Transferência, Arte, Psicanálise
Tania Rivera
"A poesia: procura dos outros, descoberta da outridade"
Octavio Paz
Dorian perdeu os movimentos do braço esquerdo há doze anos, num acidente de moto. Ele está no divã, talvez na primeira sessão em que o convido a nele se recostar, e fala da dor lancinante que sente até hoje, e que nenhum tratamento médico consegue aliviar. A dor está vindo, ele diz, inquieto. "É uma dor que vem por trás", e faz um movimento amplo e preciso, por trás da cabeça, com o braço são - um braço que se movimenta tanto, como se compensasse a falta de movimento do outro braço. A dor o olha por trás, o espreita, e ele sabe então que ela vai se manifestar, plena, deixando-o zonzo. Se um dia eu conseguisse olhá-la por trás, diz ele, eu a dominaria, eu venceria a dor. Pausa. Dorian pára de se mexer, e fala: é estranho, ter você aí atrás, me olhando e faz exatamente o mesmo movimento que fizera há pouco para localizar sua dor.
Esta familiaridade entre a dor e a minha posição provoca em mim uma estranheza indizível. Eu sou a dor? A dor, percebo em seguida, se presentifica neste momento, ainda que por um segundo apenas, no lugar do analista, e aí então ela a dor - poderá começar a falar.
O momento propriamente traumático, que se repete incansavelmente na dor, se repete assim, em ato, em análise, ou, mais precisamente, na transferência. Ou talvez se possa dizer que este nó fugazmente entrelaçado, por trás da cabeça de Dorian, pela repetição do mesmo movimento, define a transferência, traz uma representação quase plástica deste conceito, de forma atual, particular, circunscrita à história deste paciente. Mas esta configuração atual suscita, pela estranheza mesma que gera em mim um questionamento que vai além dela, indagando o próprio conceito de transferência, motor do trabalho analítico e condição da análise. O que a dor de Dorian ensina sobre transferência?
Dor e Transferência
Entre Dorian e eu, neste breve instante da clínica que trouxe acima, está a dor. É como se ela nomeasse fugidiamente este entrelaçamento que abre a análise. O termo transferência evoca um movimento, uma ligação entre dois termos diferentes: analisando e analista, certamente, mas também entre passado e presente, como diz Freud. A transferência se dá como uma certa repetição do passado no presente. Mais do que uma repetição de padrões antigos, ou um deslocamento indevido, por assim dizer, de uma ligação libidinal do passado sobre uma pessoa atual, a transferência deve, contudo, ser entendida como um entre. Luiz Hanns sublinha, em seu cuidadoso Dicionário Comentado do Alemão de Freud, que a Übertragung evoca um "arco de ligação" entre dois termos (passado/presente, longe/perto, eu/outro), uma interligação que permanece "acesa", enviando de um ao outro, constantemente. A transferência é, pois, um trânsito entre um e outro; ela marca uma transição, uma certa transitividade.
É como se a transferência dissesse, com Mário de Sá-Carneiro, "eu não sou nem um nem outro/ sou qualquer coisa de intermédio". Este intermédio indica não apenas a proximidade entre um e outro, mas uma certa distância entre os dois. Uma certa distância não no sentido de um ponto mediano e estável, justa medida entre um e outro, que seria encontrado, mas de um jogo de proximidade e distância que se inaugura entre o eu e outro.
A dor pareceria, então, consistir numa espécie de objeto transicional de Winnicott. Um objeto que representa um espaço intermediário entre eu e não eu, de onde surge o brincar em sua potencialidade simbolizante. Mas que espécie de "objeto" seria a dor? Ela não é um objeto com o qual um sujeito poderia entreter alguma relação. Talvez ela não seja mais do que um significante, que ao surgir em cena dissolve as categorias de eu e de objeto; ela é impessoal, a dor, indefinida. Dorian não sente dor, mas a dor o possui, como que dissolvendo seu eu. Ela espreita, por trás de sua cabeça, até que ela vem, se manifesta plenamente, domina. Dorian, neste momento, não tem dor, não pode falar sobre sua dor. Ele não é mais do que uma dor lancinante.
