Construções rurais coloniais
no quadrilátero do açúcar,
Estado de São Paulo, Brasil
©
Figura 1. Sede da Fazenda Pau-d’Alho, em Itu, São Paulo: exemplo de
edificação paulista de tradição bandeirista, com o pretório ao centro, coberto pela
água fronteira do telhado. Fonte: Katinsky, 1976:50.
Artigo publicado originalmente em:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba (Rev. IHGP)
5:37-46, 1997.
Celso Lago Paiva
Pesquisador de História da Técnica
Sócio Correspondente do Instituto Histórico e
Geográfico de Piracicaba - IHGP
Membro fundador e Coordenador do Grupo de Estudos
de História da Técnica - GEHT/CMU/UNICAMP
Editor das páginas do Conselho Internacional de
Monumentos e Sítios -
ICOMOS
celsolag@terra.com.br
Resumo
Analisadas edificações rurais construídas no quadrilátero do açúcar paulista (Estado
de São Paulo, Brasil) entre meados do século XVIII e meados do século XIX,
constatou-se a presença de diversas características comuns, consideradas primitivas,
como o predomínio da técnica da taipa-de-pilão, vergas retas, balaústres coloniais,
telhado em quatro águas e beiral largo suportado por cachorros.
A partir da introdução da cultura do café, ainda no segundo quartel dos oitocentos,
as construções passaram a incorporar diversas alterações construtivas, em técnicas e
em materiais, como a eliminação do beiral, multiplicação das águas e ereção de
paredes de alvenaria de tijolos.
Palavras-chave
História da técnica - São Paulo - Quadrilátero
do Açúcar - Engenho - Taipa-de-pilão - Taipa-de-mão - Alvenaria.
Agradecimentos
O autor agradece às pessoas que o auxiliaram nas pesquisas:
Antonio da Costa Santos, D.r, PUCCAMP, Campinas;
Elizeu Meschiari, Prefeitura Municipal de Americana;
Ema Elisabete Rodrigues, CMU/ UNICAMP, Campinas;
Julio Roberto Katinsky, D.r, FAU/USP, São Paulo;
Marcelo Caricol Iaralham, Eng.o, Prefeitura Municipal de Indaiatuba;
Maria Luiza Silveira Pinto de Moura, D.ra, Centro de Ciências, Letras e Artes
(CCLA), Campinas;
Marly Therezinha Germano Perecin, D.ra, IHGP, IHGSP e Secretaria Estadual da
Educação, Piracicaba;
Nilson Cardoso de Carvalho, Fundação Pró-Memória (FPMI), Indaiatuba;
Paulo Sérgio Monteiro da Costa, GEHT/ CMU/ UNICAMP, Campinas.
Introdução
Poucas construções coloniais restaram no Estado de São Paulo
[no sudeste do Brasil]. Muitas das sobreviventes foram tão deformadas por reformas
que dificilmente se poderia ter idéia de sua feição original.
O autor analisou edificações (incluindo engenhos) encontradas
no chamado quadrilátero do açúcar (Petrone, 1968:7-8), área compreendida entre
Sorocaba, Piracicaba, Mogi-Guaçu e Jundiaí, onde entre 1765 e 1851 desenvolveu-se a
cultura da cana-de-açúcar, responsável pelo primeiro ciclo econômico produtivo que a
Capitania conheceu.
Características das construções
coloniais na região
A análise das construções antigas sobreviventes,
incluindo urbanas, permitiu sua caracterização com base em elementos
comuns, consideradas primitivos:
1. Paredes mestras de taipa-de-pilão,
especialmente na edificações mais antigas, com alicerce na mesma técnica ou, mais
raramente, de alvenaria de pedras (diabásio ou granito; Tulha do Proença, em
Campinas). Certas edificações mais recentes (já no primeiro quartel dos oitocentos)
incorporaram a técnica da taipa-de-mão, mesmo nas paredes mestras, com mureta de
vedação de alvenaria de pedras e paus-a-pique de estipes de palmito [ou juçara]
(Euterpe edulis, Arecaceae; Casa do Povoador, em Piracicaba).
