KUBRICK E SCHNITZLER, UMA INCURSÃO NO 'UNHEIMLICHE"
Algumas observações sobre o filme de "De Olhos bem Fechados" (Eyes wide shut) de Stanley Kubrick
Sérgio Telles
Como sabemos, o filme EYES WIDE SHUT ("De olhos bem fechados"), de Stanley Kubrick, está baseado no livro TRAUMNOVELLE de Arthur Schnitzler, escritor austríaco contemporâneo de Freud, que muito o admirava. "TRAUMNOVELLE" ("Romance de Sonho", em inglês "Dream Novel"), segundo aqueles que a leram, tem uma estrutura ambígua e onírica, onde realidade e sonho se misturam e confundem sem fronteiras definidas, o que faz com que os personagens (e leitores) muitas vezes não saibam se os acontecimentos ocorridos são reais ou imaginários..
Assim, seguindo a sugestão que o próprio autor nos fornece com o título e o estilo de seu livro, vou fazer uma leitura analítica do filme nele baseado, considerando-o como se fôsse um sonho, com "conteúdo manifesto" - que seria o enrêdo propriamente dito - e um "conteúdo latente" - que será o resultado de sua interpretação.
Antes de fazer um resumo do enredo, mostrarei um trecho de Elizabeth Roudinesco falando da relação entre Freud e Schnitzler, e dois outros, de Janik&Toulmin e de Gay sobre o momento sócio-cultural que é pano de fundo da obra de Schnitzler.
Diz Elizabeth Roudinesco: "A morte, a sexualidade, a neurose, o monólogo interior, o desvelamento da alma, o suicídio formavam em Schnitzler a trama de um impressionismo literário, ao qual Freud foi tão sensível que expressou numa carta de l922 o receio que lhe inspirava o encontro com o seu duplo: 'Vou lhe fazer uma confissão que peço guardar só para você, em consideração a mim, e não compartilhar com nenhum amigo nem estranho. Uma pergunta me atormenta: na verdade, por que, durante todos esses anos, nunca procurei frequentá-lo e conversar com você [...]? Penso que o evitei por uma espécie de medo de me encontrar com meu dúplo. Não que eu tenha tendência a me identificar facilmente com um outro ou que eu tenha desejado minimizar a diferença de talentos que nos separa, mas, ao mergulhar em suas esplêndidas criações, sempre pensei encontrar nelas, por trás da aparência poética, as hipóteses, os interesses e os resultados que eu sabia serem meus'. Depois de observar que Schnitzler era, como ele, um investigador das profundezas psíquicas, Freud acrescentou: 'Perdoe-me por recair na psicanálise, mas só sei fazer isso. Sei apenas que a psicanálise não é um meio para tornar-se amado'".(1)
(Deixemos aqui sublinhado que é interessante que o próprio Freud relacione a vivência do duplo na sua relação com Schnitzler, pois este tema, que ele desenvolveu amplamente no ensaio "O Estranho", é de muita importância no "Traumnovelle" e no filme de Kubrick).
Quanto ao poder na sociedade vienense, dizem Janik & Toulmin: "Em maio de 1913, foi descoberto que o subdiretor dos Serviços de Informação do Exército Imperial e Real, Alfred Redl, era um traidor e que a traição tinha sido motivada pela necessidade de financiar uma vida de deboche homossexual.[...] Pois o caso Redl ilustrava o aspecto falso e enganador de tudo na monarquia. Esse oficial, que fora elogiado pelo imperador, era um traidor. A guerra, a última coisa concebível para a mente burguesa, não estava absolutamente fora de questão. A evidência da homossexualidade nos altos escalões do exército - embora, de fato, fôsse rara - agrediu no seu âmago a moralidade burguesa. Entretanto, o mais importante aspecto do Caso Redl não foi imediatamente óbvio. Aí estava o caso de um homem que triunfara precisamente porque pudera assumir uma máscara que encobria por completo sua verdadeira personalidade. Na sociedade habsburguesa como um todo, artificialidade e fingimento eram nesse momento mais a regra do que a exceção, e em todos os aspectos da vida o que importava eram as aparências e os adornos apropriados. Ninguém percebeu isso melhor, ou o retratou melhor em sua obra do que Arthur Schnitzler.(grifos do autor) (2).
