Quando o patrimônio natural se transforma em cultural


      Arthur Soffiati


      Palavras-chaves
      Bens naturais. Natureza. Patrimônio natural. Bens culturais. Patrimônio cultural. Proteção. Tombamento. Antropocentrismo.


      As sociedades humanas constituem um tipo de organização muito comum na natureza, mas que, primeiro pelo mito, depois pela filosofia e ultimamente pela ciência, julgaram ter rompido seu cordão umbilical com a entidade-mãe. Em todas as sociedades arcaicas, há um mito fundante que separa humanos de animais.
          A revolução judaico-cristã, como bem explica Mircea Eliade, rompeu os laços entre o povo eleito e a natureza. Em ensaios brilhantes, Kostas Papaionnou mostra como a natureza não-humana vai desaparecendo dos livros sagrados dos hebreus-judeus-cristãos-muçulmanos, só figurando como uma entidade inferior a ser dominada pelos interesses humanos.

      As filosofias humanistas e mecanicistas consagram a supremacia do “Homem” a partir do Renascimento, primeiro no coração da civilização ocidental, depois num mundo ocidentalizado.
          A partir de então, a filosofia, com o incondicional apoio da ciência, tenta demonstrar, numa lógica matemática, que natureza e cultura constituem dois pólos não apenas separados por uma fenda abissal mas antagônicos e excludentes. No reino da natureza, ficam todos os seres inferiores, enquanto que o reino da cultura pertence a seu construtor, o “Homem”.
          Imbuído de uma superioridade por ele mesmo inventada e a si atribuída, a natureza só tem valor na medida em que se apresenta útil ao ser humano. Consolida-se, assim, uma atitude antropocêntrica, manipuladora, instrumentalizadora e utilitarista.

      E de que forma esta concepção se reflete na noção de patrimônio? Cabe notar, primeiramente, que os termos mais freqüentemente utilizados por aqueles que lutam pela proteção da natureza e da cultura foram sacados da economia.
          Patrimônio, em termo de dicionário, é herança paterna, riqueza, conjunto de bens. E bem trata-se de algum pertence com valor de uso ou de troca. Se imóvel, o bem é constituído de terras ou edificações. Se móvel, de moeda ou de títulos.
          O próprio termo tombamento significa inventário de riquezas que possam ser usadas para fins econômicos. Enfim, o vocabulário corrente entre os que trabalham com a proteção da natureza e da cultura deriva da economia.

      A figura do tombamento para fins de proteção nasceu no contexto da Modernidade, como a entenderam Marx e Engels: uma destruição criativa ou uma criação destrutiva, tão bem expostas e enaltecidas no Manifesto Comunista, e, mais recentemente, expressa por Marshal Berman, em “Tudo que é sólido desmancha no ar”.
          Proteger ecossistemas, cidades, bairros, edificações, sítios arqueológicos, peças móveis, manifestações culturais vivas afigurou-se, para socialistas e liberais, como um movimento retrógrado, reacionário, empenhado em deter a marcha inexorável do progresso e do desenvolvimento.
          No entanto, para nacionalistas, artistas, historiadores, arqueólogos e naturalistas, proteger paisagens naturais e obras culturais adquiriu o significado de assegurar a perenidade de elementos indicadores de identidade nacional, cultural e ecológica em meio a transformações incessantes.

      Aos poucos, a proteção de “bens” naturais e culturais transforma-se numa atitude progressista, só compreensível num contexto de constante mudança, já que, entre os povos arcaicos, não há sentido em proteger indicadores do passado ou da natureza, pois o passado está sempre vivo no presente e a natureza imiscui-se na cultura sem que haja consciência destes processos.

      No Brasil, a figura do tombamento proposta por Mário de Andrade em ante-projeto escrito em 24 de março de 1936, a pedido de Gustavo Capanema, só considerava a natureza passível de tombamento quando agenciada pela indústria humana. Assim, o patrimônio nacional era constituído, no seu entendimento, pelo conjunto de obras de arte pura ou aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira, pública ou particular.
          No entanto, o Decreto-Lei 25, de 30 de novembro de 1937, organizando a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, estendeu o instituto do tombamento também aos monumentos naturais, sítios e paisagens notáveis, agenciados ou não pela indústria humana.
          A proposta de Mário de Andrade é francamente antropocêntrica, mas a do Decreto-Lei 25 não deixa também de sê-lo, na medida em que só os bens naturais notáveis para o ser humano merecem a proteção com a figura do tombamento.

      Atualmente, com o novo espírito científico apregoado por Bachelard, a distinção antes cristalina entre natureza e cultura tornou-se fluida. A natureza, em seu processo de transformação, produz o cérebro humano, que produz a cultura, que interfere na natureza, que muda a cultura, numa relação inter-retro-ativa ou num processo circular complexo, como Edgar Morin mostrou de sobejo nos volumes de “O método”, sua obra máxima. Não há mais separação rígida entre natureza e cultura.
          Deste novo paradigma, decorre que diversas figuras de proteção podem ser aplicadas à natureza e à cultura. De uma prisão, porém, não se pôde escapar: o valor é ainda atribuído pelo ser humano.
          Por outro lado, o antropocentrismo absoluto foi abalado quando a etologia demonstrou que o olhar humano é apenas um olhar entre tantos outros existentes na natureza.


          Aristides Arthur Soffiati

          Professor da Universidade Federal Fluminense
          Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro
          soffiati@censa.com.br


      © Aristides Arthur Soffiati Netto, 2000


      Visite
        outras páginas sobre o patrimônio histórico do norte-noroeste fluminense (Estado do Rio de Janeiro, Brasil)


      Referência bibliográfica desta página

      SOFFIATI [NETTO], [Aristides] Arthur, 2000. Quando o patrimônio natural se transforma em cultural. Disponível na Internet: http://www.oocities.org/lagopaiva/natural.htm. 21 abr. 2000 (criação).

Campos dos Goytacazes Campos de Goytacazes Campos dos Goytacases Campos dos Goitacazes Campos dos Goitacases Cidade de Campos campista UENF Universidade Estadual do Norte Fluminense queima de canaviais prefeitura municipal de campos dos goytacazes campos rj prefeitura municipal de campos dos goitacases mangue mangues manguezais