2. Beiral largo (0,60 m a 1,00 m) amparado por
cachorros (com discreto entalhe na extremidade ou lisos). O sistema de
ancoragem dos cachorros nos caibros era muito variável, não havendo
identidade nesse particular entre quaisquer construções sobreviventes
(Paiva, 1996:17). Geralmente uma peça independente (a âncora) unia a
extremidade interna do cachorro à retranca apoiada sob o caibro. Outro
sistema, mais primitivo, fazia os cachorros passarem por orifícios justos
escavados no próprio frechal, o que dispensava mais ancoragem. O forro de
tábuas (guarda-pó) era disposto entre os cachorros e as telhas.
3. Planta-baixa retangular, fechada.
4. Telhado de quatro águas, rigorosamente desprovido
de rincões, armado por terças que suportavam caibros com sambladura basal
no frechal interno (ou apoiados sobre este, sendo cortados sobre a parede),
sem o uso de tesouras; a terça da cumeeira apoiava-se por esteios sobre
frechais de paredes mestras. O ripado era de fasquias de estipes de juçara.
A madeira era desdobrada com machado, posteriormente com traçadores, sendo
tardio o emprego de serras d’água. O acabamento era feito com enxó.
5. Vergas retas ou, mais raramente, em arco
abatido; vergas, ombreiras e peitoris lisos, sem entalhes, de madeira.
6. Janelas parcas e com frequência providas (se no
térreo) de grades de balaústres verticais de seção quadrada e dispostos
com as quinas voltadas para fora, denominados “balaústres coloniais”
(Paiva, 1996:14). Escuros como única vedação, basculando por gonzos.
O número de janelas por aposento aumentou consistentemente com o tempo,
chegando ao máximo já no primeiro quartel dos oitocentos (Casarão do Pau
Preto, Indaiatuba, Figura 2).
Figura 2. Casarão do Pau Preto,
Indaiatuba, SP. Construção rural com implantação original em periferia urbana.
Janelas numerosas providas de balaústres coloniais. Os cachorros foram
eliminados.
Esse mesmo tipo de grade ocorre em antigas construções
japonesas, país visitado já em 1542 pelos navegantes de Portugal; Paulo Sérgio
Monteiro da Costa fotografou elemento idêntico (Figura 3) na cidade de
Yamaguchi, província de mesmo nome; essa região teve longo contato com navegadores
e jesuítas portugueses.
Figura 3. Detalhe do pagode zen-budista
de Rurikoji, monumento nacional erguido em 1442 na cidade de Yamaguchi, província de
mesmo nome, distrito de Chugoku, ilha de Honshu. Janela provida de balaústres de
seção quadrada em disposição enviesada. Fotografia de Paulo S. Monteiro da
Costa.
7. Implantação em plataforma aterrada, com a
fachada principal voltada para o declive, nunca longe da água corrente.
Os engenhos sempre se utilizaram de desníveis entre as diversas plantas de
produção, mesmo em único edifício.
8. Piso de terra apiloada.
Ao conjunto dessas características diagnósticas
denomino partido colonial de construção, aplicável estritamente apenas
nessa região e época. Certos detalhes construtivos próprios de edificações
rurais anteriores a 1765 nunca foram utilizadas na região durante o ciclo
do açúcar, como conversadeiras nas janelas, coices para basculação dos
escuros, padieiras (forro inferior do sobrearco capialçado unido com
a verga em peça única) e cachorros decorados.