Eu tampouco sou a dor, apesar dela surgir "atrás", atrás do divã, como eu me encontro. Nem tenho dor. A inquietante estranheza que me invade no momento em que surge a dor, na sessão, provém de algo vagamente estranho, mas específico: subitamente, ela me faz outra. À maneira do Unheimliche de Freud, que conjuga e distende o familiar (Heimliche) e o estranho (Un-heimliche), fazendo surgir a figura do duplo. Freud conta, em nota de rodapé, a seguinte história: durante uma viagem de trem, ele vê subitamente surgir um senhor de aparência desagradável vindo em direção a seu compartimento. Ele se levanta para dizer ao estranho que ele se enganara de cabine, e neste momento percebe confusamente que aquela era sua própria imagem refletida num espelho. Da mesma forma, em meu caminho com Dorian, subitamente apresenta-se a mim um espelho que reflete uma dor indizível, emudecedora. Diante desta dor, a pergunta que me faço ("eu sou a dor?") mostra uma vacilação ("eu?" ou "quem sou eu?"), um estranho re(des)conhecimento de mim mesma.
Se fazendo presente em análise, a dor vem lembrar que, na verdade, o entrelaçamento que define a transferência se dá não entre o um e o outro, mas entre o outro e o outro, visto que o "eu" se encontra aí de saída descentrado, tendo perdido cetro e coroa. Como já dizia Arthur Rimbaud, "o eu é um outro". Estranho entrelaçamento, este assinalado pela dor, pois ele não une propriamente analista e paciente, mas nos descentra a ambos, conjugadamente, ao fazer surgir algo entre nós.
Encenações
Mas se Dorian espelha, "transfere" esta dor, o que permitirá que da repetição do mesmo algo se dê diferente? Como desta mesma dor, repetida na análise, outra coisa poderá surgir?
Esta é uma questão central à psicanálise. É graças a uma espécie de crença de que algo novo poderá aí surgir que Freud, e todos aqueles que seguiram sua via, praticam a análise, como analistas e analisandos. No entanto, mais de cem anos após a invenção da "talking cure", este ponto ainda não parece esclarecido teoricamente. Da pura repetição compulsiva, circular, que consistirá, diga-se de passagem, no argumento fundamental de Freud para defender a existência de uma compulsão à repetição que obriga a conceber uma pulsão de morte, o que determina que um pequeno desvio de rota se produza, abrindo um novo caminho? Em outros termos: se a transferência é o motor da análise, como declara Freud, como consegue ela ir além de uma insistência repetitiva, provocando "modificações"?
O famoso jogo do carretel do neto de Freud pode nos trazer elementos de resposta. O menino, de dezoito meses, arremessa o carretel por entre as cortinas de seu leito, fazendo-o desaparecer. Ele emite o som "óóó...", identificado por seus familiares como o advérbio fort, que significa algo como "longe". Em seguida, ele puxa o carretel de volta, emitindo um jubiloso "aaa..", próximo do termo da, que indica algo como "aí está". O fort e o da batem uma oscilação que, repetindo através de um símbolo (o carretel) a partida e a volta da mãe, permitirá que a ausência se increva como ausência, "presença de uma falta", na justa expressão de Jean-François Lyotard. Este jogo nos apresenta, portanto, o funcionamento mínimo de toda simbolização.
Mas a brincadeira do carretel inventada por esta criança não seria também um jogo de proximidade (da) e distância (fort), semelhante ao que vimos surgir como transferência?
O jogo é uma encenação, na palavra de Freud, da partida da mãe. Tal encenação permite um domínio (Bewältigung), um controle da situação traumática que é postulado como objetivo da repetição, num tempo anterior à instalação do princípio do prazer. Um "eu" é suposto como sujeito deste "controle". Mas não se trata aí de um controle propriamente narcísico, operado por um eu investido libidinalmente. Tampouco se trata aí de um eu como instância descrita na segunda tópica do aparelho psíquico, que viria atuar como mediador em um conflito psíquico. Parece antes que esta dominação propiciada pela repetição vem conformar o eu, de maneira curiosa. É o que mostra a última parte do jogo do carretel, que Freud relata quase incidentalmente, numa nota de rodapé:
"Certo dia, a mãe da criança ficou ausente por diversas horas; à sua volta, foi recebida com as palavras bebê o-o-o-ó!, a princípio incompreensíveis. Mas logo se revelou que a criança, durante este longo período sozinha, havia encontrado um meio de fazer desaparecer a si própria. Descobrira sua imagem num espelho que ia quase até o chão, e então se agachara, de maneira que sua imagem no espelho estava fort."
