Quando as aprendizes de modista enchiam o atelier, durante as horas de trabalho, ajudando a confecção dos vestidos das suas clientes, o estilista quase não tinha coragem de olhar mais insistentemente para Sandra, temendo ver-se denunciado por qualquer uma delas que, decerto, não deixariam de propalar até ao fecho do salão de modas, ocasião em que ele ficava a sós com o seu manequim, falando-lhe mansamente, com medo de lhe tocar, enfim, dando-lhe as últimas instruções sobre a sua futura apresentação na passagem de modelos, misturando tudo isso com as palavras de desejo, muito discretas mas cheias de paixão.
Sentia-se quase como César, o gato siamês, morrinhento no ninho, junto ao aquecedor, impotente e desinteressado dos convites que as gatas lhe faziam naquele mês de Fevereiro, por ser castrado desde os cinco meses de idade, conforme decisão da mulher que não o quereria ver com o pelo esfarrapado, sujo e feio, depois das habituais lutas entre machos, no cio, sobre os telhados ou nos quintais das moradias, exercendo o natural instinto procriador nas suas companheiras da vizinhana.
O medo e a discrição eram formas de expressar o sentimento de timidez que o afligia, sempre que olhava meigamente para Sandra, porquanto a sua virilidade incontestada, não só pelo avantajado número de filhos, como pelas numerosas aventuras que tivera, jamais poderia ser posta em causa ou assemelhar-se com a triste condição do gato! Quantas vezes se desculpara junto da mulher por se atrasar na hora das refeiçóes, ao ficar um pouco mais com a Sandra, enganando-se num ou noutro corte, misturando confecção com insinuação de compromisso, acabando por fechar a porta do estúdio irritado e descer as escadas que o levavam ao primeiro andar do mesmo prédio onde habitava, para almoçar ou jantar.
António era calmo e criativo. Considerado como um dos melhores estilistas do seu país, dos seus esguios e nervosos dedos saíam os desenhos mais originais e audazes da moda feminina, sendo o seu real valor apreciado no estrangeiro, onde lhe encomendavam vestidos para serem exibidos pelas maiores top-models do mundo, nas grandes capitais da moda internacional. Em todos estes modelos, nunca nenhum competira ou se assemelhara à sua insinuante e inspiradora Sandra, verdadeira fonte criadora dos novos fatos apresentados, onde a força do amor se mostrava presente, indelével e inimitável. O estilista não gostava de estar muito tempo ausente do seu país e do local onde namoraria a inspiradora das suas obras, o manequim que mais amava, essa excêntrica e solícita companhia indispensável à sua arte sentimental.
O medo da mulher descobrir este relacionamento extraconjugal e o escândalo que daí poderia advir para toda a família, preocupavam António, deixando-lhe um travo de melancolia ao sentir-se um belo dia descoberto na sua adoração por Sandra. Até que ponto poderia aquela situao continuar?
Já ouvira muitas afirmações da possibilidade cruel de um homem poder amar simultaneamente duas mulheres, oferecendo o seu melhor a qualquer uma delas. Tal facto era repudiado pelo conservadorismo cristão, pelas obsessivas e ciumentas esposas, pela sociedade tradicional, vizinhos, família e quase toda a gente conhecida que declaravam a impossibilidade de divisão de algo considerado indivisível - o amor! Confuso, queria acreditar na novidade de uma criatura mais nova, uma mulher elegante e bela, para certas horas do dia em que o ser humano mais necessitava de se distrair, de um devaneio que o libertasse do habitual stress da sua conturbada vida. Paralelamente, a esposa tradicional, em princípio a jurada eterna e única companheira, como factor de segurança e reconhecimento pela juventude já concedida, os filhos gerados e responsáveis pela continuidade do nome. No se aceitar uma destas situações, quem teria razão?
Jamais confidenciara o seu segredo a quem quer que fosse.
Naquele fim da tarde, desinspirado por duas ou três palavras menos afectuosas que julgou ter ouvido da sua amada, resolveu descer mais cedo a sua casa, jantar e enfiar-se na poltrona da sala, para ver o jogo de futebol que lhe seria transmitido na televisão. Começou a comer sem ligar grande importãncia à mulher, o cenho carregado, o pensamento invadido por mil e uma contradições, amalgamadas em raivas e ideias de vingança, a resvalarem por insultos mal-contidos.
A mulher, ciente há muito tempo das depressões por que passava o marido, achava por bem não lhe dirigir a palavra, pois sabia melhor do que ninguém, poder ele aproveitar-se de qualquer frase que proferisse, para levantar uma discussão, utilizando um qualquer pertexto para começar a invectivá-la, aos berros.
No fim do jantar serviu-lhe o café com um aguardente, quebrando-lhe a rotina da dieta a que o obrigava, pela sua situação de hipertenso.
Enquanto António, sem comentar, bebia o café, aproveitou para lhe perguntar quando é que ele fazia uma reforma no seu salão de moda.
Com efeito, uma das suas clientes tinha-lhe referido o desleixo daquele local de trabalho, nomeadamente quanto aos manequins, pois eram bonecos já muito velhos e desajustados, num atelier com a categoria e o renome daquele.
Por um segundo, António pensou em Sandra. Desfazer-se do seu manequim, como se a morte o tivesse vindo buscar? A mulher devia estar doida ou fora da realidade. Ou seriam os ciúmes a tomar conta dela?
António levantou-se precipitado da mesa, abandonou a sala e subiu até o salão de corte para se desculpar junto de Sandra e lhe dizer que não seria tão cedo que dela se separaria. Na sua excitação não acendeu de imediato a luz, tropeçando no tapete e esbarrando em Sandra que, ao cair, acabou por partir em mil bocados a sua cabeça de massa que se espalhou pelo chão. V