A questão ética: testemunho e responsabilidade
René Major
Tradução de Celina Moreira de Mello
Trata-se, provavelmente, de um sinal dos tempos, um sinal do tempo presente: o de uma reflexão a respeito daquilo que o pensamento da psicanálise produziu neste século e também, para nós, a respeito da exigência que, todos os dias, representa a experiência, a que somos confrontados em relação à demanda e ao desejo que nos são endereçados. Esta reflexão que se volta para um século de psicanálise, tanto no que se refere ao impacto que esta teve em um espaço que chamamos de público, quanto no que diz respeito a sua influência no campo que chamamos de privado, determina, quer queiramos ou não, considerações de ordem ética. Seja para pensar que a psicanálise é capaz de nos oferecer pontos de referência na relação do sujeito com a fala, o outro, o inconsciente, a verdade, cuja natureza consiste em nos levar a olhar de modo renovado para a ética tradicional, seja para recusar qualquer ética em nome de uma dada assertiva de Freud, enquanto tal circunstanciada, ou em nome do próprio método freudiano, como, hoje em dia, prefeririam certos analistas. A segunda postura corre o risco de ser a mais moralizadora de todas, pois, lá onde, para expulsar a ética, é revogado o supereu, aparecerá a tirania do desejo, e lá onde não houver mais uma consciência moral, não haverá mais outro. Os meros conceitos de singularidade ou de alteridade são constitutivos dos conceitos de dever e de responsabilidade.
Quando se tem a pretensão de tomar como fundamento o pensamento de Freud, para recusar, sem maiores cuidados, qualquer ética da psicanálise, citando uma passagem de sua correspondência com Pfister, em que ele diz "ignoro a ética", seria conveniente situar o contexto desta afirmação, pois Freud acrescenta, logo depois, "e o senhor é um pastor de almas". O que Freud recusa é a ingerência da moral religiosa na condução da análise. E ele acrescenta: "Se devemos falar de uma ética, no que me diz respeito, professo um ideal elevado do qual, de modo geral, diferem, de um modo desesperador, os ideais que são de meu conhecimento". Assim também, quando é citada a correspondência de Freud com Putnam. Este deseja "melhorar (em seus doentes) a personalidade moral e o caráter" e acredita "que uma regeneração moral contribui para a eliminação dos sintomas". A isto Freud responde, ainda na mesma linha de raciocínio, que "quando o conhecimento da alma for mais profundo, e só então, conseguiremos estabelecer aquilo que é possível no campo da ética." Para Freud, a ética está relacionada com o conhecimento que se origina do fato de compartilhar a experiência analítica.
Certamente, podemos dizer que, na relação que a experiência da análise instaura com a fala, o inconsciente, o outro, a verdade, qualquer consideração de valor referente ao bem e ao mal será colocada em suspenso. Mas, a análise substitui os imperativos que determinavam, sem que o indivíduo soubesse, seu comportamento seja na ordem do amor, da dependência ou dos meios-termos em relação a desejos contraditórios por um imperativo ainda mais categórico, se considerarmos a ascese expressa pela fórmula freudiana Wo Es war, Soll Ich werden: que o Eu do sujeito mais autêntico deva advir lá onde imperavam as pulsões. Se o método analítico implica neste dever, nesta responsabilidade, ele não pode ser dissociado de uma questão ética, de um questionamento ético que questiona, para o sujeito, a relação da ação com o desejo que nele habita e com o sentido oculto que esta ação contém. É provavelmente o que faz com que Lacan afirme que "o estatuto do inconsciente é ético", uma vez que, a partir do momento que fundamentamos sua hipótese, temos que responder por ele. E responder pelo inconsciente, responder por sua razão diante do princípio mesmo da razão mesmo que este princípio de razão seja modificado pela realidade do inconsciente não consiste em fazer do inconsciente uma desculpa. Atribui-se a Freud ter respondido a alguém que queria desculpar, com o motivo do inconsciente, o comportamento de um colega maledicente: "A gentleman should not have an unconscious like that". O que, realmente, implica em um julgamento sobre nossa ação, no qual reside, por definição, a ética. O que não significa que a questão seja assim tão simples, pois a ordem da medida, tão admiravelmente exposta na Etica a Nicômaco de Aristóteles e que é aquela que é imposta pela civilização, não deixa de ser acompanhada, como foi articulado por Freud, por um profundo mal-estar, aquele que é produzido por uma certa renúncia às pulsões. Renúncia de cujo retorno negativo a história não cessa de nos instruir. Com efeito, a ética tradicional permanece marcada pela ambigüidade de sua relação com o poder, de sua relação com a pulsão de poder, como diremos depois de Freud, a qual, se ela não operar sobre o próprio sujeito, para formar sua consciência moral, coloca a seu serviço o sexual, para negar a existência do outro enquanto totalmente diferente. O passo dado por Kant, em relação àquilo que era, até então, na ética, a medida do possível, foi o de fazer da lei um imperativo incondicional, pelo qual sua própria vontade se identifique com o princípio e a origem de toda lei. Mas, na medida em que a lei e o desejo se encontram intrinsecamente ligados, este imperativo poderá também ser colocado unicamente a serviço do gozo, como foi demonstrado por Sade. Então, o que a psicanálise introduz é a medida do Impossível, do tão impossível quanto possível. Disto decorrem todos os paradoxos e todas as aporias que marcam a questão da ética para a psicanálise.