A arte aparentemente não entrava na cogitação dos
construtores civis coloniais, mas alguns tratamentos de detalhes construtivos
possuem hoje certo apelo estético. Nota-se o ritmo das aberturas na fachada
do casarão do Pau Preto, em Indaiatuba, sendo as janelas numerosas (doze em
35,4 m de fachada; Figura 2) providas de balaústres coloniais, gerando viva
impressão de movimento para quem se aproxima (ritmo já mencionado por Andrade,
1965:89-90 para o uso desse tipo de grade no controle dinâmico da iluminação
interna). Discreta intenção decorativa revela-se no entalhe simples da
extremidade distal dos cachorros (cujo desenho padrão mostra-se na residência
jesuítica de Embu), no adoçamento das colunas dos alpendres e no desenho dos
ábacos dessas mesmas colunas, sustentando os frechais. O entalhe terminal das
vergas e soleiras das janelas do engenho da Fazenda
Atibaia (Figura 4) é eminentemente decorativo em seu individualismo.
Encontram-se na região exemplares tardios de forro-mineiro, protetores
contra os rigores hibernais, mas por natureza decorativos.
Casas de tradição bandeirista
Algumas grandes casas de morada ituanas seguem
o partido de tradição bandeirista (Katinsky, 1972, 1976), trazendo dos
seiscentos características bem definidas mas já em plena evolução
modificadora: faixa fronteira com alpendre ao centro, ladeado por um
cômodo em cada extremidade com portas para esse pretório; frechal no
alpendre sustentado por duas ou mais colunas oitavadas de madeira de
base quadrada; depósito sobre forro de tábuas em um ou mais cômodos;
paredes mestras de taipa-de-pilão; salão central por detrás do alpendre,
comunicando-se com os demais cômodos e atingindo a fachada traseira;
telhado de quatro ou de duas águas (tendendo a incorporar anexos geradores
de rincões).
A casa de tradição bandeirista de revelação mais
recente (sede
da Fazenda Engenho-d’Água) foi descoberta no município
de Indaiatuba (Paiva, 1996:332-33) e é propriedade do município
(Figura 5). Muito bem conservada apesar de diversas alterações,
está sendo exaustivamente pesquisada. Possui dimensões maiores
que a maioria das casas desse partido, vergas retas, telhado de
duas águas (embora existam indícios, como oitões de alvenaria de adobes,
de que originalmente teriam sido quatro as águas) e distribuição
em duas faixas longitudinais de “casas” (cômodos). A restauração de feição
próxima à original parece plenamente realizável.
Figura 5. Casa-sede da Fazenda
Engenho-d’Água, em Indaiatuba. As quatro aberturas visíveis no centro da
fachada principal correspondem
ao pretório, hoje obturado.
Construções pós-bandeiristas
O partido dito “de tradição bandeirista” não
alcançou o século XIX, mas desde meados dos setecentos sua rigidez formal
foi sendo relaxada, permitindo soluções até então desconhecidas ou pouco
utilizadas, como telhados de duas águas, anexos que exigiam rincões no
tratamento do telhado (casa do Quinzinho, em Sorocaba), vergas em arco
abatido (casas das fazendas ituanas) e o alteamento das paredes internas
(o que refletiu na altura impressiva do pé-direito máximo do pretório,
de até mais de cinco metros, como no Engenho-d’Água, em Indaiatuba).
Os pretórios foram transformados em “varandas” pelo fechamento completo
da fachada principal (casa do brigadeiro Tobias, no distrito sorocabano
do mesmo nome; Lemos, 1984:30-34). Acredito que pesquisas futuras revelarão
outras mais edificações que representem estágios de evolução destas casas
para as construções mais livres que as sucederam.
A grande casa do Proença, ao lado da Tulha, em
Campinas, datada do início dos oitocentos (Antonio da Costa Santos, com.
pes.), exemplifica essas construções com elementos modernizantes: faixa
posterior transformada em um recinto, pretório fechado, piso assobradado,
incorporação da novidade das camarinhas (as alcovas, que se vulgarizariam com o café),
janelas desprovidas de balaústres, uso intensivo de ferragens. Essa grande
edificação conserva soluções arcaicas, como a planta nitidamente bandeirista,
com a faixa fronteira com seus três recintos e o telhado de quatro águas
(com ripado de fasquias originais de estipes de palmito). O grande porte
e o pé-direito elevado já prenunciam os solares do café.
