VERSIONES 16

Año del Buey - Octubre/Noviembre de 1997


Director, editor y operador: Diego Martínez Lora.
Versiones se elabora desde la ciudad de Vila Nova de Gaia, Portugal


Rui de Barros:
Um romance à janela do futuro


Renato Barbosa - poeta indolente, mas pretencioso - estava a meditar no pequeno trono de vime de uma taberna marítima, sobre a temática a seguir no seu primeiro romance. A escolha era pavorosamente árdua e submetia a uma duríssima prova as espremidas meninges do ambicioso fabulista.

Renato Barbosa já não era nenhum rapazinho, mas também não era, como se pode pensar, velho; não era muito feio, mas também não era nenhum Adónis; não era pobre, mas também não tinha nada de rico; não era completamente desconhecido, mas também não era célebre. Talvez um pouco popular. Por cada novo livro escrito esperava sempre agarrar o grande prémio da sorte, mas até então os seus triunfos tinham sido modestos e, infelizmente, efémeros. Não podia nem queria conformar-se com aquela sua pálida e saltitante fama que se apoiava apenas sobre duas escoras mal seguras: a complacência de um ou outro salão e a condescendência da crítica de um ou outro amigo.

E no entanto, o nosso Renato Barbosa fizera quanto pudera para se pintar com as cores e tons da época. Namoriscara os existencialistas, piscara o olho aos surrealistas, frequentara os abstracionistas e requestara os mágico-realistas. Apesar de ser sentimental era também um pouco libidinoso, e embarcara, para colher experiências literariamente aproveitáveis, em numerosos cruzeiros amorosos, que no fim lhe custaram angústias e desapontamentos. Introvertido por natureza, nunca tinha atingido o sagrado conforto da cama como experiência final. E isso o deixara sempre defraudado e a meio caminho. As mulheres viam nele a companhia ideal nos salões e procuravam outros para consolo dos desejos. Era assim o nosso Renato Barbosa um ornamento para investidas sociais. De resto a sua timidez não augurava nada de lascivo. Bem antes pelo contrário.

Naquela noite de Julho, na poltrona de vime, reanimado por uma mistura de alcoólicos fortes, Renato estava pensando que tinha chegado a altura do grande golpe, da afirmação fragorosa e frutuosa do seu génio. O seu primeiro romance torná-lo-ia uma luminosa pétala na "rosa" dos ignorados. Chegara à fase decisiva: agora ou nunca. Mas era preciso encontrar um argumento, um belo argumento, um argumento novo, excitante, picante e saboroso.

Não o preocupavam a forma, a linguagem e o estilo. Já percebera muito bem que quase todos os outros se contentavam com um português corrente e aproximativo, às vezes descuidado e comercial, amiúde enflorado de formas exóticas ou dialectais, isto é, de um português que já não era luxuoso como o de Pessoa, mas também não era nú; apenas esfarrapado e desbotado. E verificara também que certos escritores famosos se tinham libertado, não se sabe se por jectância, se por falta de saber, dos vínculos da velha sintaxe. Os períodos, à força de empurrões, coxeando, iam para a frente, mas muitas vezes não batiam certos. Renato sabia que escrevia suficientemente mal para satisfazer o gosto dos leitores e dos juízes dos prémios literários.

A primeira dúvida surgia-lhe quando se tratava de escolher os modelos e os mestres a seguir na sua poesia. Todos, ou quase todos, já haviam passado de moda. Restava um ou outro que na sua companhia se podia andar como sobre veludo; não havia receio de cair mal, isto é, de sair da terra prometida do pecado. Nesses havia algo de bom, isto é, bom para ser tomado e imitado. E, com medo de se enganar, o afoito Renato, resolveu fazer uma bem doseada mistura, ao jeito daquela que saboreava no trono de vime à beira rio e que lhe descomprimia as meninges. Um torrãozinho de Saramago, outro de Sena, talvez, porque não, de Eugénio, porque não, talvez ainda, de Sade ou D'Annunzio ? E como já não estava para meias medidas, deliberou acrescentar-lhes uma pitada dos problemáticos Kafka e Genet, mesmo pertencendo a raças diferentes. Por fim, para ligar melhor a sarapintada emulsão, lembrou-se de se socorrer da psico-análise, agora um tanto desacreditada, mas sempre prestável e bem vista. Valha a verdade: Renato Barbosa não tinha lido mais que um ou outro resumo ou selecta de Freud, mas nem por isso se amedrontava: sabia que cultura e profundidade eram lastros inúteis, e até nefastos, para um escritor dos nossos dias.