Enfatizaremos, de imediato, a aporia essencial. A exigência ética regula-se sobre a generalidade, sobre o fato de poder prestar contas, sobre a necessidade de justificar, diante dos outros, uma palavra, um gesto ou um ato singular. Mas esta generalidade da ética, que faculta que se substitua qualquer ato por um outro, pode levar a uma certa "irresponsabilidade" em relação à ética acordada, pois a responsabilidade absoluta foge ao cálculo da responsabilidade vista em termos gerais, ela é incalculável e me deixa sozinho, isolado em minha própria singularidade, no momento da decisão, de uma decisão que pode fugir à representação daquilo que seria prescrito pela ética. Esta responsabilidade que foge ao cálculo pode ser da ordem do segredo, do qual entretanto ela terá que testemunhar.
O impossível da posição do analista será de ter que responder, tanto por sua singularidade absoluta em sua relação com a singularidade absoluta do outro, quanto por aquilo que vincula esta responsabilidade singular à responsabilidade geral e universal. É o que rejeitam, cada uma a seu modo, duas posições defendidas por certos analistas ou agrupamentos de analistas.
Algumas sociedades de analistas promulgam regras de deontologia que chamam de "código de ética", regras que são apenas, nem mais nem menos, balizas que indicam, em certos casos, a saída pura e simples da análise e, em outros casos, dão a impressão de que apenas o respeito formal por estas regras faria com que haja análise. É evidente que não se poderia fazer a análise em nome de uma ética deste tipo, que de ética só tem o nome. Eu tomaria como exemplo (mas será que é um exemplo?) "o código ético" promulgado pela Sociedade de que venho, a mais antiga Sociedade de psicanálise, na França, filiada à IPA. No capítulo das generalidades, este código ético afirma a existência de uma "especificidade da ética psicanalítica", sem contudo a definir, que "não contradiz os princípios gerais da Ética". Supomos que os princípios gerais da Ética ( com um E maiúsculo) sejam algo conhecido, estabelecido de uma vez por todas, pois não há referência a texto algum, nem da tradição religiosa ou filosófica, nem do pensamento psicanalítico. Dizem-nos que esta (misteriosa) especificidade da ética psicanalítica "inscreve-se no conjunto dos valores que definem os Direitos Humanos". Mas tampouco neste ponto, há uma referência a alguma das Cartas constitucionais que se referem aos Direitos Humanos e embora a "ética psicanalítica" ( se é que isto existe) seja específica, ela se encontra pura e simplesmente compreendida nos valores que definem os Direitos Humanos. Lembramos que, quando foi chamada a pronunciar-se a respeito da violação dos Direitos humanos, na Argentina, durante a ditadura militar, a IPA, com o aval das Sociedades que lhe são filiadas, produziu uma declaração em termos gerais, desprovida de qualquer conteúdo e de qualquer pertinência, declarando-se contra a violação destes direitos "em certos lugares geográficos"- sem citar nominalmente nenhum país e acrescentando uma nota corporativista que se referia a "nossos colegas em particular". Estamos longe de uma reflexão específica da psicanálise sobre a violência e a tortura. Em meu prefácio ao livro de Helena Besserman Vianna, lembro que, em uma certa época, depois que alguns de seus membros haviam protestado contra a violação dos próprios estatutos, realizada pelo Conselho de Administração, esta mesma Sociedade de Paris previra que "ninguém possa contestar diante das jurisdições competentes a atividade dos órgãos da Associação, por contrariar suas finalidades, se ele não houver exposto previamente a questão a uma comissão de arbitragem interna à Associação". Uma sociedade de analistas poderia, portanto, privar seus membros de seus direitos de cidadãos. Menciono este ocorrência, não apenas