A seu lado ergue-se a chamada Tulha do
Proença, mais antiga, também recuperada e consolidada pelo
proprietário. Seu programa original é desconhecido. De grandes dimensões, com
divisão transversal hoje inexistente (mas cujo alicerce em taipa-de-pilão foi
revelado por prospecções pelo proprietário), mostra envazaduras originais
apenas na fachada principal. Uma janela mostra as sambladuras das grades
em diagonal, excepcionalmente robustas. As demais características são
primitivas, com exceção da armação do telhado, que se vale de estrutura
aparentemente antecessora da tesoura. Consta de duas empenas opostas, unidas
por viga horizontal correspondente ao tensor; um esteio (de localização
equivalente à do pendural) transfere o peso da cumeeira à viga horizontal.
No mesmo alinhamento um esteio ensamblado ligava a viga ao chão, o que
descaracteriza a estrutura como tesoura. Outro elemento de interesse é
o piso de terra apiloada, um dois únicos exemplares autênticos preservados
no quadrilátero do açúcar.
Sobrados rurais
O final do século XVIII assistiu ao erguimento
dos primeiros sobrados rurais (com o térreo útil sob o sobrado), quase
certamente influência dos entrantes mineiros e de paulistas que retornavam
de Minas Gerais (Paiva, 1996:30).
Sítio Grande
Um dos mais antigos ainda existentes,
citado no inventário de seu construtor com esse nome, depois denominado
Fazenda Chapadão e hoje pertencente ao Exército. Já existia em 1792 (Pupo,
1969, 1983; essa data carece de documentação), sendo talvez o decano das
construções da região de Campinas, ao lado da Tulha do Proença. Trata-se
de grande retângulo de taipa-de-pilão com o segundo andar de taipa-de-mão,
sendo este provido de numerosas janelas com vergas retas. O telhado é de
quatro águas. Algumas janelas conservadas no rés-do-chão ainda portam os
balaústres de base quadrada. As dimensões e a localização em fundo de vale
ao lado de ribeirão indicam que abrigava engenho real, embora o inventário
de seu construtor nada especifique a respeito. Muitas alterações sérias não
deturparam completamente a feição austera dessa edificação.
Uma segunda construção foi erigida na fazenda em
meados do século XIX para morada; muito alterada, conserva bandeiras de
portas internas providas de rótulas fixas, elemento de ascendência urbana.
Salto Grande
Outro sobrado já dos primeiros anos
dos oitocentos, no atual território de Americana; também conhecida como
Sobrado Velho, situa-se junto à foz do Jaguari no Atibaia formando o
Piracicaba. De propriedade do governo estadual e muito bem conservado,
este antigo engenho real pode ser restaurado com pesquisa adequada. De
grande porte, possue paredes mestras de taipa-de-pilão e paredes secundárias
de taipa-de-mão. Foi adulterada nas primeiras décadas do século XX com o
lançamento de segundo lanço assobradado, com a ereção de diversos tabiques
de tijolos e com a substituição em várias janelas do térreo das antigas
grades de balaústres de base quadrada por outros caprichosamente torneados,
desproporcionais e estranhos ao uso paulista.
A fachada fronteira possui longo prolongamento
da senzala, de mesma idade do engenho e originalmente desprovida de janelas
na fachada principal. Minha pesquisa indica que o engenho original era
provido apenas do térreo, sendo logo acrescido do andar superior para
morada senhoril. A imensa armadura de seu telhado ainda dispensa estrutura
que lembre tesoura. Existem cachorros que se tornaram anacrônicos pelo
alteamento do telhado em recente reforma de recuperação. Tanto este engenho
quanto o Sítio Grande foram levantados por irmãos nascidos em Minas Gerais
(Pupo, 1969, 1983; pesquisa do autor); indício do uso mineiro é o forro-mineiro
encontrado em pequeno cômodo do andar sobrado (Pupo, 1983:130).
