomático, não há como garantir que esses conteúdos não tenham o poder de produzir efeitos que ameaçam o retorno ao sólido no próprio sujeito e na desarticulação do sistema civilizatório que defende o instituído. Só por aí podemos talvez compreender como um autor de obras primas literárias derivadas de uma elaboração sofisticada, muitas vezes até autobiográficas, catárticas, não pode evitar em outro momento o suicídio, a erupção inflamada de uma intensidade livre, leve, solta que não encontra outro canal de escoamento que não a passagem ao ato. Ou de alguém que um dia pinta telas magistrais, preciosas quanto à sua harmonia e integração, cuidadosamente elaboradas e, em outro, corta a orelha como um efeito radical da violenta e inadiável pressão de descarga,a mutilação no lugar do corte estruturante, a falência da castração sobrepujada pela desruptiva emergência do traumático.
Para além do subjetivo, se o sublimado fosse mesmo assim tão purificado, tão "celestial" como se explicaria a resistência feroz que lhe oferece a cultura quando lança mão de seus recursos repressores para condenar e proibir radicalmente a difusão de produções artísticas, científicas ou ideológicas? Que ameaça diabólica representa afinal o que é veiculado como da ordem do elevado? O que está afinal contido no sublime e o que é que ele pode provocar que determina a urgência de atos como o da censura institucionalizada que freiam a sua livre manifestação?
Se não é tão sublime, tão perfeito, o grande valor a ser reconhecido no processo sublimatório talvez não seja exatamente o seu despojamento do sexual e do agressivo. Mais relevante do que a decantada dessexualização é o que impulsiona para a simbolização, extraindo do vazio a possibilidade de invenção de um objeto dotado de forma, sentido, cor, nome. A diversidade então floresce em um universo polifacetado de representações intermináveis : o barulho agora é melodia; a luz imagem, a sensação discurso. É o advento de um Outro e outros tantos, de uma alteridade que pressupõe a falta. Essa, então, pode ser investida, posta em questão, e como tal, vai requerer um trabalho constante de luto sobre as idealizações ilusórias do existir sem tensão. O desamparo ganha aqui uma dimensão positiva e produtiva. Como elemento estrutural, constitutivo da subjetividade, o desamparo não pode nunca ser superado, e quando pode ser confrontado, o deslocamento do referencial fálico do TODO, do UM propicia a experiência da feminilidade. Da própria dor da desfalicização emerge uma outra dimensão erótica, menos absoluta e, portanto, mais singular, mais errática, incerta, mas seguramente mais pessoal. O que ela inclui de mais dor por conter menos ilusão acarreta mais busca, mais movimento, mais trabalho. Com isso, a criatividade e o estilo se impõem. E a existência se torna menos bruta e mais heterogênea.
É evidente que esse movimento vai de encontro aos ideais controlados pela cultura ainda que paradoxalmente ela até o estimule. Ambiguamente, o processo civilizatório investe o conhecimento, estimula o saber, mesmo que ele seja derivado da curiosidade sexual que ela quer administrar de acordo com os seus interesses. Ainda que o conhecimento arrisque revelar os artifícios perversos que a cultura dissemina para iludir e manter a cegueira e o embotamento que perpetua a submissão.
A pressão dessas forças conflitantes é geradora de tensão constante e o movimento pendular ora privilegia o instituído, a servidão ao Mesmo, ora consegue avançar e gerar variáveis mutativas, a inserção do mais um antes de retornar aos pontos de fixação. Um acordo delicado, uma questão de vida e morte que equilibra singularidade, coletivo, preservação e movimento.
A riqueza maior da sublimação, então, talvez não esteja na sua possibilidade de superar o sexual, mas na sutileza do recurso que lhe permite driblar a violência do supereu e das exigências civilizatórias utilizando-se da própria lei para poder ultrapassá-la. A sublimação parece ser, em si, uma criação que brota do atrito entre a insistência da pulsão e da inflexibilidade da lei. O desejo ,então, interditado pela realidade, pode ser realizado no mundo fantasmático onde todos os anseios da primitiva onipotência humana continuam vigorando com a mesma intensidade. Ou não é assim em Lolita, onde Nabokov "consuma" no papel o incesto que a cultura sumariamente veta? Não admira então que na Rússia ele foi por vários anos terminantemente proibido de ser publicado. E o que está representado no Jardim das Delícias, de Bosch, de quase 500 anos, que não o escancaramento despudorado das pulsões parciais? De Tom & Jerry a Schwarzenegger o que se transgride com tanto sucesso de bilheteria nesse frágil limiar entre resignação e revolta no que concerne aos preceitos legais que garantem a manutenção do processo civilizatório?
Não será sábia a cultura quando permite esses escoamentos "benignos" da via sublimatória justo porque não desconhece os efeitos desastrosos do excesso de submissão? Quanto pode o eu suportar do gozo sádico da lei quando esta exorbita de sua função reguladora do desejo e bloqueia a necessária zona do aparelho psíquico livre do princípio de realidade?
