VERSIONES 16

Año del Buey - Octubre/Noviembre de 1997


Director, editor y operador: Diego Martínez Lora.
Versiones se elabora desde la ciudad de Vila Nova de Gaia, Portugal


Paulo Vicente Salvador:
Ódio ao mundo


Royal Academy of Sensations


Um néon azul claro pode ser uma máquina de morte. Mais uma das invenções improváveis deste século interminável. Basta esperar uns momentos e logo se vê a intensa luz amarela a electrocutar o corpo negro de uma mosca. Por baixo, em linha vertical da misteriosa luz azul clara, uma pilha negra de indistintas formas acumula-se, tal como uma montanha de cabeças construída a partir dos infelizes habitantes das cidades conquistadas pelas hordas mongois nos tempos bárbaros de Gengis Khan. Ao lado da pilha negra morta uma cabeça exangue de uma vaca mostra o seu vermelho vivo disforme por entre uma outra pilha negra, está bem viva. Esta trindade, luz azul, pilha morta, pilha viva, está protegida de nós por um cubo enorme transparente. Este cubo tem duas passagens que dão para outro cubo de idênticas dimensões que abarca um outro cubo, este opaco onde as moscas se reproduzem a vontade.

Moscas pretas, perfeitamente pretas voam ao acaso por todo o espaço dos dois cubos. Qual será o seu destino ? Pilha morta ou pilha viva ? Espere para ver. Mesmo do lado de cá do cubo protector consegue-se sentir o cheiro putrefacto. É que este protegido ecossistema tem já sete anos de idade. E pretende resistir muitos mais porque o nome que lhe deram foi «A Thousand Years», 1990. Não, não foi numa noite de insónia atravessada por pesadelos. Isto, meus senhores, é arte como definida por escolas alternativas londrinas dos anos 90. Esta obra de arte é apenas mais uma das que não nos passam desapercebidas na polémica exposição «Sensation», aberta ao público curioso neste Outono triste no espaço da respeitável (e semi-falida) «Royal Academy of Arts», na Burlington House, a dois minutos a pé de Piccadilly. O autor desta obra-prima mosqueiral é Damien Hirst (nascido em 1965), o mais famoso artista da sua geração. De certeza que come todos os dias criancinhas ao pequeno-almoço. Hirst é obcecado por animais. Outras obras dele nesta colecção são: um porco cortado longitudinalmente em duas metades que mecanicamente e ciclicamente se unem e desunem mostrando todos os órgãos internos; um enorme tubarão tigre mergulhado num tanque de clorofórmio e água de boca aberta cheia de dentes afiados e a olhar para nós com um ar ausente; doze tanques iguais, cada um com um pedaço de uma vaca esquartejada (um aperfeiçoamento em pormenor da obra com o porco acima referida), muito interessante para anatomistas, e denominado «Some Comfort Gained from the Acceptance of the Inherent Lies in Everything» (1996). Hirst deve odiar a Natureza.

Mas nem só de Hirst vive a exposição. Jake e Dinos Chapman são escultores, e preferem materiais baratos, de preferência poliméricos porque dão menos trabalho a moldar. Imaginem uma árvore morta e nua, com apenas um ramo forte a sair do tronco. Imaginem dois homens amarrados ao tronco, nus e castrados. Ao ramo um outro corpo castrado e nu sem cabeça nem braços, agarrado pelos pés, e na ponta do ramo a sua cabeça com um bigode bem cuidado e os braços ao dependuro: «Great Deeds Against the Dead» (1994) e a tridimensionalização de uma famosa pintura de Goya. Os Chapman de certeza odeiam a Humanidade.

Há também um toque de multiculturalismo. Chris Ofili (nascido em 1968) é um pintor negro e nota-se imediatamente as suas raízes étnicas pela profusa e excessiva utilização de cores vivas. Os seus padrões disformes e psicadélicos levam-nos a pensar que muito charro passou já pelo cérebro. Ofili gosta de utilizar muitos materiais para as suas pinturas. Mas o seu material preferido, sem dúvida nenhuma, e a bosta de elefante. Desidratada, evidentemente, para manter o seu volume esférico. A bosta de elefante é utilizada para duas coisas. Para separar a base do quadro do chão (e assim evita-se ter que pendurar na parede e fazer buracos) e para dar a terceira dimensão aos quadros. Digam lá se alguma vez tinham visto representar uns seios, umas cabeças, ou umas bolas com bosta de elefante?. Sou capaz de apostar o meu ordenado deste mês em como Ofili odeia ter tido que nascer um dia.