Essa construção tem o piso do andar térreo escalonado
da frente para o fundo, necessário para facilitar o trabalho com a cana, seu
caldo e os produtos intermediários da produção do açúcar, possuindo o tendal
onde o açúcar era purificado nas formas. Se for legítimo, trata-se do único
tendal sobrevivente do período colonial neste Estado. O engenho setecentista
da chácara Rosário, em Itu, estudado por Katinsky (s. d.) também conserva
o escalonamento altimétrico, bem como o antigo engenho da Faz. Mato Dentro,
em Campinas, erguido na primeira década do século XIX, hoje existente como
ruínas sob e ao lado do casarão imperial construído no mesmo local; estes
velhos restos albergam muros de taipa-de-pilão sobre alvenaria de pedras,
técnica mista relativamente rara na Província.
Casa de máquinas da Fazenda
Atibaia
Em Campinas,
possue o andar do térreo em larga alvenaria de tijolões, embasado em fundações
de pedras, com detalhes construtivos próprios da taipa-de-pilão, como engras
e sobrearco capialçado nas portas; duas grandes portas sob frechal de enorme
seção deveriam dar passagem aos muares cargueiros. O piso é de grandes lajes
de granito.
O andar do sobrado (Figuras 4 e 5) possui
estrutura de gaiola, próprio da taipa-de-mão, carecendo dos paus-a-pique,
substituídos por tábuas em diagonal apoiadas nos esteios e nas ombreiras; os vãos
são preenchidos por alvenaria de ladrilhos (de 0,235 x 0,235 x 0,04 m), aparelhados
na horizontal ou na diagonal, sem critério definido e com argamassa de barro.
Figura 4. Casa de máquinas da
Fazenda Atibaia, Campinas: detalhes do andar do sobrado.
As paredes são de alvenaria de ladrilhos dispostos na horizontal ou inclinados.
Figura 5. Casa de máquinas da
Fazenda Atibaia, Campinas: detalhes do andar do sobrado. Estrutura de gaiola,
cachorros com guarda-pó sobre o frechal, verga [e peitoril] reta[s] com lateral
recortada; escuros.
Percebe-se o esteio que liga o frechal à verga, no alinhamento de cada
ombreira.
Um rego profundo de algumas centenas de metros
conduzia na encosta água do rio Atibaia para roda-d’água de madeira situada
sob o sobrado, no andar térreo, sendo o inferno alguns metros mais baixo que
o andar térreo, cortando o alicerce e descarregando no próprio rio a poucos
metros. A água alimentava antes da roda-d’água um moinho cujas mós ainda se
encontram no local, enterradas. As janelas do sobrado mostram entalhe lateral
caprichoso e original (Figura 4).
O telhado de quatro águas apresenta os cachorros
originais, com âncoras. Construção visivelmente antiga, colonial nos detalhes,
demonstra tentativa de passar das técnicas de taipa para as de tijolos, mas
ainda pouco confiante na capacidade estrutural desses elementos. Daí a
necessidade da gaiola e de grossos esteios de madeira sustentando os
baldrames internos do sobrado. De idade desconhecida, deve ser anterior à
década de 1860. Pode ter servido à indústria do açúcar antes do café. Como
hipótese confirmável pela arqueologia construtiva (Paiva, 1996:38) proponho
que as paredes do andar superior tenham sido originalmente de taipa-de-mão,
sendo os panos substituídos na era cafezista pela alvenaria de ladrilhos; mais
difícil é aceitar que a taipa-de-pilão do térreo tenha sido substituída pela
alvenaria de tijolos [podendo estar encamisada por parede de tijolos].