Nenhuma incerteza havia na mente de Renato Barbosa quanto à matéria do seu novo livro. Não podia nem devia ser - como a sorte dos seus mestres e dos seus émulos o demonstrava - senão matéria erótica. O embaraço da escolha de um novo assunto era todavia grave e angustioso. O reino da sexualidade é, como todos sabem, bastante vasto, mas, infelizmente, os predecessores de Renato tinham-no percorrido em todos os sentidos, sem tímidas reticências nem falsos pudores, e só restava o debulho por apanhar. Mas até isto era difícil. Devia-se, em primeiro lugar, renunciar ao amor, ao amor de velho estilo, clássico ou romântico, o que não era muito ao seu jeito de renúncia. Já todas as categorias de amor tinham sido catalogadas por Stendhal. Até o adultério que trasandava a mofo e a bafio, podia ainda servir como premissa ou recheio, mas muito mais era preciso. Também o satanismo erótico, delícia dos primeiros e últimos românticos, já não pungia nem espumava. O incesto, que no começo do século ainda parecia picante a certos ingénuos, já devia ser usado com parcimónia, quando muito como acessório. Todas as perversões e inversões enumeradas nos tratados de sexologia já haviam fornecido temas e caractéres às últimas fantasias literárias. As relações homosexuais ou lésbicas já não constituiam segredo nem para o público das bibliotecas municipais.

Renato Barbosa, sempre afundado no seu assento de vime e na sua inquieta meditação, pensou por um momento em explorar a lubricidade precoce dos rapazinhos e dos adolescentes. Mas recordou-se a tempo que esta matéria tão sedutora já servira a dois estrangeiros para obterem ricos prémios literários. Também as aventuras campestres de rapazolas cínicos e de meninas sem escrúpulos, tinham já tido a mesma sorte, isto é, os mesmos louros.

A Renato Barbosa ocorreu então a ideia da prostituição, que podia oferecer apetitosos desenvolvimentos. Mas, para seu mal, alguém mais solícito já contara num grosso volume as façanhas de uma rapariga, prostituta por vocação, e o livro fora acolhido com imenso favor pela crítica e pelo público.

Renato, por desespero, agarrou-se a uma última tábua de salvação: escreveria o romance de um homem que não pode ser homem, do rapaz elegante e bonito que é desejado pelas mulheres, mas que se vê obrigado a fazer o papel do casto José em casa de Putifar. Mas, depois, o infeliz romancista recordou-se que o melindroso assunto tinha sido já aproveitado por um engenhoso.

Para o pobre Renato Barbosa não havia salvação. Qualquer zona ou região da sexualidade já tinha os seus vitoriosos ocupantes. Não podia esperar sequer vencer a desapiedada concorrência fazendo pompa de uma linguagem mais crua e descarada. Os seus imediatos precursores já tinham suprimido, havia muito, os eufemismos e declarado guerra às parras: não tinham recuado diante das palavras de sargeta.

Passou uma hora de torturante e vã exploração. Por fim, Renato Barbosa, como viu vedados todos os caminhos, teve um clarão de génio. A verdadeira novidade e originalidade, no presente dilúvio do obsceno e do sórdido, não podia ser senão uma: narrar simples e serenamente a vida de um mocinho ardente, mas honesto, que se apaixona por uma mocinha ingénua e pura, que casa com ele e torna-se uma esposa fiel e feliz, mãe amorosa, sogra paciente, avó juvenil e satisfeita.

Renato Barbosa levantou-se num ímpeto do seu pequeno trono de vime, correu para casa, pegou numa folha de papel branco e começou, placado e ditoso, a escrever: « Era uma linda manhã de Abril, morna e ventilada. Maria, juntamente com o pai, descia por um trilho ladeado de sebes frescas e perfumadas, árvores floridas a roxo, e sentia-se feliz. A folha mais humilde, ondeando ao sol, parecia-lhe divina e comovia-a com insuportável doçura...»

De repente Renato Barbosa parou abruptamente de escrever, machucou o papel com violência e atirou-o para um canto do quarto. Pegou outra folha de papel e recomeçou a escrever: «Era uma vez um menino de bibe azul que sonhava um dia ser homem...»

Renato Barbosa continuou a escrever pela noite fora. Mas não sabemos se conseguiu acabar o seu primeiro romance e menos ainda se conseguiu, nesta idade do «animal triunfante», fazê-lo publicar ou simplesmente ler.


(*)Rui de Barros, poeta e pintor português. Mora no Porto.