As migrações do bom selvagem

Sergio Paulo Rouanet

Originalmente publicado no caderno "Idéias/Livros"do Jornal do Brasil de 14 de novembro de 1998.

A proximidade do quinto centenário da viagem de Cabral leva-nos a refletir sobre um aspecto específico das trocas culturais que se deram entre a Europa e o Brasil desde o início do século 16: o tema do bom selvagem. O topos se originou na Europa, chegou ao Brasil, voltou à Europa, e foi re-apropriado no Brasil.

O bom selvagem é um animal europeu. Era o bom centauro, como Quiron, que cuidava dos feridos e dos doentes, e dirigiu a educação de Aquiles. Eram o cita, o trácio, o frígio, que viviam perto da natureza e por isso mesmo eram mais inocentes que os atenienses e os romanos, corrompidos pela civilização. Na Idade Média, era o homo sylvestris, peludo e sensual, habitante dos bosques.

Com o período dos descobrimentos, esse bicho europeu foi reencontrado no Brasil pelos cronistas e marinheiros. Vespúcio, Caminha, Thévet e Jean de Léry viram o índio e enxergaram o bom selvagem, sem se darem conta de que essa figura fazia parte de uma tradição européia muito anterior a Colombo.

O bom selvagem foi em seguida re-importado pela Europa, em vagas sucessivas. De volta a seu continente natal, ele conheceu três destinos.

Num deles, o bom selvagem preservou seu exterior exótico e recebeu a função de subverter as instituições européias. Foram o bom tupinambá, de Montaigne, e seus sucessores: o bom pele-vermelha, de Voltaire, e o bom polinésio, de Diderot.

O segundo destino foi a aculturação. O bom selvagem perdeu seu cocar e vestiu-se com roupas européias. Encarnou-se em indivíduos e grupos que por sua doçura, simplicidade, pureza ou valentia pudessem desempenhar a função antes atribuída aos selvagens de além-mar. O século 18 conheceu as crianças-feras, como o enfant sauvage do filme de Truffaut, menino que vivera sozinho num bosque francês, longe da corrupção civilizada, e que foi objeto de uma experiência de re-socialização, segundo os princípios pedagógicos de Rousseau.

O Romantismo idealizou a boa criança, pequeno bárbaro que ignorava o mal, por não estar contaminado pela depravação adulta. O Romantismo criou também o mito do bom campônio, homem rude e inocente, como nos romances de George Sand ou nos quadros de Millet, e do bom proletário, como Fantine e Cosette, nos Miseráveis, e as inúmeras grisettes dos romances e peças de teatro. Bons proletários foram também, do ponto de vista do capital, os trabalhadores que travaram as batalhas da burguesia, morrendo em lugar dela, como em julho de 1830, e do ponto de vista socialista, os operários com consciência de classe e disciplina partidária. No século 20, Foucault e a anti-psiquiatria criaram a figura do bom louco, segregado pela razão oficial.

O terceiro destino do selvagem foi ser anexado pela psicanálise. Freud fez uma espécie de etnografia da alma e pensou o homem moderno em sua continuidade com o primitivo. Em seu desenvolvimento psicogenético, todos os homens passam por um estágio oral, que Freud chama por seu verdadeiro nome: o estágio canibal. O mecanismo da identificação é a incorporação antropofágica das propriedades e atributos de outra pessoa.

A superação do Édipo passa em grande parte pela identificação com o pai, num processo que reproduz individualmente o crime filogenético pelo qual os membros da horda primitiva devoraram o pai primordial. A vida psíquica do civilizado continua sujeita a determinismos que vêm da condição selvagem do homem. O selvagem mora dentro do civilizado. O inconsciente é um "território estrangeiro interno", na formulação de Freud. Esse território é o equivalente das terras exóticas que os primeiros navegantes iam procurar nos confins do universo.

O país exótico interno é habitado por maus e bons selvagens, como o externo. O mau selvagem é o inconsciente culpado, parricida e incestuoso. Mas há também o bom inconsciente. É o inconsciente amável, produtor de belos sonhos, autor de trocadilhos engenhosos, injustamente reprimido pela censura. O bom inconsciente é a sensualidade sem culpa, como o índio de Vespúcio, e a sabedoria sem livros, como o tupinambá de Montaigne.

Mas o bom selvagem continua fiel à sua condição de animal migratório, como o salmão e a gaivota. Ele atravessa de novo os mares e serve de substrato a uma das variedades do nacionalismo brasileiro, o primitivista. O primitivista brasileiro assume sem pestanejar a identidade do bom selvagem. Ele passa a ser exatamente o que Vespúcio, Caminha, Léry e Montaigne disseram que éramos: calorosos, alegres, cordiais, generosos, descontraídos – e nus.

Na Europa, o mito do bom selvagem envolve uma atitude de autodepreciação e de idealização do Outro. É exatamente a descrição da melancolia, segundo Freud. No Brasil, a adesão a esse mito significa uma atitude de aviltamento da cultura alheia e de exaltação da própria cultura. É uma euforia agressiva, narcísica, semelhante à excitação maníaca que ocorre entre dois acessos de melancolia. A expressão ideológica da primeira doença, a européia, é o exotismo. A da segunda, a brasileira, é o nacionalismo. Ser nacionalista é devorar o exotismo do europeu. É o que fazemos quando nos apropriamos da ideologia do bom selvagem.

Tentamos comer o selvagem inventado pelos europeus, para nos transformarmos nele. Se a tentativa desse certo, seria uma pena. Com essa incorporação canibal, o bom selvagem perderia a função subversiva que ele tinha na origem. Em vez de servir para criticar a própria sociedade, ele serviria para legitimá-la. É preferível renunciar a essa antropofagia conservadora, e deixar o bom selvagem em seu verdadeiro habitat, a Europa, entregue à sua verdadeira vocação, que não é construir identidades, e sim dissolvê-las.


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