VERSIONES 17

Año del Buey - Diciembre 1997/Enero1998


Director, editor y operador: Diego Martínez Lora.
Versiones se elabora desde la ciudad de Vila Nova de Gaia, Portugal


Luís Morais:
A fuga


Faltavam-lhe dois dias para fazer 50 anos. Pensando na proximidade dessa data, Anselmo via-se um homem de meio século à beira de um abismo depressivo. Tudo lhe era negro e sem futuro. O próprio nome incomodava-o; chegava a pensar que os pais o tinham escolhido como uma cruz de que nunca poderia aliviar-se: Anselmo dos Santos Dias! Era ridículo!!! E era verdade... Todos os dias, exceptuando estes últimos, lhe foram santos; santos e vazios como as conchas perdidas na areia, à beira-mar. Era o que sentia quando olhava para o seu passado; para o caminho que trilhara, como uma reles ovelha que se deixa enfeitiçar pelos pastores que fingem conduzi-la às melhores pastagens. A caminho do emprego, Anselmo pensava nas pastagens e sentia-se enjoado e enojado. Não suportava o cheiro da erva verde, a imagem do pastor, a campainha ao pescoço e o bastão e os cães que o empurravam de volta ao rebanho sempre que uma flor mais apetitosa se afastava do caminho do pastor. Apetecia-lhe vomitar. Estava farto de pastores... De pastores, de rebanhos, de cães de guarda. Estava farto de ser ovelha. E estava farto de carregar um nome santo que lhe amaldiçoara os dias. «Que diabo! - pensava - Mesmo aos cinquenta anos um homem tem o direito de mudar.»

Ao longo desses anos conheceu cinco espécies de pastores: primeiro, os pais; depois, o chefe; finalmente, a mulher; os sogros, e os filhos. Ovelha obediente, deixou que cada um deles lhe tosquiasse a alma e ordenhasse o espírito. Ofereceu aos pastores o que o seu corpo produziu, e parecia-lhe chegada a hora em que também a carne seria sacrificada para satisfação de caprichos a que nunca teve direito. A ovelha enegrecia de raiva e solidão, e magicava malabarismos para saltar o redil e correr mundo à procura de um sonho perdido. A porta do emprego estava ali, defronte. Paralisado, Anselmo não conseguia decidir-se a entrar. Um acto tão simples como o que fazia de Segunda a Sexta nos últimos 28 anos parecia-lhe agora um passo impossível. De dentro do edifício vinha-lhe um cheiro a feno e a estrume que causava suores frios de tanto que amargava na boca. Encostado a uma árvore, Anselmo vomitou o pequeno almoço, indiferente aos olhares repugnados da gente que passava. Alargou o nó da gravata, desapertou o colarinho, pousou a pasta em cima dos restos de pequeno almoço vomitado e virou costas ao edifício. Olhou em volta para descobrir que o dia estava bonito, cheio de sol e de azul recortado entre os prédios que o rodeavam. Sentindo uma irresistível vontade de olhar melhor o céu, tirou o casaco, pousou-o em cima da pasta e começou a andar, a passo apressado e sem destino, mas para longe daquele que foi o seu intemporal estábulo.

Do emprego telefonaram para casa. Atendeu o filho mais novo: que não, o pai já tinha saído há muito tempo... A mãe não estava... Sim, estava sozinho... Não, não sabia se tinha acontecido alguma coisa... Sim, se o pai aparecesse ou telefonasse dizia-lhe para telefonar para o chefe.

Três dias depois, uma mulher lavada em lágrimas participava na esquadra da polícia o desaparecimento do marido: Anselmo dos Santos Dias, de 50 anos e um dia, figura assim e assado, vestindo isto e aquilo e que foi visto pela última vez por um colega do emprego à porta do edifício onde trabalhavam. Sim, sim, já tinha telefonado para todos os hospitais, morgues, familiares próximos e distantes... não havia quaisquer notícias.

A polícia encontrou Anselmo na praia; acompanhavam-no um rafeiro de gravata ao pescoço e uma mendiga com um saco de plástico às costas. Sem oferecer resistência, Anselmo deixou-se levar até à esquadra, respondeu educadamente a todas as perguntas do psiquiatra de serviço e esperou que a família fosse buscá-lo. Obediente, entrou no carro e escutou atentamente as recriminações da mulher e dos filhos: que devia estar doido; que era inadmissível ter causado tanta canseira e preocupações; que eles não podiam andar sempre a correr atrás dele; que tinha deveres e obrigações... Nem uma palavra de conforto, nem uma palavra de preocupação.

O coro de lamentações tornava-se cada vez mais forte. Sem abrir a boca, Anselmo perscrutava o horizonte, já alheio e indiferente ao que se passava. Quando passavam a ponte, em direcção a casa, Anselmo abriu a porta do carro, saiu, rolou pelo pavimento cerca de 20 metros e depois, sem dores nem feridas, levantou-se, subiu as grades, abriu os braços e lançou-se num v™o final em direcção às águas sujas do rio. As águas abriram e fecharam tragando um Anselmo em paz.

Na praia, uma mendiga de saco de plástico às costas acompanhada por um cão de gravata ao pescoço viu uma ovelha que pastava nas dunas. A ovelha baliu, a mendiga aproximou-se e a ovelha começou a lamber-lhe as mãos. Desconfiado, o cão farejava o cheiro familiar que o animal exalava. «Vou chamar-lhe Selma!», pensou a mendiga.V


(*)Luís Morais, economista portugués. Mora no Porto.