Construções rurais coloniais
    no quadrilátero do açúcar,
    Estado de São Paulo, Brasil ©




    Figura 1. Sede da Fazenda Pau-d’Alho, em Itu, São Paulo: exemplo de edificação paulista de tradição bandeirista, com o pretório ao centro, coberto pela água fronteira do telhado. Fonte: Katinsky, 1976:50.


    Artigo publicado originalmente em:
      Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba (Rev. IHGP) 5:37-46, 1997.

    Celso Lago Paiva

      Pesquisador de História da Técnica
      Sócio Correspondente do Instituto Histórico e
      Geográfico de Piracicaba
      - IHGP
      Membro fundador e Coordenador do Grupo de Estudos
      de História da Técnica
      - GEHT/CMU/UNICAMP
      Editor das páginas do Conselho Internacional de
      Monumentos e Sítios
      - ICOMOS
      celsolag@terra.com.br


    Resumo
      Analisadas edificações rurais construídas no quadrilátero do açúcar paulista (Estado de São Paulo, Brasil) entre meados do século XVIII e meados do século XIX, constatou-se a presença de diversas características comuns, consideradas primitivas, como o predomínio da técnica da taipa-de-pilão, vergas retas, balaústres coloniais, telhado em quatro águas e beiral largo suportado por cachorros.
      A partir da introdução da cultura do café, ainda no segundo quartel dos oitocentos, as construções passaram a incorporar diversas alterações construtivas, em técnicas e em materiais, como a eliminação do beiral, multiplicação das águas e ereção de paredes de alvenaria de tijolos.



    Palavras-chave
      História da técnica - São Paulo - Quadrilátero do Açúcar - Engenho - Taipa-de-pilão - Taipa-de-mão - Alvenaria.



    Agradecimentos
      O autor agradece às pessoas que o auxiliaram nas pesquisas:
      Antonio da Costa Santos, D.r, PUCCAMP, Campinas;
      Elizeu Meschiari, Prefeitura Municipal de Americana;
      Ema Elisabete Rodrigues, CMU/ UNICAMP, Campinas;
      Julio Roberto Katinsky, D.r, FAU/USP, São Paulo;
      Marcelo Caricol Iaralham, Eng.o, Prefeitura Municipal de Indaiatuba;
      Maria Luiza Silveira Pinto de Moura, D.ra, Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA), Campinas;
      Marly Therezinha Germano Perecin, D.ra, IHGP, IHGSP e Secretaria Estadual da Educação, Piracicaba;
      Nilson Cardoso de Carvalho, Fundação Pró-Memória (FPMI), Indaiatuba;
      Paulo Sérgio Monteiro da Costa, GEHT/ CMU/ UNICAMP, Campinas.



      Introdução


          Poucas construções coloniais restaram no Estado de São Paulo [no sudeste do Brasil]. Muitas das sobreviventes foram tão deformadas por reformas que dificilmente se poderia ter idéia de sua feição original.
          O autor analisou edificações (incluindo engenhos) encontradas no chamado quadrilátero do açúcar (Petrone, 1968:7-8), área compreendida entre Sorocaba, Piracicaba, Mogi-Guaçu e Jundiaí, onde entre 1765 e 1851 desenvolveu-se a cultura da cana-de-açúcar, responsável pelo primeiro ciclo econômico produtivo que a Capitania conheceu.



      Características das construções
      coloniais na região


          A análise das construções antigas sobreviventes, incluindo urbanas, permitiu sua caracterização com base em elementos comuns, consideradas primitivos:

          1. Paredes mestras de taipa-de-pilão, especialmente na edificações mais antigas, com alicerce na mesma técnica ou, mais raramente, de alvenaria de pedras (diabásio ou granito; Tulha do Proença, em Campinas). Certas edificações mais recentes (já no primeiro quartel dos oitocentos) incorporaram a técnica da taipa-de-mão, mesmo nas paredes mestras, com mureta de vedação de alvenaria de pedras e paus-a-pique de estipes de palmito [ou juçara] (Euterpe edulis, Arecaceae; Casa do Povoador, em Piracicaba).