Em relação à sexualidade em Viena, diz Gay: "Neste gélido clima legal e político, mantido como era pelas atitudes culturais dominantes, as ambições das mulheres austríacas por educação e independência tinham de encarar um incontrolável ridículo. Sutilmente, esta atmosfera era alimentada pelas obras de ficção popular austríacas, entre os quais os contos dolorosamente eróticos de Arthur Schnitzler ocupavam um lugar especial. Era uma literatura transbordando de lindas mocinhas, na maioria das vezes provenientes das classes mais baixas - balconistas, garçonetes, dançarinas - vítimas deleitáveis, dóceis, quase sempre involuntárias dos jóvens oficiais, calejados bon vivants, ou ricos e mimados burgueses que as exploravam para seus prazeres. Contos, novelas e peças mostravam a süsse Mädel como uma válvula de segurança necessária para as famílias de classe média e das classes superiores: fornecendo o prazer sexual que a jóvem e respeitável mulher não ousava oferecer antes do casamento e mesmo depois muito raramente, elas resgatavam do colapso os casamentos e da neurose os machos sexualmente privados. Na verdade, Schnitzler, pelo menos, não estava traçando um painel esfuziante e despreocupado de uma Viena alegre e irresponsável., ele estava produzindo uma crítica mordaz de sua crueldade, dureza e hipocrisia. Mas leitores superficiais entendiam tal ficção como uma exuberante aprovação da preocupação de Viena com vinho, mulheres e música - especialmente com as mulheres. Essa calúnia, contra a qual Freud protestou energicamente, não ajudou a melhorar as perspectivas das feministas naquele país.(3) .
Isto posto, vamos ao resumo do roteiro do filme de Kubrick, baseado no TRAUMNOVELLE.
O enredo gira em torno de um jóvem casal da alta burguesia, um médico e sua mulher. Uma noite vão para uma grande festa onde se separam momentaneamente o que dá oportunidade para que ambos sejam abordados sexualmente por possíveis parceiros, oportunidade que ambos rejeitam. O marido tinha ido buscar uma bebida, a mulher fica sozinha e é abordada por um homem que a tira para dançar e insistentemente a tenta seduzir. Enquanto dança, vê de longe seu marido com duas jóvens e sedutoras mulheres. Em seguida não mais vê o marido. Ela teme que ele tenha se envolvido sexualmente com as duas mulheres. Ignora que nada tinha ocorrido, o diálogo do trio fora interrompido pelo anfitrião, que pede socorro ao médico para avaliar uma prostituta que se drogara. Ao chegarem em casa, comentam sobre a festa, a mulher volta a perguntar se o marido teria tido algo com as mulheres, ele explica que não. Ela insiste, perguntando o que teria acontecido se não tivesse havido o chamado do anfitrião.
O marido responde de forma ambígua, de certa forma apoiando-se no que seriam prerrogativas masculinas, socialmente aceitas e que, caso tivesse acontecido algo, devido ao forte desejo, isso não interfereria no casamento. A mulher se irrita e pergunta o que ele pensa dela quanto a isso. Ele diz que em sendo ela mulher, casada, mãe, gozando de tanta comodidade, isso jamais passaria pela cabeça dela, afinal ela é mãe dos filhos deles. Abespinhada, ela diz então que no ano anterior, durante as férias, tivera uma intensa atração sexual por um determinado homem, tão intensa que se ele tivesse feito qualquer aproximação, ela teria deixado tudo para seguí-lo.
Tal inesperada afirmação tem um efeito devastador sobre o marido. Ainda sob o impacto da mesma, sai para atender um chamado médico. A partir deste momento entra num clima oniróide, onde preso obcessivamente às imagens da imaginária traição da mulher, vai passar por várias situações sexuais frustradas (a filha do cliente morto, a prostituta) até chegar á inesperada descoberta de uma sociedade secreta onde se praticam orgias sexuais ritualizadas. Desobedecendo todas as admoestações, consegue penetrar na festa desta sociedade. Ë reconhecido por uma mulher, que o avisa que corre perigo de vida, deve fugir o quanto antes. Antes que o consiga é detido, desmascarado, ameaçado com punições e é finalmente expulso. No dia seguinte, tenta investigar o que teria acontecido. Depara-se com possíveis evidências de violências e assassinatos, que logo são desmentidos por quem poderia esclarecê-las. Mais uma vez lhe é dito para abandonar sua curiosidade, pois pode meter-se em grandes dificuldades, ele ignora os poderes que está afrontando, tal sociedade secreta é frequentada pelas mais importantes personalidades imagináveis.. Atordoado, volta para a mulher que o tranquiliza.