Rachel Whiteread vive obcecada pelo vazio. Não é que ela arranjou 100 cadeiras, envolveu-as num molde e encheu de resina todo o espaço compreendido entre o assento e o chão e depois de deixar secar retirou as cadeiras ? «Untitled (One Hundred Spaces), 1995». Um exército amarelado de 10 por 10 impede-nos de cruzar a enorme sala. Nunca tinha visto uma forma tão original de ocupar inutilmente todo o espaço de uma enorme sala (e é, tão obscenamente caro o metro quadrado aqui por estas bandas!). Gostava de conhecer Ms. Whiteread. De certeza que não faz ideia do que se passa neste mundo. Não me admirava que nunca tivesse ouvido falar da princesa Diana. Coitada! Provavelmente de novo charros a mais.

Dentro de «Sensation» todos são iguais. Mas há uns mais sensacionais do que outros (não estou a referir-me a porcos). Porque há uma peça de arte de que toda a gente fala. É e a única que está fisicamente separada do angustiado visitante e que tem segurança própria. Vou descreve-la: imaginem que houve uma mulher famosa na Grã-Bretanha que se dedicava a matar criancinhas. Chamemos-lhe Myra Hindley. Depois imaginem que tem uma fotografia dela, frontal, a olhar para nós, com um olhar carregado, tirada pelas máquinas da polícia. Agora imaginem que aumentam a fotografia uma mão cheia de vezes. Temos a gigante Myra Hindley e o seu olhar penetrante, desenhados quase abstractamente pelo grão enorme. Satisfeitos com o efeito? Marcus Harvey (nascido em 1963) foi mais ambicioso. Ele pensou : e se o grão não fosse um mero círculo monocromático ? Eureka ! E o grão foi substituído por pequenas mãos inocentes de crianças, «Myra, 1995». A face da assassina de crianças reconstruída por mãos de criança! O público enojou-se deste arrojo. Harvey tem sorte de Khomeini já ter morrido. Nada mais aconteceu do que alguns ovos terem sido atirados ao quadro que, coitado, não tem culpa nenhuma. Tenho a certeza que vocês tem a certeza que Harvey odeia o mundo.

Estão com fome? Sentem-se aqui nesta agradável cadeira se fazem favor. Em frente a nós uma mesa posta, um prato, talheres, guardanapo e copo. Mas, o que é isto? A superfície do prato é um ecrã onde se assiste aos movimentos ritmados da laringe e do esófago. Agora e o piloro e a seguir o duodeno: «Deep Throat, 1996», um autoretrato de Mona Hatoum. Mona procura sofregamente alguma outra beleza em si. Ela deve odiar o seu corpo exterior.

O pai idoso de Ron Mueck (nascido em 1958) morreu. Mas Ron não se esqueceu de o homenagear. Ignoramos como teve acesso a câmara funerária onde o progenitor jazia, mas sabemos que o fez já que se pode ver o seu inteiro corpo branco-azulado frio enrugado na sua eterna imobilidade. O que me pergunto é porque é que a estátua do velho homem tem um tamanho reduzido de 90 cm, «Dead Dad, 1996/7». Ninguém me tira da cabeça que Ron odiava o papá.

Podemos também meter-nos na vida alheia. Na tenda de campismo no meio da galeria 10 cosidos a parede interior, os nomes de «Everyone I have slept with 1963-95», 1995, de Tracey Emin (nascida em 1963). Uma autobiografia vinda do lado onde jazemos durante um terço da vida. Tracey deve odiar estar acordada. Infelizmente é impossível debruçar-me mais sobre «Sensation». Tornar-se-ia interminável. Ao fim de duas horas voltei à tranquilidade do ar poluído, do barulho ensurdecedor e do «stress» da grande metrópole. Amém! V


(*)Paulo V. Salvador, escritor e engenheiro químico português. Mora em Londres




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