Ocorriam-lhe penosa e sistematicamente, uma enormíssima quantidade de pecados próprios cujo nível de gravidade exacerbadamente subia, à medida que aquela desgraçada memória lhos trazia à consciência, aumentando-lhe a angústia até limites insuportáveis.
Transportava-se a uma longínqua infância na aldeia, às dificuldades económicas da família durante os anos da segunda guerra mundial, quando seu pai judeu fugira para as minas da Borralha, não fosse o primeiro-ministro enviá-lo para uma das estâncias de férias que Hitler reservava para os filhos de Sião, à educação fanática e ríspida da mãe, obrigando-o a acompanhá-la com frequência à igreja da aldeia, onde o padre Albano de sobrepeliz sobre a batina, o aterrorizava assim como a todos os fieis presentes, de braços erguidos no ar, ameaçando-os com as terríveis e infinitas penas infernais desenterradas da sua interpretação de versículos evangélicos, passagens bíblicas desprovidas de qualquer contexto do supremo Amor de Deus.
Em casa, frente à malga da sopa ou mordendo meia sardinha salgada de barrica, quando olhava de soslaio para a cabeça sempre baixa da mãe, temendo que ela viesse a descobrir qualquer um das suas traquinices, fruto da idade, era frequentemente castigado com dureza, sendo esconjurado pelo seu mau comportamento, digno de mais tarde vir a sofrer as penas infernais, prometidas pelo padre Albano nas suas práticas escatológicas.
Essas recordações produziam-lhe um especial remorso que, como um amigo indesejável, o acompanhava constantemente, pensando na mãe já falecida e como lhe fora impossível tornar-se santo para ela, cuja maior ambição sempre seria que ele viesse a entrar para o seminário e, mais tarde se transformasse num virtuoso orador sagrado, semelhante ao padre Albano.
Agora, sem a mãe e o pai, este vítima prematura de uma silicose alcançada nas minas, além da mulher e uma filha em idade debutante, poderia considerar-se um homem feliz, não fossem aqueles malditos escrúpulos a atormentá-lo constantemente, o espírito perturbado e em desespero, por uma simples troca de olhares com uma mulher que se cruzasse com ele, obrigando-o a recorrer o mais depressa possível a um sacerdote, de preferência o director espiritual para se confessar, sabendo da reprimenda que de imediato ouviria do seu confidente, já farto das constantes solicitações de que era alvo.
Durante algumas horas procurava, numa meditação silenciosa, seguir as instruções do padre a quem recorrera, tentando uma coragem para resistir às múltiplas tentações do espírito e da carne que por vezes lhe faltava, substituída que era por medos incontroláveis de pecados a surgirem por todos os lados, sendo os mais sistemáticos os que se lhe relacionavam com a vida sexual.
Na repartição onde trabalhava tinha um amigo a quem confidenciava os seus problemas, pedindo-lhe um auxílio impossível para a solução de uma angústia muito particular e inacessível à mais cuidadosa análise e aos melhores conselhos de terceiros, impedidos, naturalmente, de penetrarem na consciência e substitui-la por uma outra mais elástica e compassiva que lhe viesse a resolver e eliminar os terrores da condenação eterna, proporcionando-lhe uma vida mais sossegada.
Todos na sua casa sofriam com a sua maneira de ser, a sua habitual má-disposição e falta de apetite, o mutismo em que se fechava a ruminar auto-acusações sem ter fim, o alheamento a problemas importantes, um dos quais se relacionava com a educação da filha, numa idade de transição difícil, naquela altura em que se começava a aflorar nela o nascimento da mulher adulta e, todos os problemas marginais e inerentes a tal modificação de corpo e de carácter, remetendo-os para a mulher numa manifestação de rude machismo que, no entanto, contrastava em absoluto com os seus bons sentimentos, transformando-o, por vezes num autómato, como acontece com os drogados a viverem um mundo aparte e estranho, semeado de egoísmos e desilusões extremamente caras e dolorosas. Os escrúpulos actuavam como uma perfeita e letal cocaína!
Ao jantar, depois da sobremesa e da filha se ter retirado à sala contígua para ver a novela televisiva, a mulher tinha-lhe referido do olhar assustado que lhe notara, não sabendo explicar quais as razões que lhe motivariam tal estado de espírito.