Considerando, como já disse, esse enrêdo como o "conteúdo manifesto", vemos de imediato a extraordinária importância da sexualidade. É ela que move toda a trama, é o que desencadeia a crise do casal, o que, por sua vez, leva à descoberta central e escandalosa de uma sociedade secreta frequentada pelos altos escalões do poder, onde se promovem orgias ritualísticas. A existência desta sociedade secreta é a evidencia-mor da perversão e corrupção dos "grandes homens", daqueles que deveriam ser os bastiões da moralidade e da ética da sociedade. O Caso Redl seguramente é um ingrediente nesta composição. Não deve ser a toa que o próprio ritual e os oficiantes máximos da orgia, lembram um pouco os ritos e os emblemas dos altos dignatários da Igreja Católica. O baile de máscaras é um significante da hipocrisia geral.
Quanto ao conflito do casal, Schnitzler mostra uma atitude radical ao defender a sexualidade feminina. A mulher do médico, ao confessar sua fantasia, reivindica direitos iguais frente à sexualidade. Isso o desestrutura, impelindo-o uma busca de reafirmação sexual, nos episódios insólitos já relatados. Ao final de tudo, estando o marido desorganizado e desestruturado, a mulher se revela o elemento forte do casal. É ela quem o ampara, ao dizer que devem considerar-se pessoas de sorte por terem sobrevivido às próprias fantasias sexuais. Ao agir assim, procura integrar em suas consciências e na vida em comum aquilo que até então estava negado, reprimido ou projetado.
Qual seria o possível "conteúdo latente" deste "sonho-novela"? Talvez possamos rastreá-lo na intensidade da reação do médico à "confissão" da mulher. De certa forma, esta "confissão" tem uma clara conotação de vingança agressiva ciumenta, uma retaliação por ter a mulher se sentido traída na festa.
Assim, a "confissão" da mulher alcança plenamente seus objetivos de vingança, pois causa uma imensa ferida narcísica no marido. Mas não se pode reduzir a "confissão" apenas a esta dimensão de vingança ciumenta. Ela também reafirma a presença de um desejo próprio, até então ignorado pelo marido.
A ferida narcísica sofrida por ele tem uma consequência imediata, mais evidente e superficial. Ele sai e procura uma vingança. Se a mulher pode traí-lo, ele se sente autorizado a pagar na mesma moeda.
Mas penso que a ferida narcísica tem consequências mais profundas que o simples desejo de vingança. Ao ouvir a "confissão" da mulher, o marido é envolvido pela sensação de "estranho", do "unheimich". Ele não pode reconhecer sua mulher naquela que lhe fala aquilo. A mulher dele, que lhe era tão familiar, parece uma estranha, uma outra mulher, uma mulher nunca vista
Esse estranhamento profundo, esse desencadear da vivência de que algo estranhamente familiar, algo familiar e estranho, é uma sensação que acompanha - como Freud diz - a emergência do desejo inconsciente, da fantasia reprimida. Aparece quando algo que devia permanecer oculto vem à luz. (4). E o reprimido que retorna, chamado pela fala da mulher, são as vivências infantis ligadas a sua própria mãe, a dolorosa descoberta de que a mãe tem desejos sexuais dos quais está excluido.
Ao tomar conhecimento das fantasias eróticas de sua mulher que despertam seus ciúmes e seu sentimento de exclusão, o marido regride, reatualiza naquele momento dolorosas vivências do passado, ligadas a sua sexualidade infantil, à descoberta da sexualidade da mãe, dos pais, dos adultos, sexualidade da qual está irremediavelmente excluído. Essa hipótese permite entender toda a sequência oniróide noturna que dá seguimento à ação do personagem - o encontro com a filha do paciente, com a prostituta, com o baile de máscaras, com a sociedade secreta - sequência que se desenrola dentro de um clima totalmente marcado pela estranheza.