É, portanto, se fazendo desaparecer no espelho que a criança inaugura um jogo que com-forma o eu. Este jogo representa uma espécie de "vertente negativa" do estádio do espelho de J. Lacan, como nota Jean Florence. Uma operação do eu é engatada em que ele se forma justamente ao se desprender de sua imagem -- não para encontrar "outra coisa" que não uma imagem, mas para se ver alternativamente como eu e como outro na imagem, num constante "trans-parecer" que não se deixa estancar nem num aparecimento nem num desaparecimento definitivo.
Freud nos apresenta, nesta breve nota, uma outra faceta do jogo, que diz respeito não mais ao objeto (a mãe), mas ao próprio eu. Ele nos apresenta um outro palco onde se dá o mesmo jogo do carretel, em articulação com a primeira "cena", a da ausência da mãe. O jogo do fort-da, nos mostra então Freud, é duplo.
E a "dominação" de que se trata neste jogo pode ser dita uma "direção", no sentido do trabalho realizado por um diretor de teatro. A metáfora teatral é do próprio Freud que, como vimos, fala do jogo como um "pôr em cena" (in Szene setzen). O jogo é o teatro onde se simboliza a partir da repetição. Simbolizar é repetir, mas tornando "cena" esta repetição. Encenar é repetir, mas, repetindo, tornar-se outro.
Talvez Dorian tenha uma parte de razão, quando imagina que poderia vencer a dor, desde que pudesse "olhá-la por trás". Isto pode indicar uma possibilidade de se ver "por trás" de si mesmo, numa espécie de espelho invertido, um espelho oposto àquele da fascinação amorosa e mortífera de Narciso. Ou melhor: ele se verá talvez, em análise, "por trás", graças a um jogo de espelhos onde o analista também está tomado, refletido, e neste jogo Dorian poderá talvez transitar, encenar, ver-se outro, ter uma certa experiência do outro que lhe permitirá se apoderar enfim desta perda.
Aqui se revela o sentido da escolha do nome Dorian, que fiz sem reflexão, para designar este paciente. O retrato de Dorian Gray, no romance de Oscar Wilde, é o que permite a Dorian manter-se jovem, puro e belo, enquanto o quadro onde ele está representado se deteriora horrivelmente. O personagem resolve esconder de todos o terrível espelho no qual se reflete visivelmente a transformação íntima que ele experimenta, no sentido de uma crueldade crescente. Assim, ele consegue manter-se Narciso, magicamente coincidindo com aquela sua imagem do passado, excluindo qualquer sinal de surgimento do outro em si mesmo. Ao chamar este paciente de Dorian, talvez se manifeste em mim o desejo de vê-lo se refletir num espelho diferente, de ir buscar num quarto escuro, onde se esconde há tempos a tela de Dorian, esta possibilidade de ver-se outro, de fazer-se outro e mesmo. Pôr-se em movimento, em transferência: não seria esta operação uma boa definição do eu em psicanálise, para além das tópicas em que se tenta fixá-lo, teoricamente, numa imagem imutável?
Devo dizer que, talvez não por acaso, o paciente é pintor.
A Psicanálise em Transferência
Sabemos que são a transferência e um certo "agir sobre a transferência" que especificam a psicanálise como tal, distinguindo-a, por um lado, de outras práticas psicoterapêuticas e, por outro, de teorias filosóficas ou visões de mundo (Weltanschauung). Mas será a transferência específica à psicanálise?