para constatar uma contradição de fato, mas também porque, em um discurso que parece ser totalmente oposto, recusando qualquer ética da psicanálise, encontramos esta mesma tendência que consiste em querer subtrair a psicanálise a qualquer lei diferente, daquela que se gostaria que fosse a sua própria lei, ou a tendência em erigir, para os psicanalistas, aquilo que seria "a lei do meio". Observem que, ao criticar, como acabo de fazer, o código de ética desta Sociedade, eu corro o risco de ferir sua reputação e, ao fazer isto, desobedeço a um dos artigos de seu código: "O psicanalista não deve, de modo algum, atentar contra a reputação da psicanálise, da Sociedade psicanalítica de Paris, de seus colegas, nem contra a própria reputação". (Fazemos uma breve observação: o que significa "atentar contra a própria reputação"? E para um psicanalista?) Não menciono, aqui, a queixa oficial que apresentei, no ano passado, a respeito de um dos membros desta Sociedade ( e da IPA) por motivo de produção de falsificação e uso de material falsificado. Os documentos relativos a esta questão foram publicados em Destacamento. Quanto à solicitação, não foi respondida. Ninguém nem mesmo indaga para quem foram feitas estas regras, de tal modo elas parecem estar vinculadas, sem a menor sombra de dúvida, ao exercício do poder.
Outros analistas, rejeitando qualquer consideração ética, preconizam uma deontologia implícita, uma deontologia do significante auto-referenciado. Em um opúsculo que foi escrito como uma reação contra o livro de Helena Besserman Vianna e cujo único interesse consiste em mostrar o deslocamento de um pensamento psicanalítico para o de uma seita, Allouch (que é o nome do autor) propõe como uma ficção aquilo que, de acordo com testemunhas, realmente ocorreu com ele: " por ocasião de um Congresso da Escola freudiana, acontecer de estar, no banheiro, ao lado de Lacan, que penteava o cabelo, quando na época (ele) freqüentava o consultório enquanto analisando." ( Este "enquanto" não cessa de se repetir de modo lancinante no texto do autor, pois o seu delírio lógico, em sua íntegra, e que não deixa de produzir um certo efeito de fascínio, parte da seguinte pergunta: "Amilcar Lobo torturava enquanto analista ou enquanto médico?") Logo, Allouch, enquanto analisando não podia dizer que, por ocasião de um congresso, havia visto seu analista pentear-se, em um banheiro. Assim como, na sua opinião, uma analisanda de Lobo não teria podido dizer, se fosse o caso, que ela havia visto seu analista torturar. Para Allouch, trata-se realmente de um contra-exemplo. Ele explica. Posteriormente, é enquanto analista que ele relata um acontecimento real de seu passado de analisando como sendo fictício. Ele dá seu testemunho, usando a ficção, a respeito de um acontecimento para o qual ele recusa qualquer testemunha ou transforma o real em ficção para testemunhar do fato que ele quer guardar segredo. "Para chegar a esta afirmação ("meu analista se penteia"), teria que ter havido um acontecimento que estabelecesse um vínculo analista/pentear-se, alguma coisa que, pelas vias literais do significante, teria permitido que eu concluísse que, efetivamente, eu havia visto meu analista se penteando, penteando-se enquanto analista (...)" Parece brincadeira. Certamente, concordaremos ao dizer que, para o analisando, há uma diferença entre "o analista" que ele encontrou na rua ou em algum outro lugar e "o analista" a quem ele se dirige, pensa dirigir-se ou não se dirige, no consultório. Mas como é possível afirmar que entre os dois não há nenhuma relação? E o que é "pentear-se enquanto analista"? É uma pergunta. Se se trata do analista na qualidade de "objeto de transferência", será que podemos afirmar com tanta tranqüilidade que a representação que o analisando faz, e que pode coincidir ou não