Ora!!! Que lhe importava que o tecto caísse? Exceptuando o senhorio - que teria de o arranjar, fazer obras, gastar dinheiro, contratar artistas, trabalhar... não havia ninguém para chorar a sua inconsciência ou provável morte. Familiares, amigos, conhecidos; todos eles já tinham ido. Os que sobravam, se é que sobrava algum, já António afastara há muito dos seus pensamentos e da sua convivência. Não existiam!
Lá for a era noite e chovia. António ouvia a chuva e o vento, sentia as gotas que fustigavam as paredes e o tecto com violência; pareciam querer derrubar a sua única protecção contra a intempérie. Sentia-se apavorado... O céu chamava-o, mas António obstinava-se na surdez de quem não quer ouvir. De quem não quer saber, e não se interessa.
Fraca protecção: as quatro paredes, o chão e o tecto; tudo o que possuía. Vivia naquele quarto há vinte anos e ao fim desse tempo, mais do que viver António era parte do parte do quarto. Conheci-o melhor do que a si próprio e não havia canto, fresta, bolha na pintura, taco no soalho ou buraco que lhe fosse desconhecido. Vira-os ainda novos, vira-os aparecer e envelhecer ao mesmo ritmo com que o tempo vincara as rugas do seu rosto. Mas hoje, o quarto estava diferente. Parecia-lhe hostil... António sentia que as paredes, o chão e o tecto ganhavam vida com a tempestade e conspiravam para expulsá-lo desse seu pequeno mundo. Uma traição violenta como a chuva e o vento que a noite trazia, punhal aguçado de gotas de água que batiam na vidraça antes de se enterrarem no seu coração.
Abandonado pelo próprio quarto, António sentia nos ombros o pesar de dias consecutivos de infinita solidão. Horrível! Nem quando Claw morreu sentira uma solidão tão pesada. Claw!... Que saudade! Companheiro de quinze anos, nunca mais António pensou em procurar outro cão. Morreria naturalmente de velhice, mas a morte foi-lhe abreviada pelo ciúme da vizinha do quarto em frente: uma velha caquéctica, gorda, horrível, sempre exageradamente pintada e baratamente perfumada. Um dia, a vizinha deu a Claw um osso meticulosamente recheado de veneno de ratos, porque não suportava as festas e latidos efusivos de Claw sempre que António entrava no quarto. António não suportava os ruídos despudorados da velha sempre que o porteiro subia, às quintas-feiras pelas dez da noite, e aliviava as hormonas que a vizinha acumulava fielmente, semana após semana. Apesar de gostar da vizinha, Claw também abominava aqueles ruídos e não se cansava de uivar acompanhando, a ritmo descompassado, o ranger do divã enquanto porteiro e gorda restabeleciam o equilíbrio hormonal. Numa quinta-feira em que o porteiro trocou de quarto e de vizinha, rendido à juventude e disponibilidade de uma prostituta em pré-reforma que se instalara no quarto contíguo ao de António, Claw foi envenenado. A vingança da gorda abateu-se sobre o animal inocente, que nem tempo teve de uivar ao novo estabilizador hormonal do porteiro. António chorou o cão, chegou mesmo a vestir luto por ele, e no dia em que o enterrou num jardim público, mesmo ao pé do seu plátano preferido, pendurou uma pata do cão à porta do quarto da gorda. Ninguém soube como nem porquê (António conseguiu retirar a pata a tempo), mas quando saía do quarto - na manhã seguinte à do enterro de Claw - a velha gorda desatou aos gritos, lançou-se a correr pelas escadas abaixo a praguejar com o cão (dizia-se perseguida) e na ânsia de se libertar da sua consciência pesada acabou por cair no último lanço de degraus; bateu com a cabeça no relógio de parede, pancada suficiente para partir o pescoço e reencontrar Claw que a esperava, rosnando, para não mais lhe dar paz. A polícia e os bombeiros levantaram o cadáver enquanto o porteiro comentava, para um grupo de inquilinos: «Sempre quero ver quem é que vai explicar ao senhorio que é necessário mandar vir um restaurador de antiguidades para compor o relógio!».