Ensimesmado com o que lhe revelara a mulher, resolveu empenhar um pouco do seu tempo para descobrir as razões de susto da filha, tanto mais que numa primeira conversa ela nada lhe adiantara sobre o assunto. Repugnava-lhe seguir furtivamente a jovem, sentindo-se como um detective daqueles filmes da televisão a espiar os passos de uma qualquer dama, eventualmente infiel ao marido e a ocasionar fotografias comprovativas de adultério e consequente divórcio com culpa formada. Ao cabo de dois dias, verificou que a ela se dirigia pacificamente ao liceu, conversava por vezes com colegas antes do início das aulas ou à mesa de qualquer confeitaria limítrofe onde lanchavam ao fim da tarde, deixando-as logo a seguir e dirigindo-se para casa. Esta rotina enervava-o, tanto mais que a sentia regressar à calma habitual, sem lobrigar motivos para que continuasse a sua malfadada vigilância.
Contudo, dias depois, observou um homem de meia idade em frente ao estabelecimento de ensino, gabardina comprida, cabeça coberta por um chapéu já em desuso, cigarros nervosamente fumados e lançados ao chão, ainda quase inteiros. Quando as alunas dispersavam aquele homem seguia um dos grupos menores, estugando o passo, caso elas andassem um pouco mais depressa. Naquele dia a sua filha vinha acompanhada de uma colega e o estranho começou a segui-las a uma distância relativamente curta, as mãos nos bolsos do impermeável, o cigarro sempre aceso nos lábios, os olhos brilhantes e cravados nas duas jovens. Acelerando o passo o homem ultrapassou-as e, espanto dos espantos, abrindo a gabardina, exibiu-lhes os órgãos sexuais, fugindo imediatamente. As raparigas gritaram e lançaram-se em louca correria em sentido contrário ao do exibicionista.
Não quis acreditar no que tinha visto e, esquecendo as duas pequenas, seguiu em perseguição do depravado até o ver a entrar num prédio relativamente luxuoso de uma avenida não muito longe do liceu. Rabiscou num papel do bloco-notas o endereço, regressando à casa.
Tanto ele como a mulher interrogaram a jovem sobre o que havia acontecido naquela tarde e ela retorquira-lhes já não ser a primeira vez que haviam sido vítimas daquele exibicionista que tudo tentava para uma maior aproximação a qualquer uma das alunas do liceu. Instada a denunciá-lo à polícia, a rapariga corando replicou que não faria isso por vergonha, deixando os pais desarmados e sem saberem o que fazer.
Uma coisa era certa, aquilo tinha de acabar.
De nada valeu, aparentemente, a queixa que resolveu apresentar na polícia da área do liceu. Prometeram vigiar o local onde o exibicionista costumava aparecer e agir contra ele, assim o apanhassem em flagrante. Casos como aquele sucediam com certa frequência e, ante a vergonha das atingidas por aquelas falta de pudor que as inibia de se queixarem e acusarem o culpado, a polícia pouco podia fazer. Além disso, a lei era quase omissa ou benevolente em relação a motivos pedófilos, abrangendo apenas ofensas à moral pública e pouco mais.
Arrepiava-o o simples facto de imaginar aquele homem a desnudar-se frente à filha e colegas da escola e, tal atitude assemelhava-se-lhe à própria encarnação diabólica, ao pecado ambulante de uma luxúria nojenta, criminosa e repulsiva!
Tinha a obrigação de a libertar daquela situação, de um tal animal de sexo, preservar a sua inocência, protegê-la de eventuais tentações e do pecado da carne, numa idade turbulenta de emancipação...
Durante vários dias a sua consciência foi assaltada pelas mais estranhas e diferentes ideias, quase todas violentas e a pressagiarem um castigo exemplar para o pedófilo exibicionista que perturbava a tranquilidade daquelas jovens estudantes.
Desde a castração que viria a ser uma atitude defensiva, terrível, mas exemplar, ao simples aniquilamento de tão indesejada personagem, tudo ocorreu, numa sequência digna de um filme dramático de terror.
Finalmente, com uma lentidão premeditada, dirigiu-se ao armário do escritório, abriu uma das gavetas e de lá retirou um revolver que pertencera a seu pai, nunca utilizado, apenas recolhido ali como recordação. Verificou no tambor as balas já antigas e p™s-se a pensar, até que ponto a justiça de Deus levaria uma delas a deflagrar, terminando com aquele caso e sossegando-lhe o espírito.
Convinha, contudo, antes de fazer qualquer coisa, aconselhar-se com o seu director espiritual. V