com a representação daquele que ele encontra em um Congresso ou apresenta um Seminário, poderia, em um dos dois casos, não ser objeto de nenhuma transferência? A menos que haja por um lado foraclusão daquilo que é afirmado do outro. Com efeito, Allouch simplesmente descarta o julgamento de existência a que se refere Freud, privilegiando apenas o julgamento de atribuição. Com isto, ele também rejeita todo o simbólico. E mais do que isto, o valor de seu testemunho "enquanto analisando" ( ou "enquanto analista") prestado fora de uma sessão de análise é, desta forma, tão reduzido a pó, em sua lógica, quanto o seria, em sua opinião, o testemunho da (ex) analisanda de Lobo. Ao relatar seu próprio caso, Allouch não se encontra nas únicas condições que ele considera que lhe facultariam afirmar ou negar que ele viu Lacan pentear-se "enquanto analista". Finalmente, não vejo de que modo, encerrando-se a análise em uma lei imanente, mesmo que seja a do significante, lei que não teria que se confrontar com nenhuma heteronomia, evitar-se-ia que a análise seja um delírio a dois. Este delírio, mesmo que tenha começado com duas pessoas, não deixará de se tornar coletivo.
Tomemos um outro exemplo. A história de Sabina Spielrein, tal como pode ser reconstituída a partir de sua correspondência com Jung e a leitura de seu Diário, demonstra bem de que maneira a paixão pelo significante pode levar a uma situação inextricável de dupla transferência. A ficção de transferência molda, então, a realidade. Mesmo que, no início de sua análise, Sabina Spielrein não esteja muito a par das relações entre Freud e o seu jovem e brilhante aluno Jung, logo ela ficará sabendo pelo próprio Jung que ele se interessa pela filha do mestre e que sua qualidade de "cristão" tem algo a ver com o lugar privilegiado que é o dele no círculo do movimento psicanalítico. Tendo um nome judeu, Sabina pertencia a uma família que lhe trasmitira a proibição de apaixonar-se por um cristão. Contudo, várias vezes, na família de Sabina, este interdito quase fora transgredido e transgredido, sobretudo, pela mãe dela. Um médico cristão, muito conceituado em São Petersburgo, apaixonara-se por ela. Como a mãe de Sabina fora obrigada a desistir de casar-se com ele sem renunciar a seu amor ele se suicidara. Naturalmente, um amor deste tipo revive na transferência amorosa de Sabina, que se prende ao significante jung para referir-se à criança imaginária que poderia, realmente, simbolizar a união proibida. E de modo recíproco: desde que, quando era criança, "uma serva de cabelos negros" havia substituído uma mãe ausente por longos períodos, Jung sentia-se atraído por mulheres judias que lhe traziam a lembrança deste primeiro amor. Assim, ele deixará que, em torno de seu nome, a partir do tema de um gosto compartilhado pelo herói wagneriano, se desenvolva o projeto de pôr no mundo uma criança "ideal" que se chamaria Siegfried. Espantado porque Sabina produz um comentário sobre a música de Wagner que corresponde, palavra por palavra, ao que ele próprio já escrevera em uma caderneta de anotações, Jung comunica a sua paciente esta transmissão de pensamentos. Por sua vez, os significantes do nome Siegfried vão representar a vitória de uma reconciliação imaginária da teoria de Jung e da de Freud: mais tarde Sabina referir-se-á a uma criança "ariano-semítica".
Não foi por acaso que citei este exemplo. Por ocasião da reunião que se realizou em Paris, em fevereiro de 1997, a respeito do livro de Helena Besserman Vianna, quando Allouch perguntou qual o traço significante, no caso Lobo, que se tornara "um caso", respondi que se tratava do sobrenome/substantivo próprio. O sobrenome/substantivo próprio e seu duplo, o nome e o pseudônimo antinômicos: Lobo e Carneiro, nas propriedades imaginárias que são desdobradas por seus significantes.