          2. Beiral largo (0,60 m a 1,00 m) amparado por cachorros (com discreto entalhe na extremidade ou lisos). O sistema de ancoragem dos cachorros nos caibros era muito variável, não havendo identidade nesse particular entre quaisquer construções sobreviventes (Paiva, 1996:17). Geralmente uma peça independente (a âncora) unia a extremidade interna do cachorro à retranca apoiada sob o caibro. Outro sistema, mais primitivo, fazia os cachorros passarem por orifícios justos escavados no próprio frechal, o que dispensava mais ancoragem. O forro de tábuas (guarda-pó) era disposto entre os cachorros e as telhas.

          3. Planta-baixa retangular, fechada.

          4. Telhado de quatro águas, rigorosamente desprovido de rincões, armado por terças que suportavam caibros com sambladura basal no frechal interno (ou apoiados sobre este, sendo cortados sobre a parede), sem o uso de tesouras; a terça da cumeeira apoiava-se por esteios sobre frechais de paredes mestras. O ripado era de fasquias de estipes de juçara. A madeira era desdobrada com machado, posteriormente com traçadores, sendo tardio o emprego de serras d’água. O acabamento era feito com enxó.

          5. Vergas retas ou, mais raramente, em arco abatido; vergas, ombreiras e peitoris lisos, sem entalhes, de madeira.

          6. Janelas parcas e com frequência providas (se no térreo) de grades de balaústres verticais de seção quadrada e dispostos com as quinas voltadas para fora, denominados “balaústres coloniais” (Paiva, 1996:14). Escuros como única vedação, basculando por gonzos. O número de janelas por aposento aumentou consistentemente com o tempo, chegando ao máximo já no primeiro quartel dos oitocentos (Casarão do Pau Preto, Indaiatuba, Figura 2).

      Casarão do Pau Preto, Indaiatuba SP     Figura 2. Casarão do Pau Preto, Indaiatuba, SP. Construção rural com implantação original em periferia urbana. Janelas numerosas providas de balaústres coloniais. Os cachorros foram eliminados.



          Esse mesmo tipo de grade ocorre em antigas construções japonesas, país visitado já em 1542 pelos navegantes de Portugal; Paulo Sérgio Monteiro da Costa fotografou elemento idêntico (Figura 3) na cidade de Yamaguchi, província de mesmo nome; essa região teve longo contato com navegadores e jesuítas portugueses.

      Pagode zen-budista de Rurikoji

          Figura 3. Detalhe do pagode zen-budista de Rurikoji, monumento nacional erguido em 1442 na cidade de Yamaguchi, província de mesmo nome, distrito de Chugoku, ilha de Honshu. Janela provida de balaústres de seção quadrada em disposição enviesada. Fotografia de Paulo S. Monteiro da Costa.





          7. Implantação em plataforma aterrada, com a fachada principal voltada para o declive, nunca longe da água corrente. Os engenhos sempre se utilizaram de desníveis entre as diversas plantas de produção, mesmo em único edifício.

          8. Piso de terra apiloada.

          Ao conjunto dessas características diagnósticas denomino partido colonial de construção, aplicável estritamente apenas nessa região e época. Certos detalhes construtivos próprios de edificações rurais anteriores a 1765 nunca foram utilizadas na região durante o ciclo do açúcar, como conversadeiras nas janelas, coices para basculação dos escuros, padieiras (forro inferior do sobrearco capialçado unido com a verga em peça única) e cachorros decorados.