Uma característica constante dos sobrados coloniais da região
(e de Minas Gerais) foi ilustrada em 1845 por Miguel Archanjo Benicio d’Assumpção
Dutra [Miguelzinho Dutra], o iconógrafo ituano-piracicabano (Bardi, 1981:23),
que figura em aquarela a fazenda na Venda Grande, em Campinas, onde
mostra duas construções.
Trata-se do acesso ao andar do sobrado, feito por escada externa que alcançava a
porta central. Essa providência isolava o sobrado, quase sempre morada do fazendeiro,
da planta fabril no térreo e dos escravos.
Ao lado do casarão aparece um galpão sem paredes de duas águas com a cumeeira
sustentada por esteio que ia ao chão e quatro esteios nos cunhais.
O inventário do proprietário Theodoro Ferraz Leite, em 1837, cita “Casas de Sobrado”
(ilustrado por Dutra) e “Fabrica” com suas 77 fôrmas de açúcar (3.o Ofício, Campinas,
caixa 263, n.o 6681; CMU, UNICAMP).
Desenrolou-se a batalha da Venda Grande, na
Revolução Liberal de 1842, à frente desse sobrado, onde se sucederam
arbitrariedades das tropas oficiosas depois da refrega (Pupo, 1969:123-136).
Miguelzinho Dutra, como liberal dedicado, deve ter pintado esse local por
sua importância de sítio histórico, esquecido pelas autoridades que
permitiram sua eliminação.
Um complemento construtivo típico de Minas que
os mineiros introduziram em inúmeras construções alhures é o forro-mineiro,
esteira trançada de lâminas de taquara, em malhas estreitas, suspenso pouco abaixo
dos frechais sobre os cômodos (Paiva, 1996:30). O trançado variava bastante.
A conservação térmica deve ter dado origem a essa prática. Exemplares bem
restaurados encontram-se na residência do Caraça, em Minas. No quadrilátero
do açúcar encontra-se pequeno exemplo no andar superior do Engenho do Salto
Grande (Americana), e no solar do Barão de Itapura (sede da PUCC), no centro
de Campinas, do último quartel dos oitocentos. Neste último caso o forro, de
trançado singelo, foi alçado a grande altura, forrado inferiormente com massa
e pintado com arabescos florais, devendo constituir a totalidade do forro
falso desse edifício de grandes dimensões. Essa técnica, cosmopolita, deve ter raízes
indígenas no Brasil, ao menos na forma e nos materiais empregados.
Evolução rápida no Império
Muitas das edificações dedicadas à fábrica do açúcar
foram adaptadas ao processamento do café, quando na primeira metade do século
XIX essa cultura passou a substituir a cana-de-açúcar no quadrilátero. Essa
adaptação nem sempre garantiu a integridade das edificações. A velha sede
do Sítio Grande, já mencionada, teve suas divisórias internas, provavelmente
erguidas na técnica da taipa-de-mão, derrubadas para a instalação das
máquinas de café (Pupo, 1983).
A introdução da cultura do café permitiu o
enriquecimento rápido dos proprietários rurais, o que refletiu em suas
construções. A simplicidade estética das velhas sedes rurais não mais
satisfez os senhores, que pela primeira vez utilizavam-se das edificações
para revelarem seu fausto. Os pisos apiloados ganharam revestimento de
ladrilhos e de sobrados de taboado. Os anexos das casas de morada se
multiplicaram, caixilhos envidraçados foram acrescentados às janelas,
cunhais foram revestidos por massa saliente (mesmo nas edificações de
taipa-de-pilão, como o Salto Grande); o beiral foi disfarçado por cimalhas
de tábuas (solar urbano do Barão de Dourados, em Rio Claro) e depois por
cimalhas de massa ou de alvenaria.