Como o acontecido com Sabina Spielrein também tornou-se "um caso"- Allouch escandaliza-se, ou finge escandalizar-se que se transforme um acontecimento em "um caso" e que haja ingerência da ética no método freudiano - Freud não manda simplesmente a analisanda de volta para seu psicanalista. Ele desembrulha os fios desta trama e escreve o texto sobre o "amor de transferência": "Disseram-me que certos analistas, freqüentemente, preparavam seus pacientes para o surgimento de uma transferência amorosa ou até mesmo ( e aqui trata-se de uma citação) instavam com eles a que se apaixonassem pelo médico, a fim de que a análise pudesse prosseguir. Eu poderia dificilmente imaginar uma técnica mais insensata." Os senhores sabem que Freud explicita, claramente, que o analista não deve esquecer que é a situação analítica o que provoca o amor de transferência que alimenta a resistência à análise. O que é destacado, não é o fato de este amor não ser um amor verdadeiro, mas que o desejo do analista, quaisquer que sejam suas implicações na situação, é o de não bloquear o prosseguimento da análise. Em nome de que? Ele nos diz que "a via pela qual o analista deve caminhar não comporta um análogo na vida real". O analista deve, a um só tempo, evitar não reconhecer este amor e evitar corresponder a este sentimento. Portanto, ele responde a este amor, sem a ele corresponder. E é da resposta da não-resposta do analista que o analista tira sua relação com a verdade. Com certeza, não é em nome da moral burguesa que o analista se proíbe de responder ao amor. Tampouco ele se proíbe de responder ao ódio, por motivos de boa educação. Trata-se, com certeza, de uma questão de técnica direcionada para uma finalidade, portanto, em virtude da razão analítica, mas a relação desta razão com a verdade não exclui, de modo algum, os valores éticos. Isto é expressamente referido: "Afirmo que o tratamento psicanalítico fundamenta-se na veridicidade, é inclusive a isto que se deve, em grande parte [...] seu valor ético. É perigoso deixar de lado este fundamento seguro." A análise tem, portanto, um valor ético. Freud volta, várias vezes, a esta questão: "Motivos éticos e técnicos impedem o analista de ceder." Como esta lei se torna seu desejo, vemos aparecer a fórmula lacaniana, muitas vezes mal interpretada, de que: "o analista não cede em seu desejo". ( Como um parêntesis, não se trata ainda das formulações do código de ética a que me referi, cujo caráter é o de meras prescrições. Citando: "Os contatos físicos com o paciente, excetuando-se os gestos habituais de acolhida, devem limitar-se estritamente àqueles que podem ser exigidos por uma reação clínica específica. O psicanalista deve abster-se de ter qualquer relação sexual ou agressiva com seu paciente, assim como com os membros de sua família ou seus amigos. Ele deve manter para com o paciente a atitude reservada que for conveniente, no plano físico, verbal e social.)
Prefiro destacar, aqui, a importância da tripla luta do analista, a que Freud se refere neste texto: a primeira, contra as forças internas do analista, que tentam fazer com que ele saia da análise; a segunda, fora da análise, que sustenta a posição do analista no mundo, sua abordagem científica ( ou racional) referente às pulsões sexuais; e por último, na própria análise, contra a paixão que almejaria ser livre de qualquer laço social, de qualquer relação de uma intimidade sem testemunhas com aquilo de que dá testemunho na realidade social.
Que a passagem do privado para o público se dê diante de um público restrito, como na experiência do controle, ou com um público maior, como aquilo que, em uma sociedade de analistas ou em uma Escola analítica, dá testemunho de que há análise, trata-se sempre de articular a verdade do mais íntimo em uma experiência subjetiva, com o conhecimento e o saber que podem ser compartilhados com muitos ou com uma coletividade.
Ora, a psicanálise sustenta dois tipos de tensão. Uma tensão interna à experiência analítica, em que a resistência ao inconsciente provém tanto do analista quanto do analisando. Em outras palavras, é isto que faz com que haja uma porção de não-analista, no analista, tanto quanto de analista, no não-analista. É aquilo que torna possível a análise. A psicanálise sustenta uma outra tensão, e esta se dá em relação a sua exterioridade, no campo de sua extensão, em que ela, igualmente, se defronta com resistências. É também o lugar da teoria enquanto capaz de instituir, o lugar das instituições analíticas que são suas fiadoras e, também, o lugar do psicanalista na cidade ou no social. A psicanálise existe, pois, a um só tempo, como uma experiência de caráter privado, sem testemunhas, e como a experiência de que dá testemunho em seus escritos, na teoria, nas instituições responsáveis por sua transmissão, em seu modo de existir no mundo.
