VERSIONES 13
Año del buey - Abril/Mayo de 1997
Sem saberes, amei-te por momentos...
Traí a minha fé, a minha crença...
Traí a solidão que esta presença
aos outros despertava sofrimentos.
Sem querer acordaste sentimentos
que julgava enterrados por sentença,
que jamais me fariam ser pertença
de velhos e passados vis tormentos.
Maldita seja a hora em que mostraste
o que, sem querer, por ti eu conheci
e que, sem quereres, por vê-lo mais sofri...
Fosse divino, o jogo que jogaste,
o mundo que não queria... e que não vi!
Não estava eu só... não estava já sem ti.
Descobri Miguel Carvalho no mesmo instante em que terminou este soneto. Estávamos sentados em ângulo oposto nas mesas de uma esplanada em frente ao mar, até que dei por mim absorta nos seus movimentos. Com os dedos da mão esquerda tamborilava constantemente o tampo da mesa, enquanto com a direita gatafunhava um guardanapo. Estes movimentos desusados despertaram-me curiosidade; como sempre acontece nestas coisas, essa curiosidade acabou por ser notada.
Ao escrever o ponto final, Miguel levantou os olhos para mim, sorriu e disse-me, simplesmente, para lerÉ Algo envergonhada, retribuí o sorriso, peguei no guardanapo e li. Primeiro, rapidamente; depois, como se algo me escapasse, reli verso a verso, tentando descobrir o que cada um queria sentir; tentando sentir o que cada um queria dizer. Tratava-se, seguramente, de algo muito pessoal, vivido intensamente; mas os contornos eram-me tão difusos que não me foi possível abarcar toda a possível profundidade do poema. Nada mais me ocorreu dizer senão: "É bonito!".
Miguel pegou no guardanapo, espreguiçou-se com espalhafato, olhou o soneto de soslaio e decidiu apresentar-se respondendo: "Miguel Carvalho! Não sou poeta; esse soneto é uma valente merda mas diz-me muito!!!" Amarfanhou o guardanapo, guardou-o no bolso das calças e disse-me que voltaria no dia seguinte à mesma hora...
Atónita, deixei-me ficar a olhar o mar; e embalada pelo vaivém das ondas sonhei com tempestades e tormentas, e cascas de noz que venciam as águas e o vento jogando às cegas um destino feito de vontades mais fortes do que toda a força dos elementos. Pensando na imensidão do mar recordei os versos "Traí a solidão que esta presença / aos outros despertava sofrimentos." Quem seria Miguel Carvalho?
A curiosidade roía-me... apesar dos meus inúmeros afazeres não podia deixar de ir a um encontro que não estava marcado. Mas muito pior foi sentir que, sem passar, o tempo me fugia; não conseguiria fazer tudo o que precisava e no entanto demorava a chegar a hora de voltar à esplanada. Por fim - outra coisa não seria de esperar - a hora chegou, e com ela a transformação da ansiedade que sentira em angústia; toda eu era dúvida, qual malmequer a quem se arrancam malevolamente as pétalas pelo simples prazer de brincar ao futuro: ir, não ir; ir, não ir; ir, não ir; ir... não ir... ir! Ir! Ir!... A curiosidade não me deixou alternativas. Fui!
Miguel estava sentado à mesma mesa do dia anterior, escrevinhando - desta vez sem tamborilar - um outro guardanapo. Ia sentar-me na mesa em frente quando, com o pé, arrastou uma cadeira convidando-me - num gesto forçadamente teatral - a sentar-me. Acedi descontente, porque Miguel nem me olhara. Não sei sequer como percebeu a minha chegada.
Olhei o mar, olhei Miguel, as mesas, as cadeiras, o bar, o telhado das casas da rua, as flores nas janelas, o infinito... olhei-me... Miguel não abria a boca; continuava embrenhado na luta com o guardanapo feito folha, e que o vento queria levar pois só a mão direita o segurava (a esquerda pendia sob o braço da cadeira segurando um cigarro esquecido, tanta era a cinza acumulada). Estava a ponto de desesperar; a ponto de - sem nada dizer - me levantar e fugir, e procurar refúgio no castigo que devia impor a mim própria, por ter sido tão tristemente adolescente!
De repente, Miguel levantou os olhos, fitou-me no fundo dos olhos húmidos e disse: "Toma! É para ti." Trémula, recebi o recalcitrante guardanapo e reconfortada pelo reencontro com a minha lucidez, leio:
Senti-me olhado por fora e visto por dentro,
despido do meu eu normal
e em parvo transformado
por esses olhos de mar que me inundaram
a alma.
Senti-me sem alma,
envolto numa massa informe a que chamo corpo
e que não sou mas que tu vias.
Fugi sem destino,
à procura de doze cabelos brancos que tinhas
na fronte direita
e que encontrei mais tarde,
sem saber procurar,
sem procurar saber,
no mesmo sítio onde se escondera a minha alma.
Sem saberes, amei-te por momentos...