A resposta de Freud é negativa. Ele afirma que a transferência preexiste à psicanálise, que ela se manifesta frequentemente na vida e de maneira privilegiada no amor, e é mesmo utilizada, manejada, por educadores, professores etc. Ele chega a afirmar, em 1909, que "a transferência surge espontaneamente em todas as relações humanas, e de igual modo nas que o doente entretém com o médico". Portanto, como nota Jean Laplanche, quando se fala de transferência fora da análise não se faz necessariamente aplicação extra muros de um conceito psicanalítico. A psicanálise ressalta e utiliza para seus próprios fins algo que lhe é preexistente. E se ela deve sua eficácia a este estranho (e familiar) dispositivo, se ela faz dele o seu "motor", talvez a potencialidade que ela assim explora também venha sendo empregada em outras práticas, em outros domínios da cultura. Com a transferência, pode-se então refletir sobre o lugar onde a psicanálise se inscreve como produção cultural, e questionar como ela se especifica neste campo mais vasto. Específica, mas mantendo com este campo múltiplas e necessárias relações.
O próprio conceito de transferência nos permite medir a importância do fato de a escolha de Freud recair muito frequentemente sobre termos de uso coloquial, termos evocativos a ouvidos alemães, termos que remetem ao conhecimento linguístico de cada um e com isso não permite que a teoria se fixe em determinações semânticas rígidas e exclusivas. Talvez possamos dizer, tomando o mesmo tipo de "liberdade" freudiana, que ele transfere (aplica, transpõe) para a cena psicanalítica termos de outros campos, estabelecendo com estes uma ligação que pode ou não se atualizar a cada uso do termo, mas que deixa sempre disponível um "arco de ligação" (para usar os termos de Hanns), uma passagem entre um e outro, entre psicanálise e não-psicanálise.
Este lugar de outro, de não psicanálise, diversas disciplinas serão chamadas a ocupá-lo, transitoriamente: filologia, biologia, etnologia, arqueologia, etc. Mas é com a arte, e com o teatro e a literatura em particular, que a psicanálise se verá, privilegiadamente, tomada num jogo de espelhos. Tal jogo de espelhos vai muito além de um fascínio do mesmo, como estamos vendo, pois opera uma ruptura que inaugura uma oscilação (assinalada pela estranheza do duplo) que suscitará um movimento de simbolização.
A própria teorização freudiana dá testemunho deste movimento, em sua gênese, com nada mais, nada menos, do que Édipo. É ao Édipo Rei de Sófocles que Freud se refere, na primeira ocorrência do Complexo de Édipo na obra freudiana, em "A Interpretação dos Sonhos". É transferindo, pode-se dizer, com a tragédia grega, que a Psicanálise pode dar nome ao que se faz núcleo da subjetividade, e, igualmente, núcleo da teoria psicanalítica. Ao manter o nome de Édipo em psicanálise, Freud nomeia como a tragédia, ele instaura uma passagem entre a sua teoria e Édipo Rei. Ele não apenas usa a tragédia para ilustrar a teoria psicanalítica, mas ele afirma que a lenda de Édipo e a tragédia de Sófocles vêm embasar (Unterstützung) sua hipótese clínica:
"Essa descoberta é embasada por uma lenda da Antiguidade clássica que chegou até nós: uma lenda cujo poder de produzir um efeito (Wirksamkeit) profundo e universal só pode ser compreendido se a hipótese que propus com respeito à psicologia infantil tiver validade igualmente universal. O que tenho em mente é a lenda do Rei Édipo e a tragédia de Sófocles que traz o seu nome".
O argumento fundamental para a arriscada hipótese psicanalítica da universalidade do complexo de Édipo, é na tragédia que Freud o encontra, ou melhor, no efeito que ela promove, como ele insiste pouco depois:
"Se Édipo Rei afeta (erschüttern) tanto uma platéia moderna quanto fazia com a platéia grega da época, a explicação só pode ser que seu efeito (Wirkung) não está no contraste entre o destino e a vontade humana, mas deve ser procurado na natureza específica do material com que esse contraste é exemplificado. Deve haver algo que desperta dentro de nós uma voz que está pronta a reconhecer a força compulsiva do destino no Édipo (...). E há realmente um fator dessa natureza na história do Rei Édipo. Seu destino nos toca (ergreifen) apenas porque poderia ter sido o nosso -porque o oráculo lançou sobre nós, antes de nascermos, a mesma maldição que caiu sobre ele."