António sentia remorsos. Não pela estúpida morte da gorda, mas pela satisfação que sentira quando viu a ambulância que a levava, ainda Claw estava quente...
Lá fora, a tempestade redobrava de violência. Medo e remorso, saudade e solidão, António encolheu-se na cama, tapou a cabeça com os cobertores e cantou baixinho para si próprio tentando enganar o ribombar dos trovões que lhe ecoava no cérebro, procurando aquecer a alma no calor da recordação do pêlo do cão que já não tinha. Mas era escusado. A tempestade viera para ficar e abanava, cada vez mais forte, as frágeis paredes que o protegiam... Maldita tempestade! Malditas paredes, que se aproximam da cama onde António tenta desesperadamente cair no sono e esquecer. É impossível...
Primeiro o receio, depois o pavor... agora, soterrado em recordações penosas e remorsos persistentes, António está aterrado. Salta da cama, arranca lençóis e cobertores, enfia a almofada debaixo do braço e procura proteger-se. As paredes avançam sobre ele, cada vez mais próximas... Vão cair! Sim, vão ceder a vinte anos de fendas nunca compostas.
Com estrondo, a janela estilhaçada deixa entrar pelo quarto uma chuva diluviana. O vento arrasta a cadeira, caem os móveis, levanta-se no ar a tigela de Claw antes de sair, janela fora, para sabe-se lá onde. Vento mau; vento hediondo este, que não respeita sequer as mais preciosas recordações de António. As telhas soltam-se, abrem-se buracos monstruosos no tecto e fica o céu a nu... só se vê negro e nuvens densas, velhas caquécticas e gordas e um corpo não desejado que despeja todo o seu despeito sobre um António aterrado que não quer ser levado pelo vento!
Amanhece. A tempestade já não é.
A calmaria deixa que António abandone o guarda-fatos caído e espreite a claridade que o sol vai trazendo. Quarto e alma desfeitos, António abre a porta para encontrar um corredor que se mantém de pé, insensível a tudo o que passou. Únicas vítimas da tempestade, as paredes, tecto, mobílias, livros, objectos pessoais e roupas de um António que se vê vazio. Destruída numa noite de fúria, a sua vida acaba de começar. O sol de um outro dia aquece a terra e forma pequenas bolsas de nevoeiro com a água que se evapora do chão. António ri, olhando o céu azul... gargalhadas incontroladas e incontroláveis acordam o prédio que se vai chegando a ver o espectáculo de destruição. E só então António reconhece estar nu e desapossado de tudo quanto era e quanto tinha. Volta as costas ao quarto, atravessa velozmente o corredor e Ð cada vez mais depressa Ð desce os lanços de escadas que o separam da rua. Cruza-se com o senhorio que vem subindo esbaforido, ri alto quando passa por ele e sai, porta fora, completamente despido, dançando e cantando como se fosse dia de festa e lhe coubesse a honra de abrir o desfile.
O porteiro tenta explicar o ocorrido... Parece que o homem enlouqueceu. Só deram pela coisa quando ouviram os estilhaços do vidro e o baque da cadeira a desfazer-se no passeio. Não podiam fazer nada: António estava trancado! Parece que tinha encostado o guarda-fatos ˆ porta. Destruiu tudo; nem o telhado escapou. Sim, tinham tentado avisar a polícia, mas ninguém apareceu. Não havia nada a fazer. Era melhor chamar-se um mestre-de-obras e começar a reconstruir o quarto, alugá-lo a outra pessoa. Não, ninguém conhece parente a quem possa ser pedida uma indemnização. O homem vivia só há muito tempo, quase nunca saía e ninguém o visitava. Sim, sim; é uma perda de vulto, mas ainda bem que ele se foi embora, com ar de que não pensa regressar...V