Fiquei demasiado transtornada para poder dizer o que quer que fosse. Miguel respeitou o meu silêncio; estendeu-se na cadeira, sacudiu a cinza para o chão e fumou observando o céu. Por várias vezes fez menção de falar, mas no último instante travava as palavras que já lhe saíam da boca e deixava-se ficar, amorfo, a contemplar o azul sem nuvens do céu. Percebi que teria de quebrar aquele silêncio quando me dei conta de que até àquele momento só dissera duas palavras: "É bonito!". Palavras que, a avaliar pela resposta obtida, não tinham sido brilhantes. E frustrou-me reparar que - em poucas mais palavras - Miguel já tinha dito muito.
Defensivamente, abri o diálogo: "Não sei que diga! Não estava à espera e, sinceramente, não compreendo lá muito bem." Tentando esconder a surpresa e o embaraço, foi mais fácil mentir.
"A poesia - respondeu Miguel - serve para que aqueles que a lêem encontrem, ou não, a beleza nas palavras dos outros, para com elas poderem sonhar e, sonhando, serem mais felizes. Para mim, a poesia serve para despertar todos os sentimentos de alguém que descubro estar curioso sobre o que faço; isto, em situações excepcionais. Normalmente, serve-me apenas para passar o tempo, e para mais tarde tentar lembrar o estado de espírito que me fez escrever uma determinada coisa, numa determinada hora de um determinado dia.
"Os sonetos, por exemplo, agradam-me porque são um desafio técnico (há que respeitar a métrica) e porque não podem escrever-se 14 versos sem deixar que a mensagem de todo o conjunto seja construída por quem os lê. Quando os escrevo tenho uma ideia que tento transmitir mas que cada um vai interpretar à sua maneira, de acordo com a forma como vive a sua vida, as suas palavras, os seus sentimentos. Não há, por isso, um soneto com duas leituras iguais, apesar das palavras escritas serem rigorosamente as mesmas.
"Já um verso branco, sem métrica ou rima, é diferente: porque é mais livre, deixa-nos transmitir sentimentos que podem ser percebidos como tal, mas... cuidado! A interpretação que dás ao sentimento nem sempre corresponde àquilo que o escritor queria realmente dizer. Mais uma vez, a pessoalidade da leitura é um factor crítico para a interpretação, e é esta pessoalidade que torna atractiva a poesia; porque é sempre possível discutir sentimentos sem se chegar a qualquer acordo. A essência do sentir é assim mesmo: egoísta e inegociável... ninguém pode acordar com ninguém sentir de determinada forma em relação a determinada pessoa ou coisa, se bem que muitas vezes acabemos por cair no erro de negociar connosco próprios uma espécie de paz podre que nos permita viver sem necessidade de muitas explicações.
"Ao contrário de muitas pessoas - algumas, até, tidas por eruditas - não creio que a beleza, o amor ou a felicidade sejam conceitos resultantes de uma construção mais ou menos determinada pelo tipo de cultura em que te inseres, ou pela educação que te deram. Creio, isso sim, que a beleza, o amor e a felicidade não são mais do que experiências pessoais que dependem - e resultam - de um momento particular do tempo e do espaço. O que hoje acho belo pode deixar de o ser amanhã, porque amanhã posso encontrar e experimentar algo que modifica completamente o sentido que dou hoje à beleza.
"Por isso acho que ser feliz é aceitar o que de belo se oferece hoje aos meus olhos, sem cuidar de saber se amanhã ainda o será. A beleza passa, a experiência fica. E quando a experiência do belo suplanta a tua suposta ideia de beleza, nascem as condições para que o amor perdure... É simples: quando deixa de depender de algo que é real - mesmo que por um momento apenas - o amor só pode sobreviver se experimentares continuamente o belo. Ao deixar as suas características físicas, o belo vive em ti todos os dias, todo o dia, porque és parte dele. E assim podes ser feliz, mesmo que o espelho teime em transmitir-te a imagem enrugada de uma velhice que não és."
Pareceu-me impossível cortar o discurso e deixei que Miguel discorresse um bocado sobre várias outras coisas antes de me dar oportunidade de falar. Confesso que me desagradou a forma - tipo prelecção - como se exprimia, mas ao mesmo tempo maravilhava-me o facto de ouvir um estranho falar de coisas que consideramos tão importantes com tanto à-vontade; e desse à-vontade nascia a meus olhos um estranho que cada vez o era menos.
Falámos durante horas dos "todos" e dos "nadas" que fazem a vida, sem que em nenhum momento penetrássemos na intimidade um do outro. Miguel explicou-me o sentido que dava ao soneto defendendo que "cada encontro é uma faca de dois gumes: a novidade e o temor; a novidade que morre com o reencontro e o temor que renasce sempre que o reencontro pode significar a perda de algo que nos foi querido". O soneto Ð disse Ð foi-lhe inspirado por uma amiga da irmã com quem passara uma tarde inteira a discutir a diferente concepção que Homem e Mulher têm do amor. E por ter compreendido, nessa tarde, que amar era mais importante do que discorrer sobre o amor, passou ao papel a angústia de se sentir imenso de amor sem poder transformar esse amor em dádiva. Porque enquanto amor, o sentimento só existe enquanto ele, Miguel, assim quiser. (Nesta altura, compreendi que pudesse terminar um poema com o mesmo verso que abria um outro.)