Este procedimento epistemológico originário da psicanálise já bastaria para lembrar o quão ingênua corre o risco de ser uma "aplicação" da teoria e do método psicanalítico às tragédias, ou à arte em geral. Pois tal aplicação baseia-se no pressuposto de que a psicanálise, como compreensão do homem global e específica, pode dizer alguma "verdade" sobre a tragédia que escaparia a esta. Ora, talvez a tragédia esteja até mais apta para dizer da "verdade" da psicanálise! Antes de "interpretar" tragédias ou qualquer obra literária ou artística, na ilusão de colocá-las no divã (quando de fato quem se coloca assim no divã é tão somente o intérprete), faz-se necessário conhecer a ligação subterrânea porém tenaz existente entre a teoria psicanalítica e o monumento da arte ocidental que representa o Édipo Rei. Pois apenas ao se reconhecer um entre psicanálise e tragédia grega (por exemplo, com Édipo), e ao se reabrir este arco de ligação, se poderá retomar a criação de símbolo aí implicada, e então trabalhar Édipo, aprender mais sobre Édipo, fazer trabalhar a teoria psicanalítica, com a tragédia.
O Psicanalista e o Artista
Tomo Édipo como "exemplo", sem negligenciar a advertência freudiana de que o exemplo é a própria coisa. Parece-me que esta ocorrência primeira de "utilização" freudiana da arte para sua teorização é originária, no sentido de que ela marca um certo arranjo, uma posição epistemológica que se repetirá ao longo da obra freudiana. E com Édipo, esta ocorrência não pode ser fortuita; ela assume um papel nuclear. Um certo entrelaçamento fundamental entre arte e psicanálise se mostra então presente na teorização freudiana, e ele não pode ser ignorado. Ele se refletirá em diversos outros momentos da obra de Freud, e mesmo que por vezes este pareça simplesmente buscar em obras artísticas mais frequentemente literárias ilustrações para a sua teoria, pode-se suspeitar de que um movimento mais fundamental, que fornece um motor à criação teórica, está aí em ação. Esta ligação subterrânea entre psicanálise e arte não é justamente o que indica Freud ao caracterizar a teoria como uma "ficção"?
Se Édipo aparece aqui como testemunha da ligação entre arte e psicanálise, esta ligação vai além daquele "material". Meu objetivo aqui não é o de realizar um estudo sobre Édipo Rei apesar de estar convencida de que seria um bom caminho, entre psicanálise e tragédia, para se retrabalhar tanto a teoria psicanalítica quanto o próprio texto de Sófocles. Interessa-me mostrar algo mais geral: uma possibilidade fecunda de teorização que este entrelaçamento entre arte e psicanálise indica, nos primórdios da obra freudiana, e que, sem pretender substituir a experiência clínica como "material" que se transpõe em teoria, acrescenta a esta um lugar legítimo, ainda que de outra natureza, à arte.
Tal proposta não faz mais do que levar a sério a idéia freudiana segundo a qual muito temos a aprender com os artistas. A figura do artista na obra freudiana é testemunha de uma certa idealização, o artista sendo caracterizado como detentor de um saber quase direto do inconsciente, saber que o psicanalista, cientificamente realizando sua árdua pesquisa, chega a invejar. Mas Freud complexifica ainda sua relação com o artista, em uma carta ao dramaturgo e médico Arthur Schnitzler, ao confessar que um temor de encontrar neste o seu "duplo" teria-o impedido de buscar dele se aproximar. Ele prossegue:
"Não que eu em geral seja facilmente inclinado a me identificar com qualquer outra pessoa ou que eu tenha qualquer desejo de esquecer a diferença de nossos dons que me separa do senhor. Sempre que me deixo absorver por suas belas criações, parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios."
Freud se mostra aí como entretendo uma relação complexa com o artista, uma ligação que só com ressalvas pode ser dita uma "identificação", pois além de reconhecer em si traços do outro, o pai da psicanálise se estranha nesta familiaridade, ele teme frente a Schnitzler encontrar o "duplo", o Unheimliche. O próprio Freud encontra-se, portanto, tomado numa certa "transferência" em relação ao artista, e esta reflete a relação entre psicanálise e arte em geral.