          A arte aparentemente não entrava na cogitação dos construtores civis coloniais, mas alguns tratamentos de detalhes construtivos possuem hoje certo apelo estético. Nota-se o ritmo das aberturas na fachada do casarão do Pau Preto, em Indaiatuba, sendo as janelas numerosas (doze em 35,4 m de fachada; Figura 2) providas de balaústres coloniais, gerando viva impressão de movimento para quem se aproxima (ritmo já mencionado por Andrade, 1965:89-90 para o uso desse tipo de grade no controle dinâmico da iluminação interna). Discreta intenção decorativa revela-se no entalhe simples da extremidade distal dos cachorros (cujo desenho padrão mostra-se na residência jesuítica de Embu), no adoçamento das colunas dos alpendres e no desenho dos ábacos dessas mesmas colunas, sustentando os frechais. O entalhe terminal das vergas e soleiras das janelas do engenho da Fazenda Atibaia (Figura 4) é eminentemente decorativo em seu individualismo. Encontram-se na região exemplares tardios de forro-mineiro, protetores contra os rigores hibernais, mas por natureza decorativos.



      Casas de tradição bandeirista

          Algumas grandes casas de morada ituanas seguem o partido de tradição bandeirista (Katinsky, 1972, 1976), trazendo dos seiscentos características bem definidas mas já em plena evolução modificadora: faixa fronteira com alpendre ao centro, ladeado por um cômodo em cada extremidade com portas para esse pretório; frechal no alpendre sustentado por duas ou mais colunas oitavadas de madeira de base quadrada; depósito sobre forro de tábuas em um ou mais cômodos; paredes mestras de taipa-de-pilão; salão central por detrás do alpendre, comunicando-se com os demais cômodos e atingindo a fachada traseira; telhado de quatro ou de duas águas (tendendo a incorporar anexos geradores de rincões).
          A casa de tradição bandeirista de revelação mais recente (sede da Fazenda Engenho-d’Água) foi descoberta no município de Indaiatuba (Paiva, 1996:332-33) e é propriedade do município (Figura 5). Muito bem conservada apesar de diversas alterações, está sendo exaustivamente pesquisada. Possui dimensões maiores que a maioria das casas desse partido, vergas retas, telhado de duas águas (embora existam indícios, como oitões de alvenaria de adobes, de que originalmente teriam sido quatro as águas) e distribuição em duas faixas longitudinais de “casas” (cômodos). A restauração de feição próxima à original parece plenamente realizável.


      Faz.
Engenho-d’Água, Indaiatuba
        Figura 5. Casa-sede da Fazenda Engenho-d’Água, em Indaiatuba. As quatro aberturas visíveis no centro da fachada principal correspondem
      ao pretório, hoje obturado.






      Construções pós-bandeiristas

          O partido dito “de tradição bandeirista” não alcançou o século XIX, mas desde meados dos setecentos sua rigidez formal foi sendo relaxada, permitindo soluções até então desconhecidas ou pouco utilizadas, como telhados de duas águas, anexos que exigiam rincões no tratamento do telhado (casa do Quinzinho, em Sorocaba), vergas em arco abatido (casas das fazendas ituanas) e o alteamento das paredes internas (o que refletiu na altura impressiva do pé-direito máximo do pretório, de até mais de cinco metros, como no Engenho-d’Água, em Indaiatuba). Os pretórios foram transformados em “varandas” pelo fechamento completo da fachada principal (casa do brigadeiro Tobias, no distrito sorocabano do mesmo nome; Lemos, 1984:30-34). Acredito que pesquisas futuras revelarão outras mais edificações que representem estágios de evolução destas casas para as construções mais livres que as sucederam.
          A grande casa do Proença, ao lado da Tulha, em Campinas, datada do início dos oitocentos (Antonio da Costa Santos, com. pes.), exemplifica essas construções com elementos modernizantes: faixa posterior transformada em um recinto, pretório fechado, piso assobradado, incorporação da novidade das camarinhas (as alcovas, que se vulgarizariam com o café), janelas desprovidas de balaústres, uso intensivo de ferragens. Essa grande edificação conserva soluções arcaicas, como a planta nitidamente bandeirista, com a faixa fronteira com seus três recintos e o telhado de quatro águas (com ripado de fasquias originais de estipes de palmito). O grande porte e o pé-direito elevado já prenunciam os solares do café.
          A seu lado ergue-se a chamada Tulha do Proença, mais antiga, também recuperada e consolidada pelo proprietário. Seu programa original é desconhecido. De grandes dimensões, com divisão transversal hoje inexistente (mas cujo alicerce em taipa-de-pilão foi revelado por prospecções pelo proprietário), mostra envazaduras originais apenas na fachada principal. Uma janela mostra as sambladuras das grades em diagonal, excepcionalmente robustas. As demais características são primitivas, com exceção da armação do telhado, que se vale de estrutura aparentemente antecessora da tesoura. Consta de duas empenas opostas, unidas por viga horizontal correspondente ao tensor; um esteio (de localização equivalente à do pendural) transfere o peso da cumeeira à viga horizontal. No mesmo alinhamento um esteio ensamblado ligava a viga ao chão, o que descaracteriza a estrutura como tesoura. Outro elemento de interesse é o piso de terra apiloada, um dois únicos exemplares autênticos preservados no quadrilátero do açúcar.



