Entretanto a tradição impos-se, uma vez mais: cinzentas nuvens vindas do oeste compõem um tecto intransponível por cima dos telhados e breves mas frequentes aguaceiros libertam os cheiros armazenados pelo verão. Agora só resta preparar-nos mentalmente para a longa tristeza escura do inverno inglês.
Convém relembrar que as latitudes deste país são bem mais setentrionais que as do nosso belo jardim cheio de praias e portanto aqui os dias de verão são bem mais longos e os de Inverno bem mais curtos do que estamos habituados (exactamente ao contrário de Dallas, com mais tendências «igualitárias» no usufruto do Sol).
Prontos, chega de conversa sobre o tempo. Passemos à frente. E assim que os ingleses também fazem. E agora, senhores e senhoras, acaba a tradição. Porque a Inglaterra e também um país concentrado em construir um futuro. Aliás, sempre foi assim. Atreveria até a dizer, apenas baseado na breve experiência de um ano, que os Anglo-Saxões são o povo mais concentrado no futuro. Aceitam muito mais facilmente sacrificar o presente: os ingleses vivem em casas velhas, minúsculas, sujas, escuras, não se lavam regularmente, e as refeições são uma obrigação diária, nunca um prazer; os americanos não tem vida fora do trabalho e a moral é castrante e sufocante.
Em nenhum outro lado o passado e o futuro estão tão intricados no presente como aqui. Ao contrário dos americanos, os ingleses recusam ignorar a história ao fazerem projectos para os diversos amanhãs. Em todo o lado se podem ver manifestações da dialéctica do passado com o futuro : fios eléctricos percorrendo escuras paredes de tijolo; ecrãs de computador entrevistos pelas janelas de guilhotina; locomotivas aerodinámicas e côres vivas nos trilhos negros do comboio; «Concordes» a desaparecer por entre as ameias do castelo de Windsor; «franchisings» dos anos 90 em edifícios barrocos do século XVIII; jovens perfurados por «piercings» nas orelhas, lábios, nariz, umbigo e sabe-se lá mais aonde a espera do ubíquo autocarro vermelho de dois andares; iates construídos em material compósito a serem elevados por velhas eclusas no Tamisa.
Perdoem-me as interpretações demasiado ambiciosas mas não consigo evitar ser influenciado pelo livro que actualmente leio, o romance filosófico «O Mundo de Sofia».
Há Londres e o resto. Do resto quase nada conheço, apenas Cantuária e Kent e o populoso vale inferior do Tamisa. Ao longo deste vale situa-se o «computer belt», de influências americanas, os grandes edifícios rectangulares de vidro, rodeados de jardins verdes onde fontes desenham formas audazes com jactos de água, plantados junto das saídas das pequenas cidades antigas (ou no centro das cidades novas). E a meio do vale o oásis de Windsor/Eton e Datchet, deixadas livres para o turista .
Mais à oeste, para lá de Reading, à volta de Oxford e o seu túnel de vento, o «Fórmula 1 belt» onde pràticamente todos os construtores de chassis desta modalidade (incluindo a Ferrari) lutam todos os dias por menos um centésimo de segundo.
Por trás das paredes de casas centenárias, dentro de velhos barracões agrícolas, muitos pensamentos novos e muitas tecnologias desconhecidas brotam deste povo ciente das suas invejáveis tradições científico-tecnológicas.
Mas não se pode viver no densíssimo e caro Sudeste de Inglaterra e conseguir evitar Londres. Mais cedo ou mais tarde é-se agarrado por um tentáculo do enorme polvo. Alimentada incessantemente por 5 terminais ferroviários principais (Victoria/Waterloo, Paddington, Euston, Liverpool Street, King's Cross), 6 aeroportos (Heathrow - 4 terminais, Gatwick - 2 terminais, Luton, City, Southend, Stansted), 8 autoestradas unidas pela famosa circular M25, 13 linhas de metro com vários ramais e centenas de estações, e impossível fugir a atracção de Londres (se calhar foi ao constatar isto que Newton descobriu a Força da Gravidade, não passando a história da maça que cai da árvore um mito para propagandear as virtudes da ruralidade inglesa).
Museus soberbos, a aura da monarquia, os tranquilos parques verdes, famosos armazéns comerciais, o dinheiro da City, tudo misturado numa pequena área central, e é claro que as ruas estarão cheias por gente de todas as raças, credos e níveis sociais, desde a mulher do milionário cuja porta do Rolls Royce está a ser aberta pelo motorista, à porta do Harrods até aos «homeless» alcoólicos, de barrigas dilatadas, barbas enormes e cheiros nauseabundos deitados nos cobertores nos cantos dos túneis de acesso ao metro ou aos parques.
De certo modo pode-se viajar por todo mundo em Londres. Se for a Gerrard Street vou à China. No Soho vamos à India ou à Tailândia ou conhecer o mundo secreto dos travestis, dos gays e de outros desviados sexuais. Para ir a Portugal, vai-se a Portobello ou a Vauxhall, onde somos rodeados por Little West Indies. Em Camden Town pode-se ouvir o muezim a chamar os crentes à oração.
Londres é uma boa escola para se aprender as possibilidades (e os perigos) da cidade. O cosmopolitismo permite a liberdade de pensamentos e o desenvolvimento da criatividade. A sua macrocefalia, por outro lado, esmaga as pessoas, obrigando-as a fazer comutações de transportes frequentes que, contabilizadas ao fim do dia, significam uma quantidade assinalável de tempo e energias consumidas só para se chegar a ou para se vir de. Ir à grande cidade é sacrificar horas em transportes.
Cada um que faça a sua escolha.V