Nas novas construções os cômodos e camarinhas eram
numerosos; a velha solução da planta retangular foi abandonada, com a
multiplicação dos rincões, antes rigorosamente evitados; como consequência,
a planta tomou a forma de um “I” ou um “U”. Surgiram as capelas de fazendas,
independentes ou anexas à sede.
Nas décadas de 1870 a 1880 surgiu a técnica da
alvenaria de tijolos, até então praticamente ignorada pelos paulistas, que
usavam com parcimônia a alvenaria de adobes. Finalmente o próprio beiral foi
trocado por calhas metálicas, escondidas por platibandas decoradas e balcões
providos de guarda-corpos de ferro passaram a adornar os sobrados já férteis
em ornamentos. Muitas sedes ganharam pretórios largos que ocupavam toda a
fachada principal. Os cimos das platibandas ganharam vasos, estátuas,
pinhas e coruchéus.
Os andares térreos ganharam os mesmos ladrilhos
que guarneceram os terreiros de secagem de café; esse tipo de piso tornou-se
rotineiro até o final do século, época em que o tijolão passou a ser utilizado
com o mesmo fim.
Na segunda metade dos oitocentos surgiram as
tesouras, no início rudimentares, como na incorporação de tensores a
ligarem terças nas águas opostas ou esteios a se apoiarem sobre tensores
apoiados nos frechais. Caibros apoiados no frechal externo, prolongando-se
além deste, são encontradas em construções mais recentes ou reformadas.
As últimas transformações importantes das edificações
rurais revelaram-se no tratamento das envazaduras (Paiva, 1996:12-13). Os
gonzos perderam o favor e foram substituídos por dobradiças. Os escuros, no
máximo almofadados, cederam lugar às venezianas. As vergas retas ou em arco
abatido foram trocadas nas portas principais por vergas curvas com cornijas
ou bandeiras com arabescos de ferro fundido. As ombreiras ganharam socos
decorados. Detalhes decorativos em baixo-relêvo no reboco foram largamente
utilizados, imitando a rusticação do neoclássico. Esses detalhes completaram
o desvirtuamento do partido colonial, que servira os paulistas por 350 anos.
Na casa de máquinas da Fazenda Duas Pontes, em
Campinas, erigida nos últimos anos do Império, torna-se marcante o
hibridismo de técnicas em era de inovações no encontro de elementos
primitivos (beiral largo com cachorros entalhados, recobertos por
guarda-pó e providos de ancoragem completa) e de elementos modernizantes
(alvenaria e cimalha de tijolos aparelhados em diagonal).
Todas as transformações referidas foram adotadas
mais rapidamente nas sedes das fazendas. Nas edificações utilitárias
(senzalas, moinhos, tulhas, casas de farinha) muitas das características
do partido colonial, incluindo as técnicas da taipa, se mantiveram até
bem próximo do fim do século XIX, mesmo nas construções novas. Nas casas
de morada, essa evolução oferece ao pesquisador ferramentas que permitem
datação das construções com muito maior segurança que nas edificações do
ciclo açucareiro, quando as modificações nas técnicas construtivas foram
mais lentas e de adoção independente em regiões diferentes.
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9. PUPO, Celso M. M., 1983. Campinas, Município no
Império. S. Paulo, Impr. Of. Estado, 231 p., il.
Contribuição n.o 1, Programa de Publicações, Grupo de Estudos de História da
Técnica (Centro de Memória, Universidade Estadual de Campinas - PP/
GEHT/ CMU/ UNICAMP).
Direitos autorais
registrados no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional,
L. 173, f. 146, Registro 114797, a 23 jul. 1996.
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Referência bibliográfica desta página
PAIVA, Celso Lago, 1997. Construções rurais coloniais no quadrilátero do açúcar,
São Paulo. Disponível na Internet:
http://www.oocities.org/RainForest/9468/partido.htm.
27 dez. 1998.
Publicado originalmente em: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
de Piracicaba 5:37-46, 1997.
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