Falou-me, depois, do silêncio, "a suprema manifestação do êxtase que sentes por alguém a quem nada dizes porque tudo está dito, porque não há palavras que descrevam as imagens, cheiros, sabores, sensações, percepções e pensamentos que te perpassam e ultrapassam o corpo e a alma enquanto olhas para outra pessoa a quem queres bem". E explicou-me que o silêncio não deve ser entendido como a ausência de sons, mas como a ausência de palavras. Silêncio seria, por exemplo, contemplar o mar, ou o céu, ou a chama de uma vela, ou ouvir simplesmente os sons do mundo, uma música, um grupo de crianças que brinca... É utilizar todos os sentidos para sentir o mundo, sem dizer qualquer palavra que interfira na beleza de um momento.
Abruptamente, decidi inverter o rumo da conversa e perguntei: "Mas afinal, Miguel, porque falamos nós de tudo isto? Como podes dizer-me essas coisas se nem sequer sabes o que me interessam? Como podes escrever-me um poema que fala de almas e de amores sem saberes o que sinto?"
Um laivo de tristeza tomou conta do seu rosto... Pensativo, os olhos afogados no refrigerante, Miguel respondeu pausadamente:
"As vidas que vivemos raramente nos permitem ser livres e francos, e fazer e dizer o que sentimos sem ter que equacionar probabilidades de resultados sobre os outros. Ontem, enquanto estava desesperado à procura de um soneto que exprimisse o amor que senti por uma pessoa que me mostrou uma parte do mundo apaixonei-me pela tua curiosidade. Hoje, ofereci a essa mesma curiosidade uma parte ínfima de mim, que recebeste. E amei-te enquanto falámos, porque te compreendi e porque me compreendeste, o que é raro. Entendes este amor de que falo da mesma forma que toda a gente entende uma palavra gasta por usos tão indevidos. Entendeste melhor o silêncio, porque nele encontraste o fascínio - mesmo que breve - por mim, e por ti nesse momento, porque descobrindo-me também te descobriste. E porque sabes que senti o mesmo fascínio, cabe-te agora decidir se queres dar-me a tua amizade, e se queres receber a minha. Para mim, nada é mais triste do que perder um amigo, ou amiga, sem o ter ainda encontrado; e tudo o que te disse serve apenas para que compreendas o alcance da amizade, ou seja, quando puderes pensar em mim sem sofrer porque sabes que tudo podes viver e partilhar comigo sem estabelecer exigências de dádiva e de troca. Nada mais podemos ser, hoje, senão amigos. Mas se o formos hoje, sê-lo-emos sempre e entre nós não haverá segredos porque tudo nos é permitido. Se o aceitares, voltaremos a encontrar-nos um dia... Mas para que não te seja difícil esse encontro, se o quiseres, - Miguel pegou num outro guardanapo e recomeçou a escrever - podes sempre encontrar-me neste papel."
O guardanapo tinha uma morada e um telefone. Miguel levantou-se, deu-me um beijo na face e foi-se.
Era tarde, mas deixei-me ficar a saborear as imagens desse encontro. Dei por mim a imaginar o seu caminho para casa, conjunto de passos decididos entre pessoas carrancudas que tinham perdido mais um dia das suas vidas. E dei comigo a sentir que enchera de vida este dia... que contraste! À minha volta estavam pessoas que enchiam a sua vida de dias, que passavam pelo tempo como se nada lhes fosse importante porque tudo era falso e teatral. Olhei o céu e o mar, a linha do horizonte onde ambos se encontravam e imaginei Miguel em casa, com um livro aberto nas mãos... Um leve ruborescer encheu-me as faces: envergonhada, dei comigo a imaginá-lo na banheira, meia de água, com o livro nas mãos e a cabeça recostada na toalha embrulhada. Não era a nudez da cena a vergonha do meu pensamento, mas a sua naturalidade e familiaridade... Sem nada saber da sua intimidade atrevi-me a ser íntima! E não senti qualquer sombra de remorso ou de pecado, porque o livro que Miguel lia era"O Príncipezinho", e havia uma raposa na sua banheira que despiu a pele e se mostrou como era; e descobri então que o pudor, que nos impede o despir sem privacidade, nada era comparado ao pudor de nos mostrarmos como somos, de abrirmos as janelas da alma entregando de bandeja todas as defesas que levámos anos a construir.
Cativada, a raposa perdera o medo à água.
Cativado, Miguel perdera o medo à mágoa.
A noite cobria a cidade quando me levantei, feliz e plena, e desejosa de encontrar todos os dias um motivo para ser mais feliz ainda. E pela primeira vez gostei tanto de estar comigo aqueles momentos que soube ter encontrado um amigo... e sem saber, amei-o por momentos.
(*)Luís Morais, escritor e economista portugués. Mora em Vila Nova de Gaia.
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