Assim como o marido inadvertidamente deu-se conta dos desejos sexuais da mulher, ele inadvertidamente descobre que há uma sociedade secreta onde os "grandes homens" têm suas práticas sexuais. Ele está obcecado com a imagem da mulher-mãe tendo relações sexuais, está obcecado com a descoberta da sociedade secreta. Está como a criança que descobre que os pais tem vida sexual, que os adultos todos tem vida sexual.
Neste sentido, efetivamente existe uma "sociedade secreta" sexual, da qual ele não tinha conhecimento e estava excluído, situação na qual se vê toda criança.
Visto assim, compreendemos que a cena da orgia ritual na sociedade secreta é uma representação onírica da cena primária, do coito entre os pais, objeto de grande apelo voyeristico. O marido tenta participar da cena primária mas é impedido, é reconhecido e expulso. Sua expulsão da orgia onde estão os "grandes homens" - entenda-se "os pais", os "adultos" - é uma repetição da dolorosa castração, da exclusão necessária frente ao coito paterno.
Os vários episódios que circunscrevem a orgia e a sociedade secreta, que envolvem agressões, violências, ataques, assassinatos são representações do clima estranho, mesclado de sexualidade e violência, que é proprio das versões infantis da cena primária, das fantasias edipianas mais arcaicas.
A sensação de estranheza está presente em todo o visual do filme. Podemos dizer que Kubrick consegue a proeza de colocar a Viena de quase um século atrás na Nova York de hoje, que aparece soturna, em imagens lúgubres, escuras, misteriosas. Os ambientes internos, como na festa, nos bares, nas residências, têm aquela opulência pesada e sufocante fin-de-siècle.
Uma outra proeza de Kubrick é entender a atualidade do enredo de Schnitzler. Isso é particularmente pertinente quando lembramos que vivemos um momento de grande liberação dos costumes, onde a repressão social sobre o sexo é infinitas vezes mais leve do que era na Viena de Schnitzler. Isso poderia levar aos mais apressados concluirem que o sexo hoje é o que mostram as fitas pornográficas - um mero e incansável exercício aeróbico, que nada exige além de preparo físico.
Kubrick, retomando Schnitzler, nos lembra a dimensão simbólica que a sexualidade humana assume e que a distancia da mera animalidade instintiva. A sexualidade humana está plasmada pelo complexo de édipo e se expressa através de tortuosas e complexas vias que atravessam uma espessa concentração de fantasias e desejos inconscientes que vão ter papel decisivo no desempenho sexual propriamente dito.
Na Viena fin-de-siècle, em Nova York hoje, em qualquer lugar do mundo, em qualquer época, os relacionamentos amorosos através dos quais se expressa a sexualidade humana são complexos e difíceis, determinados que são pela fantasia e pelo desejo inconsciente.
É verdade que os costumes sociais mudam no tempo, mas as estruturas psíquicas não desaparecem, os conflitos entre o desejo inconsciente e a cultura permanecem. O que muda é a expressão sintomática destes conflitos. Se na Viena fin-de-siècle a histérica poderia desmaiar ao ouvir a palavra "pênis", a histérica de hoje em Nova York não só não desmaia ao ouvir aquela palavra como tem vida sexual livre e incontáveis relações sexuais. Mas continua tão frígida quanto sua irmã que vivia há cem anos em Viena. O acesso ao prazer continua sendo um árduo e difícil trajeto a ser penosamente descoberto por cada um.
Schnitzler mostra uma mulher, mãe, com desejos sexuais tão fortes quanto os do homem, o que provoca um certo escândalo, é algo estranho na Viena de quase cem anos atrás. Kubrick, ao mostrar a mesma história hoje, provocará reações muito diferentes daquelas suscitadas por Schnitzler?
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1) Roudinesco, Elizabeth e Plon, Michel - Dicionário de Psicanálise - Jorge Zahar Editor - Rio - 1998 - p.691
2) Janik, Allan e Toulmin, Stephen - A Viena de Wittgenstein - Editora Campus - 1991 - p.58-9
3) Gay, Peter - FREUD - a life for our time - Norton - New York/London - 1988 - p. 510
4) Freud, S. - O "Estranho" - Obras Completas de S. Freud - vol. XVII - Imago Editora - Rio - 1976 - p. 301
Sérgio Telles é psicanalista membro do Depto. de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e escritor, autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO - Imago Editora - Rio
E-mail : setelles@uol.com.br
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