O sujeito necessita do que nele é indomesticável para sempre, é o que lhe permite mutação, criação (é o que o livra de morrer em vida), da mesma maneira que precisa da dominação de seus impulsos para aceder à subjetivação. Ora lá, ora cá, numa posição ou noutra, mas pulsando sempre nessa tensão, angustiante nem demais nem de menos, o suficiente para produzir efeitos, desdobramentos derivados da maior captação possível de energia que possa inscrever no simbólico, no aparato psíquico o que tende a se derramar fora dele. Quanto mais elaboração, menos descarga. Quanto mais ordem, menos dispersão. Mas sem que uma exclua a outra, ambas concorrentes, o sujeito advindo no limite de uma e de outra.
Se está nesse balanço a riqueza da sublimação com o que ela pode incluir do rebelde, do demoníaco, cabe ressaltar, contudo, que freqüentemente um outro recurso caricatura o processo sublimatório e insidiosamente se faz passar por ele, travestindo de criativo o que constitui na verdade uma compulsão , atendendo aos interesses de um supereu rígido, implacável e que impõe uma atitude muito mais sintomática do que elaborativa .O que fica mascarado nesses casos é o movimento de oposição a um desejo recalcado e transformado em seu contrário, já que não foi possível sustentar o conflito em outras bases. Assim, as moções pulsionais que foram interpretadas como baixezas são forçadas a se "elevarem " a níveis reconhecidos como nobres. Uma marca diferencial significativa consiste no montante de sofrimento que a formação reativa engendra ao pressionar a exclusão do campo da consciência da representação condenada, promovendo uma inevitável fixação e acúmulo do que não ganha qualquer via de expressão e de escoamento. Nesse sentido uma defesa perniciosa e arriscada, e que por isso mesmo demanda do analista no exercício de seu ofício uma acurada atenção.
A experiência analítica como a experiência criativa também está referida essencialmente à sublimação, também se trata de uma experiência - limite. Como tal, o mal estar faz parte dela, seja na posição do paciente, seja na posição do analista. Um mal estar para ser sustentado na relação de provocação que um inevitavelmente suscita no outro, face aos elementos bombasticamente explosivos da química da transferência amorosa. É obviamente muito fácil perder de vista os lugares "virtuais" que os dois ocupam e atender a demanda de satisfação imediata da tensão gerada do que suportar o estado de suspensão, de solidão, de vazio diante da pressão do sintoma. O processo elaborativo que inclui a sublimação é lento, penoso, cravado de percalços. Tal qual o trabalho do luto, o exercício da renúncia e os deslocamentos que ele impõe, além de exaustivos tem um cunho marcadamente doloroso ao qual o sujeito tem razão de oferecer resistência. Por isso insiste, regride e se fixa até que faça algum sentido, quando acontece, que vale a pena deslizar para "outros" lugares que também oferecem suas compensações. Até mesmo a da transgressão possível: o reconhecimento do desejo e a possibilidade de representá-lo. De todas as maneiras, em múltiplas versões. Um jogo divertido, gerador de um outro prazer, marcado pelo não-todo das relatividades que tomam o lugar da busca do absoluto. O sujeito pode então tomar posse de sua despossessão, sua verdadeiramente única propriedade ,fazer dela mais do que a sua desgraça-como faz o melancólico que pára por aí-mas o seu bem(meu bem, meu mal), uma matéria prima a ser operada lúdicamente. Quem sabe até com humor, recurso que extrai do trágico a sua fonte de inspiração .
O trabalho da análise implica nos dois polos do campo da transferência a aceitação da tragicidade do desamparo e do paradoxo da dependência(desejo e ódio entrelaçados), como condição de subjetivação .Analista e paciente esbarram o tempo todo com a própria finitude e sua solidão e ainda assim vão além. Atrás do que já sabem que não vão encontrar e que vão só continuar procurando e invocando pelos canais desobstrutores das representações.
Transgredindo sempre...até quando der.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- Birman, Joel - Alquimia no Sexual Cadernos de Psicanálise da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro , ano 7, no.9 - Janeiro de 1988.
- Freud, Sigmund - Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro, Imago, 24 vols.
- Escritores Criativos e Devaneios (1907) - vol. IX
- Sobre o Narcisismo : Uma Introdução (1914) - vol. XIV
- As pulsões e suas vicissitudes (1915)- vol. XIV
- Laplanche, J. - A Sublimação - Problemáticas III - São Paulo ,Martins Fontes, 1989
-Nasio, J.D - Lições sobre os 7 conceitos cruciais da Psicanálise - RJ, Jorge Zahar Editor, 1988
Weill, Alain Didier - Nota Azul. Freud, Lacan e a Arte. Contra Capa, 1997
Wine, Noga - Pulsão e Inconsciente - A Sublimação e o Advento do Sujeito - RJ, Zahar Editor, 1992.
Rachel Sztajnberg
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