      Sobrados rurais

          O final do século XVIII assistiu ao erguimento dos primeiros sobrados rurais (com o térreo útil sob o sobrado), quase certamente influência dos entrantes mineiros e de paulistas que retornavam de Minas Gerais (Paiva, 1996:30).

      Sítio Grande
          Um dos mais antigos ainda existentes, citado no inventário de seu construtor com esse nome, depois denominado Fazenda Chapadão e hoje pertencente ao Exército. Já existia em 1792 (Pupo, 1969, 1983; essa data carece de documentação), sendo talvez o decano das construções da região de Campinas, ao lado da Tulha do Proença. Trata-se de grande retângulo de taipa-de-pilão com o segundo andar de taipa-de-mão, sendo este provido de numerosas janelas com vergas retas. O telhado é de quatro águas. Algumas janelas conservadas no rés-do-chão ainda portam os balaústres de base quadrada. As dimensões e a localização em fundo de vale ao lado de ribeirão indicam que abrigava engenho real, embora o inventário de seu construtor nada especifique a respeito. Muitas alterações sérias não deturparam completamente a feição austera dessa edificação.
          Uma segunda construção foi erigida na fazenda em meados do século XIX para morada; muito alterada, conserva bandeiras de portas internas providas de rótulas fixas, elemento de ascendência urbana.

      Salto Grande
          Outro sobrado já dos primeiros anos dos oitocentos, no atual território de Americana; também conhecida como Sobrado Velho, situa-se junto à foz do Jaguari no Atibaia formando o Piracicaba. De propriedade do governo estadual e muito bem conservado, este antigo engenho real pode ser restaurado com pesquisa adequada. De grande porte, possue paredes mestras de taipa-de-pilão e paredes secundárias de taipa-de-mão. Foi adulterada nas primeiras décadas do século XX com o lançamento de segundo lanço assobradado, com a ereção de diversos tabiques de tijolos e com a substituição em várias janelas do térreo das antigas grades de balaústres de base quadrada por outros caprichosamente torneados, desproporcionais e estranhos ao uso paulista.
          A fachada fronteira possui longo prolongamento da senzala, de mesma idade do engenho e originalmente desprovida de janelas na fachada principal. Minha pesquisa indica que o engenho original era provido apenas do térreo, sendo logo acrescido do andar superior para morada senhoril. A imensa armadura de seu telhado ainda dispensa estrutura que lembre tesoura. Existem cachorros que se tornaram anacrônicos pelo alteamento do telhado em recente reforma de recuperação. Tanto este engenho quanto o Sítio Grande foram levantados por irmãos nascidos em Minas Gerais (Pupo, 1969, 1983; pesquisa do autor); indício do uso mineiro é o forro-mineiro encontrado em pequeno cômodo do andar sobrado (Pupo, 1983:130).
          Essa construção tem o piso do andar térreo escalonado da frente para o fundo, necessário para facilitar o trabalho com a cana, seu caldo e os produtos intermediários da produção do açúcar, possuindo o tendal onde o açúcar era purificado nas formas. Se for legítimo, trata-se do único tendal sobrevivente do período colonial neste Estado. O engenho setecentista da chácara Rosário, em Itu, estudado por Katinsky (s. d.) também conserva o escalonamento altimétrico, bem como o antigo engenho da Faz. Mato Dentro, em Campinas, erguido na primeira década do século XIX, hoje existente como ruínas sob e ao lado do casarão imperial construído no mesmo local; estes velhos restos albergam muros de taipa-de-pilão sobre alvenaria de pedras, técnica mista relativamente rara na Província.

