Raquel era reconhecida no Conservatório como uma excepcional aluna, talvez uma futura eleita no mundo musical, um génio do piano, como no violoncelo havia sido Guilhermina Suggia, tanto mais que, pela idade, o virtuosismo ultrapassava largamente a medida dos seus vinte e un anos!
Como nada lhe faltava no ambiente familiar onde todos os caprichos lhe eram satisfeitos, não havendo namorado susceptível de provocar aquela súbita atitude, nem ciúmes fraternos que a levassem a amuar ou a irritar-se, toda aquela situação escapava à mais meticulosa análise, pelo que cheguei a admitir visitá-la e, insistentemente, conseguir a verdade de uma confissão, sobre os motivos responsáveis pela sua deserção inesperada e estranha!
Sabia que ela se refugiara e passara a viver junto de minha irmã Octávia, a melhor de todas as tias e aquela que se lhe tornara, ao invés dos pais, a sua confidente dos problemas difíceis, desde a puberdade. Era com ela que passava longos dias, deixando de dar notícias mas mantendo a convivência o que agora terminara.
Seria inútil, por linhas travessas, conseguir de Octávia a revelação dos motivos, sabendo como ela era reservada e incapaz de trair o mínimo segredo de quem quer que fosse, tanto mais o de Raquel que, certamente lho teria confidenciado.
Por mais que me interrogasse, mesmo num exame de consciência a levar-me até às discussões que eventualmente surgiam entre eu e minha mulher, não vislumbrava nada que tivesse provocado a decisão de minha filha.
Sempre reconhocera o feitio especial dos artistas, pessoas a viverem um mundo paralelo e susceptível, premiado com uma sensibilidade superior e génio difíceis !
Mas a verdade é que Raquel sempre fora por todos nós respeitada, dentro do seu próprio egocentrismo nas longas horas de ensaio, inicialmente fastidioso pelas sucessivas escalas, provocando-nos nervosismo, bocejo da mãe e dos irmãos, mas guardando-se o silêncio necessário à sua concentração. Não fora por razões ambientais para o estado musical, o motivo que a levara a trocar o piano de sua casa, pelo da residência da tia.
Aos vários telefonemas que lhe tínhamos feito - é certo que sempre atendera as chamadas -, respondia evasivamente à hipótese de regressar a casa. Afirmava não existir motivo para que tal não viesse a acontecer mas, argumentava num tom veemente, necessitar daquele interlúdio para se inspirar na difícil frequência do curso, verdadeira viragem para conseguir uma nota excelente, no aproveitamento periódico que se avizinhava. Em casa dispersar-se-ia, por muito sossego e respeito que tivessem para com os seus ensaios.
Como pai, pressentia estar ela empenhada num esforço terrível para se mostrar persuasiva, mas algo me segredava a simulação, não sendo cem por cento verdadeiras as justificações. Continuava, pois, sem explicação, o real motivo do seu afastamento!
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Os sentimentos de Raquel não diferiam muito dos de qualquer artista. A sensibilidade dos grandes mestres cujas obras interpretara ao piano - Chopin, Mozart, Beethoven, Tschaikowsky e tantos outros -, passava por estados de alma anormais a qualquer pessoa comum, daí a genialidade das composições, o alcançar-se uma pura forma de Beleza, alheia ao materialismo vulgar e amorfo de tanta gente. Não seria por exagero, considerar-se possuir a jovem, em relação aos familiares que a rodeavam, uma maior tristeza, a certeza de poder vir a experimentar um amor muito maior e diferente por alguém por quem se viesse a apaixonar, de qualquer maneira, uma expressão diferente, decerto a motivar-lhe a mudança para casa da tia Octávia.
Fora um pequeno gesto de ternura associado a uma tentativa de beijo nos lábios, depois de vários afagos a denunciarem uma maior intimidade que naquele momento a dispersavam do ensaio. Raquel fechando os olhos sentia reavivarem-se-lhe todos os sentimentos contraditórios que a assaltavam, num hino de conquista, uma alegría imensa, embora toda aquela audácia nascesse de um jovem muito mais novo do que ela, ainda confundido, certamente dos caminhos do amor, mas possuído daquele fulgor e paixão, próprios de quem gosta e se projecta no desconhecido sexo. Repudiara as tentativas de Filipe e procurara afastá-lo de si, embora sentisse com naturalidade o desejo de lhe corresponder, sabendo da pureza e frescura do seu anseio, envaidecida por ser a eleita conquanto agarrada a um preconceituoso bom-senso de não aceitar aquela situação.
Já antes vislumbrara qualquer coisa de estranho, quando Filipe a rodeava, devorando-a com o olhar, suspirando ostensivamente, remexendo nervosamente as mãos para acabar afastando-se dela, quase a fugir, como que arrependido de se ter denunciado de algo aflitivo e a evidenciar-se da sua postura. Apenas não comprendera até que ponto a sua imagem o perturbava, nem das razões por que isso acontecia.
Tratava.se assim de um problema de paixão da juventude a afastá la de casa.
Raquel sabia, a princípio, ter necessidade de dominar aquela admiração pelo gesto de ternura de Filipe, porquanto, sempre que ele lhe surgia ao pensamento, o estudo de piano era de imediato prejudicado assim como a técnica que procurava melhorar em cada andamento musical. Era-lhe, contudo, impossível lançar ao esquecimento o carinho sentido na ocasião em que os lábios dele tinham pousado, ingenuamente, com simplicidade, nos seus, enquanto a sua mão lhe afagava a nuca e os cabelos, num ínfimo mas inolvidável momento, aquele instante jamais repetido, nunca experimentado, talvez planeado por um espírito superior a projectá-lo no futuro das recordações de ambos.
Voltou a reiniciar a partitura musical, uma vez mais interrompida, prometendo a si própria afastar em definitivo tão perturbadora imagem.
Por outro lado tinha saudades dos pais e remordia-se com o facto deles também sentirem a sua falta, nos telefonemas diários e frequentes da mãe e de uma conversa um pouco mais demorada e significativa com o pai a quem mentira sobre as verdadeiras causas da mudança para casa da tia Octávia.
Aproximava-se a data da sua importante frequência no Conservatório. Raquel prolongou após o jantar o tempo de ensaio, repetindo os pontos musicais que lhe pareciam mais atrasados, sobretudo no compasso que teimosamente se adiantava ao ritmo exigido e seria o suficiente para lhe fazer baixar a nota o que, para os seus professores parecia não se justificar, pelo seu virtuosismo, a fazer já naquela altura inveja a muitos conceituados concertistas mais velhos.
Foi nesse momento, já passava um pouco das dez da noite que a tia a interrompeu, informando-a:
- Raquel, está ao telefone o seu irmão Filipe!
Levantou-se imediatamente, decidida, os olhos brilhantes, determinada a finalizar com as ilusões, os indevidos e inqualificáveis desejos do irmão mais novo, responsabilizando-o por tudo o que lhes estava a acontecer.
Quando chegou ao telefone, Filipe já tinha desligado. V