Sabemos que Freud enfoca claramente a pessoa do artista, em sua análise da Gradiva de Jensen, solicitando em cartas que o escritor confirme as hipóteses sobre sua infância que o psicanalista formula a partir da história de Norbert Arnold. A obra está sendo, aí, tomada como uma formação do inconsciente do autor, o que permitiria que se visse no protagonista do romance um duplo deste. Mas Jensen se recusa, com veemência, a ser colocado à sua revelia no divã de Freud, como lembra Pontalis em seu prefácio. O escritor nos lembra que não é o artista que detém um saber sobre o inconsciente: é a própria obra que veicula um saber. Como? À maneira indicada por Freud quanto a Édipo Rei: pelo efeito que ela produz. Um certo efeito estético, que estamos bem longe de poder definir, mas que talvez se dê graças a um espelhamento entre obra e espectador/leitor, num jogo de espelhos onde o sujeito se vê espelhado mas outro, se vê aparecer e desaparecer, como o neto de Freud diante do espelho.
Não beberia a arte da mesma fonte que a psicanálise? Não teríamos na arte uma certa utilização do dispositivo que permite ver-se outro, no mesmo? Fórmulas como as de Octavio Paz: "A poesia não diz: eu sou tu. Diz: meu eu és tu. A imagem poética é a outridade" não deixariam entrever este obscuro poder da arte?
Apenas o estudo de obras artísticas permitiria avançar nesta hipótese, mas isto iria além dos limites deste trabalho. Para os fins deste breve texto, me apoio ainda em apenas em um dos termos envolvidos, a teoria psicanalítica, sem poder aqui dar o espaço à arte que faria se reabrir o "arco de ligação" que vimos Freud inaugurar entre elas. Na obra freudiana, uma ligação entre os efeitos artísticos e o que Octavio Paz chama "outridade" é indicada já em 1907, quando o jogo infantil aparece como base da criação artística e do "trabalho" de transposição da fantasia em realidade que determinaria a "saúde" psíquica, em "Escritores Criativos e Devaneio". Freud indica aí, rapidamente, que o segredo da verdadeira ars poetica estaria ligado à questão das "barreiras que se erguem entre cada eu individual e os outros".
Por uma psicanálise confrontadora
Este ensaio limita-se a indicar a possibilidade e o interesse de se pensar a psicanálise em um confronto com a arte. Uma diante da outra, reabrem-se possibilidades de ligação, sem contudo que elas se deixem reduzir uma à outra. Tal confronto promove um entrelaçamento e desentrelaçamento constante, pois não se trata de encontrar, na arte, uma vez por todas, as palavras da psicanálise, mas de retomar o movimento de Freud que é o de uma busca constante, uma busca de novas palavras. Busca da palavra outra, através de uma certa experiência do outro: o outro que é, por um lado, a clínica (onde o paciente encarna um outro), mas também o outro que não é psicanálise. A teoria está em constante transformação, ela precisa sempre de novas metáforas:
"Em psicologia só podemos descrever as coisas com a ajuda de analogias. Nada existe de peculiar nisso; é também o caso alhures. Mas temos que estar constantemente a modificar essas analogias, pois nenhuma delas nos dura bastante."
Por que será que nenhuma "dura bastante"? Porque a psicanálise não é letra morta, ela quer ser palavra "mágica", como diz Freud no mesmo artigo. Por isso ela deve criar continuamente metáforas, como o faz a poesia, a arte. Mas não basta usar novos nomes quaisquer. "Não tente dar-me literatura em vez de ciência", ralha Freud, opondo-se aos termos "subconsciente" e "consciente" propostos em substituição a Eu e Isso pelo interlocutor imparcial que ele imagina neste texto. A psicanálise visa um efeito, para o qual alguns nomes têm valia, outros não. Pois, como diz Freud, atando firmemente criação teórica e a arte da clínica, é "impossível tratar um paciente sem aprender algo de novo; (...) impossível conseguir nova percepção sem perceber seus resultados benéficos".
Literatura e "ciência" psicanalítica, contudo, visam ambas a certos efeitos, e nesta eficácia elas se conjugam e se confrontam na tentativa de ressuscitar a palavra mágica, única e sempre nova, atual em cada obra artística, em cada análise, em cada momento da clínica.
Tania Rivera
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