      Casa de máquinas da Fazenda Atibaia
          Em Campinas, possue o andar do térreo em larga alvenaria de tijolões, embasado em fundações de pedras, com detalhes construtivos próprios da taipa-de-pilão, como engras e sobrearco capialçado nas portas; duas grandes portas sob frechal de enorme seção deveriam dar passagem aos muares cargueiros. O piso é de grandes lajes de granito.
          O andar do sobrado (Figuras 4 e 5) possui estrutura de gaiola, próprio da taipa-de-mão, carecendo dos paus-a-pique, substituídos por tábuas em diagonal apoiadas nos esteios e nas ombreiras; os vãos são preenchidos por alvenaria de ladrilhos (de 0,235 x 0,235 x 0,04 m), aparelhados na horizontal ou na diagonal, sem critério definido e com argamassa de barro.

      Fazenda Atibaia, Campinas SP



          Figura 4. Casa de máquinas da Fazenda Atibaia, Campinas: detalhes do andar do sobrado. As paredes são de alvenaria de ladrilhos dispostos na horizontal ou inclinados.





      Fazenda Atibaia, Campinas SP
          Figura 5. Casa de máquinas da Fazenda Atibaia, Campinas: detalhes do andar do sobrado. Estrutura de gaiola, cachorros com guarda-pó sobre o frechal, verga [e peitoril] reta[s] com lateral recortada; escuros. Percebe-se o esteio que liga o frechal à verga, no alinhamento de cada ombreira.



          Um rego profundo de algumas centenas de metros conduzia na encosta água do rio Atibaia para roda-d’água de madeira situada sob o sobrado, no andar térreo, sendo o inferno alguns metros mais baixo que o andar térreo, cortando o alicerce e descarregando no próprio rio a poucos metros. A água alimentava antes da roda-d’água um moinho cujas mós ainda se encontram no local, enterradas. As janelas do sobrado mostram entalhe lateral caprichoso e original (Figura 4).
          O telhado de quatro águas apresenta os cachorros originais, com âncoras. Construção visivelmente antiga, colonial nos detalhes, demonstra tentativa de passar das técnicas de taipa para as de tijolos, mas ainda pouco confiante na capacidade estrutural desses elementos. Daí a necessidade da gaiola e de grossos esteios de madeira sustentando os baldrames internos do sobrado. De idade desconhecida, deve ser anterior à década de 1860. Pode ter servido à indústria do açúcar antes do café. Como hipótese confirmável pela arqueologia construtiva (Paiva, 1996:38) proponho que as paredes do andar superior tenham sido originalmente de taipa-de-mão, sendo os panos substituídos na era cafezista pela alvenaria de ladrilhos; mais difícil é aceitar que a taipa-de-pilão do térreo tenha sido substituída pela alvenaria de tijolos [podendo estar encamisada por parede de tijolos].


          Uma característica constante dos sobrados coloniais da região (e de Minas Gerais) foi ilustrada em 1845 por Miguel Archanjo Benicio d’Assumpção Dutra [Miguelzinho Dutra], o iconógrafo ituano-piracicabano (Bardi, 1981:23), que figura em aquarela a fazenda na Venda Grande, em Campinas, onde mostra duas construções. Trata-se do acesso ao andar do sobrado, feito por escada externa que alcançava a porta central. Essa providência isolava o sobrado, quase sempre morada do fazendeiro, da planta fabril no térreo e dos escravos. Ao lado do casarão aparece um galpão sem paredes de duas águas com a cumeeira sustentada por esteio que ia ao chão e quatro esteios nos cunhais. O inventário do proprietário Theodoro Ferraz Leite, em 1837, cita “Casas de Sobrado” (ilustrado por Dutra) e “Fabrica” com suas 77 fôrmas de açúcar (3.o Ofício, Campinas, caixa 263, n.o 6681; CMU, UNICAMP).
          Desenrolou-se a batalha da Venda Grande, na Revolução Liberal de 1842, à frente desse sobrado, onde se sucederam arbitrariedades das tropas oficiosas depois da refrega (Pupo, 1969:123-136). Miguelzinho Dutra, como liberal dedicado, deve ter pintado esse local por sua importância de sítio histórico, esquecido pelas autoridades que permitiram sua eliminação.

