VERSIONES 16

Año del Buey - Octubre/Noviembre de 1997


Director, editor y operador: Diego Martínez Lora.
Versiones se elabora desde la ciudad de Vila Nova de Gaia, Portugal


Nídia Alves:
Partir para não mais chegar


Para um olhar mais desatento dir-se-ia que se tratava de uma jovem adolescente. A facilidade com que se deslocava, na aparente certeza daqueles que pensam ocultar o medo que os habita, chamava a atenção de quem por ela passava. Tudo nela era movimento, agitação. Um gingar de corpo solto moldado por uma ganga justa, os seios irrequietos suspensos por uma t-shirt, proporcionavam-lhe um lugar especial que captava o olhar dos outros. Poder-se-ia dizer que seja por que lugar se deslocasse, ela estaria sempre no centro daquele pequeno mundo. Ela o definia, lhe dava uma forma e o deslocava consigo. Direccionava-o à medida dos seus passos. Via-se que não pertencia àquelas terras e essa característica ainda mais contribuía para activar a curiosidade alheia.

Nada nela era extravagante mas sabia que algo dentro dela era apelativo. Sempre fora assim quando se encontrava em terras que desconhecia, pessoas diferentes de si e que não entendia. Como que ficava desarmada, soltava-se. A rede de protecção, cuidadosa e demoradamente tecida, como que se esfiava lentamente. Pouco a pouco, à medida que se encontrava assim se perdia numa imagem difusa que já não mais conseguia reter, para então servir em redor de si.

Mas sentia-se livre, livre para o imprevisível. No seu interior ocultava um respirar atento, um palpitar que escondia a ansiedade com que tudo queria tocar, observar ... e, nessa curiosidade própria de quem da vida quer levar sempre um pouco mais, revelava um olhar inquieto, quase travesso, bem escondido por umas lentes escuras.

Não sabe por onde anda, desloca-se através dos labirintos do mapa da cidade em que deposita toda a sua confiança. Experimenta ler em voz alta o nome dos locais por onde passa, as paragens da estação do metro, mas soam-lhe mal. Não parecem ser aqueles os sons certos. Alguém lhe acena com uma revista. Segue em frente, nada entende. Sorri como quem pede desculpa constrangida por nada perceber.

Finalmente decide-se e segue em direcção ao museu. Está há um dia naquele país e, como turista que pensa os seus dias de forma organizada, selecciona os locais a visitar - o museu de arte contemporânea, o parque, o café típico da praça ... e sente a insatisfação daquele que passa sabendo do muito que fica por conhecer.

Sabe que o seu olhar será sempre exterior. Difícil é não ver os que estão ao lado deste percurso, aqueles que se arrastam pelas esquinas, que dormem em grupo, nos jardins, que cobiçam dólares ... Também naquela ilustre terra há quem esteja à margem do centro em que desfilamos. Outras vidas que participam num desfile secundário. Como se existissem cercas, grades fortes transparentes, que não se veem mas que estão lá, que nos separam em trajectos organizados de forma e direcção diversa, naturais só na aparência.

Distraidamente observa a catedral que na sua imponência se sobrepõe à inclinação dos telhados e fixa-se na águia que, do seu altar, lhe dirige um olhar agressivo, violento. Treme e fixa-se, de novo, na elevação das torres. O que ainda hà momentos lhe era uma referência de poder, estabilidade, equilíbrio, agora provocava-lhe pequenez, um encolher de ombros.

Sente uma dor fininha no peito, uma pontada como diriam na sua terra, e nessa sensação reconhece o sinal de que algo está para acontecer. Encontra-se envolta num manto de apreensão que não consegue desatar. Uma sombra bem cinzenta aproxima-se lentamente, mas com firmeza, e afasta os já ténues raios de sol. Sorri nervosa pela ansiedade que pressente no vento frio que a abraça. Confirma o sentimento de em todas as terras os fins de tarde serem iguais, transbordam melancolia.

Levanta-se da esplanada e solta o cabelo tentando sacudir a humidade que sente na alma. Lembra-se que nos momentos em que necessita de recuperar novas energias, recorre frequentemente a esse velho hábito de soltar o cabelo. São horas de regressar. Prepara-se para voltar e, mais tranquila, retoma o caminho que lhe parece indicar a casa onde está hospedada.

Procura o mapa que não encontra, procura a planta do metro, onde? Faz um esforço mas não lembra o nome da praça onde entrou na estação do metro. Rapidamente os seus dedos saltam na procura da agenda minúscula, na procura de nomes, números, ..., enfim dos rostos dos amigos que estão longe. Com raiva recorda a sua incapacidade para decorar números. Dos contactos sempre captou a última sensação, sentimentos, momentos ... agora números!

Dirige-se a alguém que passa, mas parecem não reconhecer aqueles sons. Sorriem com benevolência e afastam-se num passo apressado à procura do calor de casa, na fuga daquele frio cortante.

Dá voltas, voltas e mais voltas arrastada pelo rodopio do vento, e ninguém parece entendê-la. Agora percebe o significado daquele sinal, presságio de um gelo de cortar almas. Inspira bem fundo, numa última tentativa de recuperar forças, e procura desembaraçar-se do vento. Pensa chamar um táxi mas não sabe para onde seguir. Treme de pavor. Acelera-se-lhe a respiração... corre sem uma orientação como quem salta no vazio e quase que é atropelada. Recompõe-se do susto sentada no banco do jardim. Soluça baixinho. Não sabe explicar como tudo aconteceu. Culpa a águia, relembra aquele olhar, as garras, as nuvens, o frio, ... Percebe que participa num quadro que lhe estava destinado. Num instante relembra o museu, o olhar perdido daquela estátua de corpo tombado - e vê-se projectada na pedra que adquire a forma do seu corpo. Apetece-lhe também adormecer naquela espera de morte, assim, deitada no banco do jardim. Aos poucos se descobre num novo mundo em que as suas referências se resumem a ela própria, resumem-se a si, aos seus contornos, e aos passos que dará. Está desamparada. Só tem história mas já não lhe consegue tocar. O peso do presente é mais forte e empurra-a para um desconhecido sem ligação à sua história, ao seu passado já longínquo. Atrás de si sente que uma porta se fechou, pesada nas suas traves de ferro. Tudo se processa com rapidez e nada consegue reter entre os dedos. Não tem dinheiro, também não sabe do bilhete de regresso.

Só tem uma vontade louca de voltar ao seu país, de ter um ninho. A noite chega. Doem-lhe as pernas. Uma luz afirma-se persistente na escuridão do parque. Olha esse outro lado, que lhe parecia tão distante, e aproxima-se na direcção da fogueira.

Senta-se sem olhar à sua volta, não ousa encarar aqueles rostos, teme de novo o olhar da águia. No grupo encolhem os ombros conformados com mais este elemento e continuam a comer e a aquecer-se. Um deles assobia sozinho, olha-a e facilmente percebe o que será o futuro desta jovem turista. No seu silêncio implora um ombro mas nada diz. Tem as mãos fechadas, tensas, e o olhar assustado das crianças quando acordam de noite.

Já poucos carros passam na estrada. Sente-se ao lado de tudo embora saiba que aquela terá que ser a sua terra. Olha a cidade a partir de um olhar que, como lhe é possível agora confirmar, será para sempre exterior.V


(*)Nídia Alves, escritora e socióloga portuguesa. Mora no Porto.