Todos os problemas de ordem sócio-ético-político-institucional, com os quais, até nossos dias, tem-se defrontado a psicanálise, ocorreram em função do modo de ver a relação, ou a ausência de relação, entre estes diversos lugares, entre a psicanálise como experiência privada, como experiência "didática" do advento do sujeito, e a psicanálise no testemunho que ela dá acerca desta experiência. Ou consideramos que há uma possibilidade de tradução recíproca entre a experiência e o testemunho que é dado desta experiência, ou então decidimos que são dissociados e que entre os dois há uma disjunção.
Do ponto de vista restrito da clínica analítica, o modo como se reconhece a implicação de meu desejo na análise, de estar atento a minhas próprias resistências ao inconsciente e atento à escuta do outro, a sua identificação enquanto "mesmo" e enquanto "totalmente outro", de estar atento, também, ao fato de que seu discurso se dirige a um Outro que não é aquele que eu represento, tudo isto, efetivamente, dispensa-me de ter em mente prescrições éticas. Ou estou na análise ou não estou. Contudo, este tipo de relação com o outro, com sua fala, com sua verdade, no testemunho que dou a respeito, na maneira como devo prestar contas diante da razão, comporta, enquanto tal, um valor ético e um valor ético capaz de questionar a ética tradicional. Não somente de questionar qualquer ética que seria, a priori, estranha a este modo "analítico" de relacionar-se com o outro, mas também de questionar todas as regras ou supostas regras que me foram transmitidas em minha formação analítica, ou qualquer técnica herdada de minha análise ou de um certo tipo de ensino, pois toda a arte da análise reside em uma constante invenção da qual devo, contudo, prestar contas diante da razão analítica.
Três são os caminhos pelos quais se envereda quando se trata da questão ética e política da sociedade analítica. O primeiro consiste em ordenar a prática analítica com uma teoria dominante ou com as regras de uma instituição ou política estranha à análise. A psicanálise se vê, assim, privada de sua mola mestra. O segundo é o que estabelece uma total disjunção entre a experiência analítica e seu valor ético, na socialidade analítica ou na sociedade em geral. Esta auto-referência da experiência abre o caminho, no real, para as formações sintomáticas mais numerosas. Um terceiro caminho sustenta que é a partir da clínica analítica, da relação específica com o outro que ela instaura, que se podem fundamentar a teoria, a instituição que responde pelo compartilhar-se e pela transmissão desta experiência, a presença da psicanálise e do psicanalista no mundo. É esta a exigência de que dá testemunho a psicanálise e ela tem que prestar contas desta continuidade que vai da intensão à extensão.
Não gostaria de concluir esta exposição, que constitui apenas a introdução de uma discussão que desejo ter com os senhores, sem evocar, novamente, o que os conceitos de responsabilidade e de testemunho, ligados aos conceitos de alteridade e de singularidade, têm de paradoxal e aporéticos. A testemunha que dá testemunho da verdade é a única que pode dar testemunho da verdade de seu testemunho. Mas o testemunho é sempre parasitado por aquilo que ele exclui: a possibilidade da ficção e da ficção como promessa de fazer a verdade ( faire la vérité), com o duplo sentido que esta expressão apresenta, em francês: chegar à verdade e fabricar a verdade, na medida em que, na melhor das hipóteses, esta fábrica da verdade ou esta ficção sejam tecidas com os mesmos fios que a verdade verdadeira. Quando se trata do analista, no testemunho, trata-se sempre de tornar manifesto e público aquilo que, entretanto, permanece profundamente secreto. E na medida em que ele quer dar testemunho da verdade, e até mesmo da ficção-verdade, o testemunho singular quer ser aquele de qualquer um que ocupasse o mesmo lugar. É neste aspecto que a singularidade do testemunho, assim como a singularidade do ato ético, assume um valor universal.
Desejando dar testemunho da possibilidade de tradução recíproca da experiência analítica e da socialidade que responde por seu compartilhar, também dei testemunho de uma paixão que só poderá ter algum valor, se for compartilhada.
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