          Um complemento construtivo típico de Minas que os mineiros introduziram em inúmeras construções alhures é o forro-mineiro, esteira trançada de lâminas de taquara, em malhas estreitas, suspenso pouco abaixo dos frechais sobre os cômodos (Paiva, 1996:30). O trançado variava bastante. A conservação térmica deve ter dado origem a essa prática. Exemplares bem restaurados encontram-se na residência do Caraça, em Minas. No quadrilátero do açúcar encontra-se pequeno exemplo no andar superior do Engenho do Salto Grande (Americana), e no solar do Barão de Itapura (sede da PUCC), no centro de Campinas, do último quartel dos oitocentos. Neste último caso o forro, de trançado singelo, foi alçado a grande altura, forrado inferiormente com massa e pintado com arabescos florais, devendo constituir a totalidade do forro falso desse edifício de grandes dimensões. Essa técnica, cosmopolita, deve ter raízes indígenas no Brasil, ao menos na forma e nos materiais empregados.



      Evolução rápida no Império

          Muitas das edificações dedicadas à fábrica do açúcar foram adaptadas ao processamento do café, quando na primeira metade do século XIX essa cultura passou a substituir a cana-de-açúcar no quadrilátero. Essa adaptação nem sempre garantiu a integridade das edificações. A velha sede do Sítio Grande, já mencionada, teve suas divisórias internas, provavelmente erguidas na técnica da taipa-de-mão, derrubadas para a instalação das máquinas de café (Pupo, 1983).
          A introdução da cultura do café permitiu o enriquecimento rápido dos proprietários rurais, o que refletiu em suas construções. A simplicidade estética das velhas sedes rurais não mais satisfez os senhores, que pela primeira vez utilizavam-se das edificações para revelarem seu fausto. Os pisos apiloados ganharam revestimento de ladrilhos e de sobrados de taboado. Os anexos das casas de morada se multiplicaram, caixilhos envidraçados foram acrescentados às janelas, cunhais foram revestidos por massa saliente (mesmo nas edificações de taipa-de-pilão, como o Salto Grande); o beiral foi disfarçado por cimalhas de tábuas (solar urbano do Barão de Dourados, em Rio Claro) e depois por cimalhas de massa ou de alvenaria.
          Nas novas construções os cômodos e camarinhas eram numerosos; a velha solução da planta retangular foi abandonada, com a multiplicação dos rincões, antes rigorosamente evitados; como consequência, a planta tomou a forma de um “I” ou um “U”. Surgiram as capelas de fazendas, independentes ou anexas à sede.
          Nas décadas de 1870 a 1880 surgiu a técnica da alvenaria de tijolos, até então praticamente ignorada pelos paulistas, que usavam com parcimônia a alvenaria de adobes. Finalmente o próprio beiral foi trocado por calhas metálicas, escondidas por platibandas decoradas e balcões providos de guarda-corpos de ferro passaram a adornar os sobrados já férteis em ornamentos. Muitas sedes ganharam pretórios largos que ocupavam toda a fachada principal. Os cimos das platibandas ganharam vasos, estátuas, pinhas e coruchéus.
          Os andares térreos ganharam os mesmos ladrilhos que guarneceram os terreiros de secagem de café; esse tipo de piso tornou-se rotineiro até o final do século, época em que o tijolão passou a ser utilizado com o mesmo fim.
          Na segunda metade dos oitocentos surgiram as tesouras, no início rudimentares, como na incorporação de tensores a ligarem terças nas águas opostas ou esteios a se apoiarem sobre tensores apoiados nos frechais. Caibros apoiados no frechal externo, prolongando-se além deste, são encontradas em construções mais recentes ou reformadas.
          As últimas transformações importantes das edificações rurais revelaram-se no tratamento das envazaduras (Paiva, 1996:12-13). Os gonzos perderam o favor e foram substituídos por dobradiças. Os escuros, no máximo almofadados, cederam lugar às venezianas. As vergas retas ou em arco abatido foram trocadas nas portas principais por vergas curvas com cornijas ou bandeiras com arabescos de ferro fundido. As ombreiras ganharam socos decorados. Detalhes decorativos em baixo-relêvo no reboco foram largamente utilizados, imitando a rusticação do neoclássico. Esses detalhes completaram o desvirtuamento do partido colonial, que servira os paulistas por 350 anos.
          Na casa de máquinas da Fazenda Duas Pontes, em Campinas, erigida nos últimos anos do Império, torna-se marcante o hibridismo de técnicas em era de inovações no encontro de elementos primitivos (beiral largo com cachorros entalhados, recobertos por guarda-pó e providos de ancoragem completa) e de elementos modernizantes (alvenaria e cimalha de tijolos aparelhados em diagonal).
          Todas as transformações referidas foram adotadas mais rapidamente nas sedes das fazendas. Nas edificações utilitárias (senzalas, moinhos, tulhas, casas de farinha) muitas das características do partido colonial, incluindo as técnicas da taipa, se mantiveram até bem próximo do fim do século XIX, mesmo nas construções novas. Nas casas de morada, essa evolução oferece ao pesquisador ferramentas que permitem datação das construções com muito maior segurança que nas edificações do ciclo açucareiro, quando as modificações nas técnicas construtivas foram mais lentas e de adoção independente em regiões diferentes.



      Referências bibliográficas

      1. ANDRADE, Mário de, 1965. Aspectos das artes plásticas no Brasil. S. Paulo, Martins, 96 p. + pranchas. 1 ed., 1935/1943 (ensaios). (Obras Completas de Mário de Andrade 12).

      2. BARDI, Pietro M., 1981. Miguel Dutra, o poliédrico artista paulista (Itú, 1810 - Piracicaba, 1875). S. Paulo, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 111 p., il.

      3. KATINSKY, Júlio R., 1972. Casas bandeiristas. Nascimento e reconhecimento da arte em São Paulo. S. Paulo, Tese de Doutorado, FAU/USP, 135 p., il.

      4. KATINSKY, Júlio R., 1976. Casas bandeiristas. S. Paulo, IGEOG - USP, 183 p., il.

      5. KATINSKY, Júlio R., s. d. Arquiteturas do açúcar. S. loc., ms., 66 p., il.

      6. LEMOS, Carlos, 1984. Notas sobre a arquitetura tradicional de São Paulo. São Paulo, FAU/USP, 62 p., il. 2 ed. (1 ed., 1969).

      7. PAIVA, Celso Lago, 1996. História da técnica das construções coloniais em São Paulo. Indaiatuba, Fundação Pró-Memória de Indaiatuba, 49 p., il.

      8. PUPO, Celso M. M., 1969. Campinas, seu berço e juventude. Campinas, Acad. Campinense de Letras, 335 p., il. (Publicações 20).

      9. PUPO, Celso M. M., 1983. Campinas, Município no Império. S. Paulo, Impr. Of. Estado, 231 p., il.


      Contribuição n.o 1, Programa de Publicações, Grupo de Estudos de História da Técnica (Centro de Memória, Universidade Estadual de Campinas - PP/ GEHT/ CMU/ UNICAMP).


      Direitos autorais registrados no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional, L. 173, f. 146, Registro 114797, a 23 jul. 1996.


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      Referência bibliográfica desta página

      PAIVA, Celso Lago, 1997. Construções rurais coloniais no quadrilátero do açúcar, São Paulo. Disponível na Internet: http://www.oocities.org/RainForest/9468/partido.htm. 27 dez. 1998. Publicado originalmente em: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 5:37-46, 1997.



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